Danilo Paris: ‘Marçal como uma reação à
institucionalização da extrema-direita’
Ideologicamente, a
figura do coach empreendedor representa o produto do que as classes dominantes
brasileiras cultivaram nos últimos anos. Discursos favoráveis às reformas
trabalhista e da previdência, bem como às privatizações, foram fundamentados
nas premissas do individualismo e do empreendedorismo.
Para justificar um
projeto social dissociado dos direitos sociais, foi difundida quase como um
mantra a ideia de que cada um pode prosperar dependendo do seu esforço
individual. Marçal é o representante dessa ideologia, amplamente disseminada e
reproduzida, apoiada e financiada quase que unanimemente por diferentes
segmentos da burguesia nacional e internacional.
A AtlasIntel foi a
primeira a captar o crescimento de Marçal nas intenções de voto. Em pesquisa
divulgada na quarta-feira, 21 de agosto, o ex-coach subiu 4,9 pontos
percentuais, de 11,4% para 16,3%. No mesmo período, Guilherme Boulos, que tinha
32,7%, caiu 4,2 pontos percentuais, e Ricardo Nunes, com 24,9%, recuou 3,1
pontos.
Já a pesquisa
Datafolha, publicada no dia 22, apresenta um cenário ainda mais favorável para
Marçal, que saltou de 14% para 21% das intenções de voto, empatado com
Guilherme Boulos (PSOL), que oscilou de 22% para 23%, e Ricardo Nunes (MDB),
que caiu de 23% para 19%. Com essa dinâmica, a possibilidade de Marçal alcançar
o segundo turno estão cada vez mais colocadas, embora alguns fatores ainda
estejam em jogo.
Os escândalos recentes
envolvendo sua candidatura podem ter efeitos, mas ainda são imprevisíveis. O
primeiro deles envolve evidências de ligação entre os líderes de seu partido
(PRTB) e articuladores de sua campanha com o PCC. Trocas de carros de luxo por
cocaína, amplamente noticiadas, podem impactar negativamente sua campanha. Além
disso, a comprovação de sua participação em uma quadrilha que aplicava golpes
bancários será explorada por seus adversários e poderá ter consequências
importantes.
Contudo, há um fator
político que pode ser decisivo. Após uma postura vacilante, com elogios
parciais a Marçal, Bolsonaro e seu clã adotaram uma atitude mais ofensiva,
delimitando e desaprovando-o. Trocas de farpas nas redes sociais e declarações
de Bolsonaro, que afirmou na CNN que Marçal é mentiroso e que nunca buscou seu
apoio, marcam essa mudança de postura. Segundo alguns veículos de imprensa,
Bolsonaro tem enviado vídeos contrários ao coach em suas listas de WhatsApp,
dizendo que "certas coisas você não precisa experimentar para saber que é
um produto estragado. Meu candidato em São Paulo é Ricardo Nunes."
Essa preocupação de
Bolsonaro reflete o receio diante da ascensão de uma nova figura em sua base
tradicional. Oriundo de Goiânia, Marçal busca associar sua imagem de
empreendedor à de “agroboy” ligado ao agronegócio. Entre os inúmeros
compromissos de campanha, ele não deixou de priorizar sua presença na Festa do
Peão de Barretos, a maior do país, onde foi recebido de braços abertos pelo
evento e por seus principais organizadores. Um sinal concreto de apoio dessas
frações do agronegócio à candidatura de Pablo Marçal foi a doação de R$100 mil
do bilionário Helio Seibel, até agora a maior doação para sua campanha.
Esses indícios apontam
para frações de classes que podem estar mais entusiasmadas em seu apoio.
Frações do agronegócio, as classes médias do centro-oeste e do interior de São
Paulo, mas também da capital paulista, além de uma base plebeia que se identifica
com essa teologia da prosperidade, compõem um leque que, como não poderia
deixar de ser, se sobrepõe aos setores da base tradicional de Bolsonaro.
Nesse contexto, o
entusiasmo da base bolsonarista em migrar para Marçal, mesmo contrariando as
diretrizes de Bolsonaro, configura uma espécie de reação à institucionalização
da extrema-direita. É simbólico que isso ocorra na capital do estado governado
por Tarcísio, símbolo dessa institucionalização. É importante lembrar que
Salles, que seria um candidato “legítimo” para essa base bolsonarista, foi
preterido por Bolsonaro justamente para se alinhar a uma ala mais
institucionalizada do regime. O próprio Marçal faz questão de lembrar esse
episódio, dizendo que se lançou à prefeitura após a desistência de Salles.
É um fato que, após os
eventos de 8 de janeiro, que deixaram Bolsonaro em uma correlação de forças
desfavorável nacionalmente, os setores políticos que o apoiaram, como Tarcísio
de Freitas, passaram a aceitar cada vez mais “as regras do jogo” e as condições
estabelecidas pelo regime político dessa democracia degradada. Isso significa
evitar confrontos constantes com o STF e promover ações de rua que desafiem os
poderes do regime, práticas anteriormente utilizadas por Bolsonaro para
barganhar seus interesses.
