Com DDI falso, golpistas fingem ser
brasileiros no exterior
Morando na Alemanha há
cinco anos e meio, a arquiteta e urbanista Rita Buoro, de 52 anos, usa sempre o
telefone e aplicativos de mensagem para falar com a família no Brasil. Em
janeiro, uma pessoa usando a foto de Rita entrou em contato com a mãe dela pelo
WhatsApp, pedindo ajuda para comprar um apartamento. As conversas duraram duas
semanas, e, achando que estava se comunicando com a filha, a idosa de 82 anos
transferiu cerca de R$ 23 mil.
Era um golpe. A pessoa
do outro lado da tela não era Rita, mas as mensagens ganharam credibilidade por
um detalhe: o número utilizado usava um prefixo de identificação alemão, o DDI
+49. "Eu estava em um momento frágil, me separando, então estava falando
pouco com a minha família no Brasil. Tinha também a questão do fuso, que
impedia a comunicação de ser imediata", conta a arquiteta e urbanista.
Tentativas de golpe
financeiro via aplicativos de mensagens ou ligações foram o tipo de crimes na
internet e contra o patrimônio mais comum no Brasil no último ano, segundo
dados revelados neste mês pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Esse tipo de fraude atingiu cerca de 26% da população e gerou um prejuízo de R$
25 bilhões aos brasileiros. Por hora, foram cerca de 4,5 mil vítimas. Porém,
apenas três em cada dez vítimas fizeram um boletim de ocorrência.
O caso de Rita,
entretanto, revela uma face a mais desse tipo de prática, ela também está
atingindo brasileiros que vivem no exterior. A DW conversou com pelo menos
cinco pessoas e recebeu relatos de uma dezena de casos em que foram criados
números falsos, com DDI da Alemanha ou Reino Unido, para ludibriar familiares
de expatriados. Em todas as situações, os criminosos utilizaram fotos reais,
extraídas do Facebook e do Instagram, para criar contas no WhatsApp e iniciar
conversas com os familiares no Brasil.
"Temos muitos
relatos de clientes vítimas desse tipo de golpe. Tem sido frequente pessoas nos
procurando para dar orientação [do que fazer]", afirma a advogada
brasileira que atua na Alemanha Delaine Kühn.
Esse tipo de golpe se
transformou no assunto do grupo da família do geógrafo Ricardo Paris, de 38
anos, na semana passada. Usando uma foto antiga dele, que estava nas redes
sociais, um número com DDI do Reino Unido (+44) entrou em contato com a mãe, um
tio e duas primas do geógrafo. A pessoa afirmava estar com um problema na conta
bancária e solicitou apoio para fazer uma transferência.
Ricardo mora há cerca
de dois anos e meio em Bochum, na Alemanha, e mal falava com alguns dos
parentes contactados. Na mesma semana, o irmão dele também teve uma foto
utilizada, desta vez com um DDI alemão. Ninguém transferiu dinheiro. "Com
certeza era um brasileiro, com um telefone inglês, que sabia do meu grau de
parentesco, embora eu não colocasse esses vínculos na minha lista de contatos
ou nas redes sociais”, diz Ricardo Paris.
Entre dezembro do ano
passado e abril deste ano, o gerente de programas Rafael Gonsalez, de 27 anos,
teve a foto usada por dois números internacionais. A primeira vez foi criado um
número dos Estados Unidos (DDI +1), enquanto na segunda foi usado um número
alemão. Em ambos os casos, o alvo do pedido de dinheiro foi a mãe dele, que
está no Brasil. A quantia solicitada era de R$ 6,7 mil. "Minha mãe começou
a ‘dar corda', para pegar os dados. Eu entrei em contato, tentei falar com
eles, mas eles bloquearam todos nós e pararam de mandar mensagem”, conta.
<><> Como
agem os criminosos
De acordo com
especialistas em cibersegurança, os criminosos podem estar atuando em qualquer
lugar do mundo. Eles se aproveitam de ferramentas disponíveis online para criar
números falsos sem, necessariamente, adquirir um chip ou se registrar numa
operadora – ou ainda sequer sem estar no país a cujo número está vinculado.
Essa prática é
conhecida como spoofing e se caracteriza pelo uso de tecnologias capazes de
alterar o código numérico que identifica um telefone fixo ou móvel, para
esconder uma identidade por trás de uma ligação ou mensagem. Esse uso não
necessariamente tem uma finalidade criminosa, pode ser inclusive um cuidado de
segurança digital. Mas a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) diz que
as tecnologias têm sido utilizadas com frequência para cometer fraudes e
golpes. O órgão não tem estatísticas sobre a prática.
