O que Ciência diz sobre pessoas sem parentesco que se parecem muito
fisicamente
Agnes estava viajando de trem quando
um homem se aproximou dela e começou a conversar sobre assuntos de que ela não
tinha ideia. O sujeito logo percebeu que "ela não era quem ele
pensava". E não demorou muito para ele dizer que conhecia uma doppelgänger de
Agnes, um termo alemão para "sósia".
Agnes foi incentivada a conhecer a amiga de seu
companheiro de trem e, pelo Facebook, viu
Ester. Mais tarde, elas se conheceram pessoalmente.
"Nós nos demos muito bem imediatamente. Não é
apenas nossa aparência, mas nossas
personalidades também se assemelham."
Para Ester, "é estranho e maravilhoso ver
parte de você em outra pessoa".
Mas o que torna a experiência muito especial é o
fato de que ela e a sósia são semelhantes em
caráter e interesses. "Temos os mesmos gostos: música, roupas, tatuagens."
Quando Ester tinha 32 anos e Agnes 28, posaram para
o fotógrafo canadense François Brunelle, que compartilhou a história das duas
holandesas com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Brunelle lembra que, ao vê-las, se impressionou com
"o quanto eles se pareciam".
O artista passou anos retratando pessoas, em
diferentes partes do planeta, que não são parentes mas se parecem muito.
Foi assim, na imagem abaixo, que ele fotografou
Ester e Agnes em 2015.
Talvez você já tenha se deparado mas mídias sociais
com fotos de pessoas não famosas que se parecem com figuras públicas ou
celebridades, ou com famosos que se parecem com outros famosos.
De fato, uma dessas comparações que se tornou
popular nos últimos anos é a do fundador da equipe Ferrari, o
italiano Enzo Ferrari, e a do jogador de futebol alemão de origem turca Mesut
Ozil.
O que Brunelle pode não ter imaginado quando
iniciou seu projeto é que ele se tornaria uma base para pesquisas científicas
pioneiras.
Ele foi contatado por um grupo de especialistas do
Instituto Josep Carreras de Pesquisa em Leucemia de Barcelona, na Espanha, que estão tentando
entender as semelhanças físicas entre indivíduos que não têm vínculos
familiares.
Manel Esteller, diretor do instituto e professor de
Genética da Faculdade de Medicina da Universidade de Barcelona, liderou o estudo e relatou à BBC News Mundo algumas de suas fascinantes descobertas.
·
Sob escrutínio
Em agosto, os resultados da pesquisa, iniciada em
2016, foram publicados na revista científica Cell Reports.
Os autores explicaram que o estudo visava
caracterizar, de forma molecular, "seres humanos aleatórios que
compartilhavam objetivamente de características faciais".
São os indivíduos que, por sua "alta
semelhança", são chamamos coloquialmente de sósias.
Os pesquisadores entraram em contato com Brunelle e
com 32 duplas voluntárias que participaram de seu projeto.
As fotos de seus rostos foram analisadas com
três softwares
de reconhecimento facial, como os usados, por exemplo, em aeroportos, na
polícia ou para desbloquear celulares.
"Estes são programas que informam o quão
semelhante um rosto é comparado a outro", explicou Esteller.
Em gêmeos, por exemplo, a similaridade detectada
por esses programas chega a 90%-100%.
No estudo, eles foram usados para determinar o grau de "semelhança" dos rostos e encontraram "uma taxa
alta".
"O número de pares que foram correlacionados
por pelo menos dois programas foi muito alto (75% de similaridade em 25 de
32)", disse o instituto em um comunicado.
De acordo com Esteller, isso é "muito próximo
da capacidade humana de reconhecer gêmeos
idênticos".
Em metade dos pares, todos os três programas
encontraram correlações, ou seja, 16 pares extremamente semelhantes.
·
Os resultados
Os pesquisadores depois analisaram "o material
biológico" dos participantes, algo que foi um pouco "complicado"
de obter porque muitos estavam "em países diferentes", disse o
médico.
Assim, foram coletadas e analisadas amostras
de DNA da
saliva.
"Estudamos esse material biológico, o genoma e
mais dois componentes: o epigenoma, que são como marcas químicas que controlam
o DNA, e também o microbioma, o tipo de
vírus e bactérias que temos."
O genoma, a genética, foi o que acabou unindo
"os casais", enquanto a epigenética e o microbioma - aspectos
relacionados ao meio ambiente - os distanciaram.