Diante de uma
correlação de forças desfavorável para esse tipo de política, Bolsonaro tem
calculado bem seus movimentos, optando por apoiar candidaturas oriundas desse
bolsonarismo institucionalizado ou provenientes de partidos que, inclusive,
compõem a Frente Ampla, como o MDB de Nunes.
A questão é que sua
base, acostumada com eventos para desafiar “tudo e todos”, sente-se agora órfã
de uma candidatura que rememore os velhos tempos do bolsonarismo em ascensão.
É nesse cenário que
Marçal encontrou espaço. Mesmo com manifestações de apoio declaradas a Nunes,
como sua presença no lançamento da candidatura, até agora não se pode dizer que
houve grande engajamento de Bolsonaro na candidatura do MDBista.
Além disso, é possível
que Nunes não tenha tido a melhor receptividade para um setor considerado
“bolsonarista raíz”. Uma parte deles quer uma candidatura histriônica, que seja
performaticamente reacionário, assim como fez Bolsonaro em toda sua trajetória
e Nunes não é propriamente o candidato que encarna esse perfil.
Nesse contexto, Marçal
optou por aparições performáticas nos debates, sendo especialmente provocativo
contra Guilherme Boulos (PSOL) e levantando temas para agitar sua base de
apoiadores. Com forte presença nas redes sociais e se posicionando como o mais
ardente opositor de Boulos, Marçal passou a ser um fator real nas eleições de
São Paulo.
É interessante notar
que a postura do clã Bolsonaro não foi a mesma desde o início da candidatura.
Enquanto Marçal ainda não tinha uma candidatura forte, Bolsonaro ensaiou
elogios a ele, provavelmente tentando usar essas sinalizações para barganhar
mais posições em relação a Nunes. No entanto, à medida que Marçal começou a
avançar nas pesquisas, não só Bolsonaro, mas também seus filhos, adotaram uma
postura mais agressiva contra o candidato do PRTB, como fez Eduardo Bolsonaro
em um vídeo recente.
Neste momento, é
difícil prever o resultado dessa disputa. Em essência, há uma batalha pelo
espólio eleitoral de Bolsonaro enquanto ele permanece inelegível. Existe o
perigo de que um "sucessor não autorizado" capitalize parte desse
espaço político sem a bênção de Bolsonaro. Podemos estar diante de um primeiro
episódio de um conflito sucessório que ainda terá muitos capítulos, e não está
descartada a possibilidade de que, no curso dos embates, esses setores que hoje
não estão alinhados cheguem a um acordo e passem a atuar em conjunto.
E esses dados são
evidentes na pesquisa DataFolha. Segundo a agência de pesquisas: “O segmento
onde Marçal mais avançou foi entre os que se classificam como bolsonaristas. Se
no início de agosto ele tinha 25% das intenções de voto nesse grupo, tem agora 46%,
ultrapassando Nunes, que encolheu de 37% para 26%. O mesmo movimento aconteceu
entre os eleitores do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que
oficialmente apoia o prefeito, assim como Bolsonaro. Nesse público, Marçal
saltou de 25% para 41% no período, enquanto Nunes caiu de 42% para 28%.”
Ao mesmo tempo, é
evidente o receio dos grandes meios de comunicação do estado de São Paulo de
que a candidatura de Marçal possa acabar beneficiando Boulos. A mesma pesquisa
AtlasIntel mencionada anteriormente mostra que Boulos perderia para Nunes em um
eventual segundo turno, mas venceria Marçal, já que uma parte dos votos
considerados de “centro-direita” poderia migrar para o candidato do PSOL.
Isso não significa,
contudo, uma eleição mais fácil para Boulos. Ele havia se preparado para uma
eleição com debates mais técnicos e menos polarizados. Não por acaso, reagiu
intempestivamente às provocações asquerosas de Marçal com uma carteira de
trabalho. Agora, o debate público se transforma completamente, e Boulos também
precisará ajustar o tom e o conteúdo de sua campanha.
Não é por acaso que o
candidato apoiado pelo PT vem adotando um tom moderado e conciliador na
campanha. Ele incluiu um ex-comandante da Rota em sua equipe de campanha e fez
declarações de que estaria disposto a negociar com Tarcísio, além de afirmar
que não apoia mais programas que já defendeu, como a legalização da maconha.
Este movimento reflete uma tendência de deslocamento à direita no debate
eleitoral, com Marçal polarizando no polo da extrema-direita e Boulos assumindo
uma postura mais domesticada e conciliadora no polo à esquerda do espectro
eleitoral. Um momento que já havia se iniciado, mas agora a tendência é se
aprofundar.
Num sentido mais
estrutural, as eleições de São Paulo também revelam mudanças no regime
político. Após o golpe institucional de 2016 e a ascensão de Bolsonaro, a
direita neoliberal tradicional, liderada pelo PSDB, foi corroída pelo
bolsonarismo que ocupou seu espaço. Nunes, embora seja do MDB, era vice de
Bruno Covas, do PSDB, e para muitos setores está muito mais associado à velha
direita neoliberal do que ao bolsonarismo.