Em lojas de
aplicativos, estão disponíveis ferramentas que permitem criar um número de
telefone descartável com código do exterior, conhecidos como burner number, em
inglês, por cerca de cinco dólares ao mês. Por meio deles, é possível enviar
mensagens ou realizar ligações sem revelar a identidade.
As ligações acontecem
por meio de serviços de VoIP, sigla para Voz sobre Protocolo de Internet,
tecnologia que permite realizar chamadas de voz entre computadores ou entre
computadores e telefones convencionais, e é usada em plataformas como WhatsApp,
Facebook Messenger e Skype. Essa tecnologia foi criada para esconder o ramal de
empresas aos clientes e se tornou mais usada durante a pandemia da covid-19,
quando passou a ser permitido a funcionários fazerem chamadas de trabalho
usando seus celulares privados.
"Para uma
operadora, é muito difícil diferenciar se uma chamada falsificada é de um
funcionário ou de um criminoso. Como os números podem ser gerados com
aplicativos, também não temos como coletar casos", diz Christian Fischer,
porta-voz da empresa de telecomunicações Deutsche Telekom. Na Alemanha, há uma
lei que obriga as operadoras a suprimir os números quando é identificado um uso
indevido do prefixo alemão.
A Anatel afirmou que
tem atuado em cooperação com entidades de segurança pública e justiça, além de
empresas privadas, para combater e prevenir fraudes relacionadas à prestação de
serviços de telecomunicações. A entidade está testando uma solução para identificação
e autenticação de chamadas telefônicas já usada nos Estados Unidos e no Canadá.
Por enquanto, os testes estão restritos a usuários selecionados pelas
prestadoras.
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Investigação dos crimes não é fácil
Não há dados
compilados disponíveis, no Brasil ou na Alemanha, que atestem a quantidade de
golpes financeiros envolvendo números de telefone com DDI falsos. Em parte,
isso acontece porque grande parte das vítimas não chega a registrar uma queixa
formal, mas também devido à dificuldade inerente a esse tipo de crime para
identificar a origem e local de atuação dos criminosos.
Um levantamento feito
pelo Escritório Estadual de Investigação Criminal da Renânia do
Norte-Vestfália, na Alemanha, onde vivem Ricardo e Rita, mostra que, entre
janeiro de 2023 e 19 de agosto deste ano, sete brasileiros relataram ter sido
vítimas desse tipo de golpe. Na Alemanha, esse tipo de crime é enquadrado como
fraude, com pena prevista de até cinco anos de prisão ou multa..
No Brasil, os casos
são considerados estelionato, para o qual a pena varia de quatro a oito anos de
prisão. A DW procurou as polícias civis e secretarias de segurança pública
estaduais, mas apenas a secretaria do Tocantins retornou afirmando já ter registrado
ocorrências usando números internacionais.
Registrar o boletim de
ocorrência é importante, dizem as autoridades policiais de ambos os países,
ainda que haja dificuldade em rastrear os criminosos. O uso de telefones com
código de identificação do exterior dá um caráter transnacional a esses crimes,
pois as vítimas e os criminosos podem estar em países diferentes, o que demanda
uma coordenação entre os investigadores.
"Tentamos
localizar os provedores de origem, mas isso leva tempo e muitos desses dados
desaparecem em cerca de duas semanas", explica Daniela Dässel, porta-voz
do Escritório Estadual de Investigação Criminal da Renânia do Norte-Vestfália,
na Alemanha.
De acordo com a
promotora Janaína Cristina de Almeida, do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios (MPDFT), a dificuldade não arrefece se a ação é comandada
do território nacional. "Ainda assim, a investigação depende de medidas
judiciais como quebras de sigilo bancário e de dados. Além disso, muitas vezes,
essa investigação será interestadual, considerando que o golpista raramente
residirá no mesmo local em que a vítima, o que dificulta o trabalho
policial", afirma.