"O que o estudo está mostrando é que o mais
importante nesses casos é que (os pares) têm genética parecida, uma sequência
de DNA parecida, e (a semelhança) não é porque eles têm famílias em comum, não
há relação entre eles", diz o estudo.
"É porque o acaso, com certeza, acabou criando
sequências ou áreas de DNA idênticas para essas pessoas."
De fato, os pesquisadores retrocederam
"séculos e séculos" na história familiar dos voluntários e "não
encontraram nenhum parente comum entre eles".
·
Entre sequências
As sequências referidas pelo especialista são
decisivas na formação dos aspectos característicos do nosso rosto.
O fato de duas pessoas se parecerem tanto é
"como jogar na loteria": é muito difícil você ganhar o prêmio, mas
você pode ter sorte.
"Essas duas pessoas, apesar de não serem
parentes, acabam tendo variantes genéticas que lhes dão a mesma forma." Ou
seja, certas características de seu DNA são semelhantes.
Imagine que ambas as pessoas compartilham uma
variante que torna as sobrancelhas mais grossas, outra que torna os lábios mais
grossos, outra que as faz ter um certo tipo de queixo e assim por diante.
"Juntas, todas essas variantes tornam seus
rostos parecidos. A semelhança pode ser expressa em porcentagem e tem a ver
precisamente com os diferentes graus em que as variantes genéticas são
compartilhadas."
·
Além do físico
Este estudo é inovador no campo da genética porque,
como Sarah Kuta aponta na revista Smithsonian, embora "possa parecer óbvio
que pessoas com características faciais semelhantes também teriam um pouco do
mesmo DNA, ninguém havia provado isso cientificamente até agora."
Mas também há algo que vai além do físico. Os
voluntários foram convidados a preencher um questionário com mais de 60
perguntas sobre seus hábitos de vida "para ver se eles também eram
semelhantes nisso e, em alguns casos, havia semelhanças", disse o
professor.
Outros aspectos físicos como peso, idade e altura
também foram analisados. O estudo descobriu que, entre os 16 pares bastante
semelhantes, "muitos tinham pesos semelhantes, e a análise de seus fatores
biométricos e de estilo de vida também mostrou que havia semelhanças".
"Traços comportamentais como tabagismo e nível
de escolaridade foram correlacionados em pares semelhantes, sugerindo que a
variação genética compartilhada está relacionada não apenas à aparência física,
mas também pode influenciar hábitos e comportamentos comuns", afirma o
comunicado.
Um dos aspectos que Esteller gostaria de aprofundar
com esta pesquisa é o seu potencial de aplicação na Biomedicina.
"Identificamos genes e suas variantes que são
importantes na determinação do formato do rosto e, portanto, do nariz, boca,
testa, orelhas, e que também podem estar envolvidos em patologias. De um rosto,
podemos deduzir parcialmente o genoma dessa pessoa, e isso pode ser útil para a
triagem inicial para doenças genéticas."
O objetivo seria estar atento a qualquer mutação
que torne uma pessoa propensa a desenvolver uma determinada doença para ajudar
a evitá-la.
·
Questão de números
Os pesquisadores reconhecem que o estudo é pequeno,
mas acreditam que é "corretamente alimentado", então, eles estão
confiantes de que suas descobertas não mudarão se forem feitas em um grupo
maior.
"Como a população humana é agora de 8 bilhões,
é cada vez mais provável que essas repetições semelhantes ocorram", disse
Esteller no comunicado.
"A análise de um conjunto maior fornecerá mais
variantes genéticas compartilhadas por esses pares individuais especiais e
também poderá ser útil para elucidar a contribuição de outras camadas de dados
biológicos para definir nossos rostos", acrescenta.
·
Então é muito provável que tenhamos um sósia?
"Uma pessoa 100% idêntica a um de nós é
difícil, mas uma pessoa 75% ou 80% idêntica a nós provavelmente já está por aí,
porque existem muitas pessoas no mundo", afirmou o médico.
Depois de anos fotografando estranhos muito
parecidos, Brunelle diz ter feito uma importante constatação.
"Se você arranhar um pouco da superfície, vai
ver que as pessoas são iguais em todos os lugares. Somos uma espécie, qualquer
que seja a nossa aparência!"
Fonte: BBC News Mundo
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