No entanto, após a
turbulenta transição de poder nas eleições presidenciais, diversas alas do
regime, em especial o Judiciário, atuam contra aqueles que ameaçam a relativa
estabilidade política do país. Bolsonaro foi abandonado por poderosas frações
burguesas porque sua política era demasiadamente disruptiva, com enfrentamentos
permanentes com outras alas do regime político. As ameaças do Ministério
Público e do Judiciário contra Marçal fazem parte desse movimento de tentar
conter e domesticar essas variantes políticas que podem promover maiores
turbulências.
Essas ações, porém,
não refletem uma “preocupação democrática”. Os poderes acumulados e
centralizados que o Judiciário conquistou, ao que denominamos bonapartista pelo
seu caráter autoritário e repressivo, inerente a uma democracia burguesa cada
vez mais degradada, agora se voltam contra esses representantes da
extrema-direita, mas já foram utilizados para possibilitar sua ascensão, como
quando prenderam Lula arbitrariamente.
No fundo, Marçal é
mais um sintoma mórbido da crise de hegemonia que atravessa o Brasil há quase
uma década. Como desenvolveu o comunista sardo Antonio Gramsci, a crise de
hegemonia é uma crise de dominação burguesa, na qual a crise de
representatividade e a separação de grandes setores de massas de seus partidos
tradicionais é um sintoma marcante.
Não é por acaso que
Marçal repete a velha retórica da “antipolítica”, a mesma fórmula que levou
Bolsonaro ao poder. Em certo sentido, ele ainda é um efeito retardatário dos
fenômenos que começaram a se manifestar em 2016 e ganharam mais força em 2018.
Candidatos como Doria, Witzel, Zema, além do próprio Bolsonaro, e toda uma
fauna da chamada “nova direita”, que se dizia contrária à “política
tradicional”, emergiram, contrariando as previsões clássicas dos analistas
políticos.
Assim como Doria e
Witzel, Marçal pode ter um prazo de validade curto e desaparecer com a mesma
velocidade com que surgiu. Não é fácil prever como o eleitorado bolsonarista se
comportará daqui para frente. Com a oposição declarada do seu “capitão”, Marçal
poderá crescer nas pesquisas? Nesse caso, ele pressionará cada vez mais o
debate público e os posicionamentos dos outros candidatos para a direita.
Por outro lado, seria
possível algum tipo de acordo entre Bolsonaro e Marçal para rearticular suas
posições a partir de São Paulo? Esta última seria, sem dúvida, a jogada mais
arriscada para Bolsonaro, e, portanto, improvável, pois significaria romper com
seus principais aliados no regime político justamente num momento em que ele
não pode se isolar, sob pena de ver aumentar a ofensiva contra ele.
Ao mesmo tempo, ter
sua hegemonia questionada no campo da extrema-direita seria um golpe profundo
para suas posições. Ainda estamos distantes de um cenário como esse, mas esses
são os riscos que motivam Bolsonaro a se posicionar mais frontalmente contra o
ex-coach.
Em sua essência,
Marçal expressa elementos de classe estruturais que permitiram a ascensão da
extrema-direita. O peso do agronegócio e o discurso ideológico a favor do
empreendedorismo são as bases materiais nas quais se apoia. Além disso, sua
chapa conta com uma vice que é policial militar, abertamente contrária ao
direito ao aborto, para agradar os setores mais reacionários do fundamentalismo
evangélico.
São justamente essas
bases materiais que o governo de Frente Ampla vem fortalecendo. Lula ofereceu o
maior Plano Safra da história para o agronegócio. Favoreceu o governador
Tarcísio de Freitas com vultosas cifras do BNDES, além de oferecer um
ministério ao Republicanos. Nas eleições municipais, o PT está se coligando com
diversos setores reacionários do bolsonarismo, como mostramos neste artigo.
Além disso, Lula vem buscando renovar seus compromissos com a bancada
evangélica, deixando claro desde a campanha que não tocaria no tema do direito
ao aborto.
A tentativa de
institucionalizar e domesticar a extrema-direita através do Judiciário tem como
contrapartida o fortalecimento desses atores políticos e econômicos que desejam
uma variante política mais agressiva, que retome o bolsonarismo em seu momento de
maior radicalização. Isso mostra que a política de conciliação de classes acaba
por fortalecer a extrema-direita, que pode renovar suas apostas diante de novos
cenários, como vem fazendo com Marçal.
Mais do que nunca, é
fundamental uma alternativa de independência de classes que combata a ideologia
individualista do empreendedorismo neoliberal, que pretende fragmentar e
atomizar ainda mais a classe trabalhadora. Esse discurso busca a manutenção de
todas as contrarreformas, como a trabalhista e da previdência, e apoia
entusiasticamente a política de “equilíbrio fiscal”, tendo no Arcabouço Fiscal
um guardião dos interesses do capital financeiro.
Fonte: Esquerda Diário
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