Quando a conversa vai
adiante e dados como chave PIX são fornecidos, é mais fácil chegar à origem do
golpe. No caso de Rita Buoro, o número utilizado para falar com sua família era
da Alemanha, mas o contato foi todo feito em português e o PIX da conta estava
vinculado a um brasileiro. Com o CPF e o nome da pessoa mencionados nas
mensagens trocadas pelo número falso, por exemplo, a DW chegou a uma pessoa que
mantém uma empresa de frete registrada em um endereço no Complexo da Maré, no
Rio de Janeiro. Rita tentou denunciar na Alemanha, chegou a enviar capturas de
tela para a polícia, mas o caso não foi adiante.
Já com os dados da
conta bancária enviados para a mãe de Rafael Gonzalez, a DW encontrou vínculos
com uma pessoa que, segundo o Portal da Transparência, é do Rio de Janeiro.
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Exposição e vazamento de dados favorecem os golpes
Independentemente das
tecnologias disponíveis, é a coleta de informações que a própria vítima
disponibiliza no ambiente digital que dará credibilidade às mensagens.
"Eles [os criminosos] utilizam as brechas humanas para vasculhar
informações privadas, como vínculos entre pessoas, locais de trabalho,
endereços, preferências e gostos", explica Martina Lopez, pesquisadora de
segurança informática da ESET América Latina.
Lopez lembra que a
partir de dados como datas de nascimento ou de casamento é possível descobrir
senhas e, por fotos, vínculos de amizade ou família. Participar de grupos nas
redes sociais sobre brasileiros vivendo no exterior também é dica para os golpistas.
A advogada Juliana
Makalima, de 32 anos, que mora na Alemanha, desconfia que foi por meio de um
grupo no Facebook que obtiveram as informações usadas para tentar aplicar um
golpe na mãe dela, que mora no Brasil. "Usaram a minha foto do Instagram,
criaram um número aqui da Alemanha, e até printaram stories meus para dar mais
veracidade à conversa", diz. A família conseguiu se comunicar antes de o
golpe ser efetivado.
Além das informações
publicadas de maneira voluntária, os cibercriminosos também se valem dos
vazamentos de bases de dados de empresas privadas ou do governo. Segundo o
Centro de Prevenção, Tratamento e Resposta a Incidentes Cibernéticos de Governo
(CTIR Gov), em 2024 o governo brasileiro registrou 3,7 mil incidentes
relacionados a vazamentos de dados. Esse foi o principal tipo de incidente
cibernético registrado pelo órgão no ano.
Uma pesquisa da
Cybernews, de janeiro, mostrou que dados de 223 milhões de brasileiros,
inclusive de falecidos, vazaram com nomes completos, data de nascimento, sexo e
número de Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Em 2021, um mega vazamento
semelhante já havia ocorrido. Em abril, o Banco Central revelou que mais de 3
mil chaves PIX de clientes do Banco do Estado do Pará S.A. (Banpará) haviam
sido expostas.
O Banco Central
registrou desde 2021 pelo menos 13 incidentes envolvendo dados de PIX, sendo
oito deles apenas neste ano. "Esses fragmentos de informação são
suficientes para que criminosos identifiquem e abordem outras pessoas
associadas à vítima sem ter de interagir com ela diretamente", afirma
Martina Lopez.
No Brasil, a Lei Geral
de Proteção de Dados (LGPD) diz que os agentes de tratamentos de dados pessoais
devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas para proteger
essas informações de acessos não autorizados. Isso inclui as instituições financeiras
e também as plataformas de redes sociais. "É preciso também uma constante
atualização dos marcos normativos sobre o tema que precisam cobrar dos bancos
esse constante esforço de segurança, bem como definir suas responsabilidades e
obrigações", lembra Leonardo Carvalho, pesquisador do FBSP.
• Como se proteger e o que fazer em caso
de golpe do DDI
Golpes financeiros via
aplicativos de mensagens ou ligações são o tipo de crime cibernético e contra o
patrimônio mais frequentes no Brasil, de acordo com uma pesquisa do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O levantamento, divulgado neste mês, mostrou
que 26% dos brasileiros foram vítimas desse tipo de ação nos últimos 12 meses.
Foram cerca de 4,5 mil pessoas afetadas por hora.
Não é preciso sequer
estar ou morar no país para passar pela situação. Mesmo brasileiros vivendo no
exterior há anos têm sido afetados. Para enganar no Brasil familiares de
expatriados, os criminosos estão utilizando ferramentas disponíveis na internet
e em lojas de aplicativo que permitem a criação de números falsos com código de
identificação do exterior, o DDI, de países como Alemanha, Reino Unido e
Estados Unidos.
A técnica, conhecida
como spoofing, dá credibilidade e retarda a descoberta do golpe devido à
diferença de fuso horário entre quem tem a identidade roubada e quem está
recebendo as mensagens. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) está
testando uma tecnologia que promete solucionar parte do problema, mas que só
estará disponível no fim deste ano.
Enquanto isso,
especialistas em cibersegurança entrevistados pela DW afirmam que há uma série
de ações que podem ser tomadas para reduzir a exposição a esse tipo de crime,
bem como ensinam a agir em caso de ser vítima. "Muitas vezes as
informações utilizadas nos golpes estão disponíveis nas redes sociais.
Certamente, a maior parte das pessoas clica em ‘Eu aceito' sem ler o que está
escrito em termos de uso", afirma Leonardo Carvalho, pesquisador do FBSP.
Em caso de
desconfiança, o professor do Departamento de Computação da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) Eduardo Morgado recomenda que não se dê nenhuma
informação requisitada nas mensagens ou ligações. "Não há como evitar os
golpes, porque as tecnologias estão aí, mas é preciso ter consciência de que
quanto mais informações o criminoso tem, mais credibilidade ele acumula para
enganar seus familiares”, diz.
Thiago Tavares,
presidente e fundador da ONG SaferNet Brasil, recomenda ainda que a vítima
desligue a ligação ou pare de responder as mensagens e entre em contato
diretamente com as instituições financeiras e os verdadeiros contatos. Se
possível, fazer chamadas de voz ou vídeo, para confirmar a identidade, também
ajuda.
"É importante
também denunciar aos órgãos competentes. Atualmente é difícil obter dados fiéis
à magnitude do problema porque muitos não relatam esses casos", conclui
Martina Lopez, pesquisadora de segurança informática da ESET América Latina.
Confira abaixo o que
pode ser feito para se proteger e o que fazer em caso de ter caído nesse golpe:
<><> Como
se proteger de spoofing
• Modifique as configurações de seu
telefone para rejeitar chamadas suspeitas de spam/scam;
• Use aplicativos disponíveis tanto para
iOS quanto Android que se propõem a bloquear chamadas de números suspeitos;
• Evite, se possível, atender chamadas de
números desconhecidos, ainda que tenham código de área igual ao seu ou de algum
parente ou amigo;
• Em caso de desconfiança, especialmente
se o interlocutor pedir dinheiro ou informações pessoais, de forma apressada e
insistente, recuse-se a fornecer qualquer informação e desligue o telefone;
• Retorne a ligação para um número
conhecido e confiável, após alguns minutos, para evitar que o golpista
"prenda a ligação" e continue na linha.
<><> O que
fazer se você perceber que caiu em um golpe
• Em caso de fornecimento de informações
pessoais sensíveis aos golpistas, adote o mais rápido possível medidas para
inutilizá-las, como trocar suas senhas e informar à sua instituição bancária,
conforme o caso;
• Caso seja vítima ou tenha conhecimento
de que criminosos estão utilizando seu número ou se passando por você, avise
seus contatos e alerte para que não façam transferências ou forneçam qualquer
informação pessoal;
• Registre um boletim de ocorrência junto
à Polícia Civil, se estiver no Brasil, detalhando o máximo de informações
fornecidas pelo golpista, bem como informe à sua operadora de telefonia que seu
número está sendo utilizado indevidamente;
• Se o caso tiver ocorrido no exterior,
registre também um boletim de ocorrência na polícia local, por crime de falsa
identidade ou fraude, a depender da legislação vigente. Se o país tiver uma lei
geral de proteção de dados, denuncie à autoridade fiscalizadora.
<><> Como
proteger as redes sociais desse tipo de crime
• Evite a vinculação de seu número
telefônico a redes sociais de forma pública ou o fornecimento deste dado a
cadastros em sites ou aplicativos não confiáveis;
• Deve ser evitada, igualmente, a
divulgação excessiva de informações pessoais que facilitem que o golpista se
passe com sucesso pelo titular do número perante os seus familiares e amigos;
• Omita informações sobre cidade de
moradia e relações familiares sempre que possível;
• Denuncie o roubo de imagens ou
identidade às plataformas responsáveis pelas redes sociais;
• Use autenticação de dois fatores (2FA)
nas contas e senhas fortes e únicas;
• Instale uma solução antivírus nos
dispositivos para receber alertas de acesso desconhecido ou tentativas de login
em suas contas.
Fonte: Deutsche Welle
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