O que está
por trás da genialidade em crianças
Você certamente já
conheceu — na própria família, na vizinhança ou em programas de televisão — crianças que têm
habilidades extraordinárias e surpreendentes para a idade delas.
Algumas são excelentes
em Matemática, outras nasceram com
uma aptidão excepcional para tocar um instrumento musical.
Há também aquelas que
superam todas as expectativas num esporte ou fazem
desenhos com a habilidade de um mestre das belas artes.
Mas quais são os
fatores que influenciam na formação de um "pequeno
gênio"? E será que é possível estimular a inteligência — ou ao menos
determinadas capacidades — desde cedo?
Para encontrar
respostas a essas e outras perguntas, a BBC News Brasil conversou com a médica
Magda Lahorgue Nunes, professora titular de Neurologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pesquisadora do Instituto
do Cérebro (InsCer), em Porto Alegre.
A especialista, que
também coordena o Departamento de Neurologia da Sociedade Brasileira de
Pediatria, aponta que o conceito de genialidade
infantil passou por uma série de transformações nos
últimos anos — e hoje há mais maneiras de entender e avaliar a inteligência nos
primeiros anos de vida.
Ela também alerta para
o risco de determinados dons e habilidades se tornarem um peso, caso a criança
passe a ser reconhecida e cobrada em excesso por eles.
Onde nasce o gênio
Nunes lembra que,
durante muitas décadas, o teste de QI (quociente de
inteligência) era a principal — senão a única — maneira de medir a capacidade
cognitiva de alguém.
Vale destacar aqui que
o QI é uma espécie de prova que avalia uma série de habilidades. Ela é aplicada
em centenas ou milhares de indivíduos de diferentes faixas etárias. A partir
daí, é possível definir um resultado médio para cada idade e destacar aqueles
que fogem da curva — ou seja, se saem melhor ou pior no teste.
"Mais
recentemente, começamos a observar a genialidade em indivíduos que possuem
habilidades criativas e inovadoras, que são fora do comum", diz ela.
"O teste de QI
segue como uma das ferramentas, mas a definição dessa genialidade ficou mais
ampla e um tanto mais ambígua."
Mas de onde vem e como
surge essa inteligência fora do comum?
As evidências
científicas mais recentes apontam que há uma série de fatores que, juntos,
explicam esses casos, segundo a neuropediatra.
"Evidentemente,
deve existir alguma base genética para isso, embora ainda não tenhamos
encontrado genes específicos relacionados a essa questão", pontua ela.
"Em segundo
lugar, precisamos levar em conta o ambiente em que a criança é criada, que tem
um impacto direto nas questões comportamentais e cognitivas dela",
complementa a neuropediatra.
Em termos práticos, se
o indivíduo recebe desde cedo estímulos intelectuais adequados à idade, isso
ajuda a estimular o cérebro e determinadas capacidades.
"Um ambiente
favorável não é necessariamente lotado de brinquedos caros. O mais importante é
crescer em uma casa onde essa criança é estimulada, cuidada e amada",
ensina Nunes.
Um estudo feito por
instituições finlandesas, suecas, austríacas, espanholas e alemãs publicado
em 2022 tentou explicar quais eram os
determinantes de uma performance cognitiva avançada de crianças e adolescentes.
Os autores concluem
que um mix de atividades traz benefícios em termos de inteligência,
especialmente quando elas são desafiadoras do ponto de vista cognitivo.
"A leitura está
positivamente associada ao desempenho cognitivo, independentemente da idade, e
deve ser promovida", destacam eles.
Ainda na seara dos
fatores externos, não dá para ignorar o impacto da boa alimentação e da prática
de atividade física. Estudos sugerem que ambos influenciam no desenvolvimento
cognitivo em qualquer faixa etária.
Por fim, há também o
papel do reforço positivo. Pais que observam nos filhos uma certa aptidão para
a música ou o futebol, por exemplo, tendem a presenteá-los com instrumentos ou
bolas de futebol e prestam mais atenção em como essas habilidades se desenvolvem.
Mas existe alguma área
do cérebro que está super desenvolvida nesses pequenos gênios?
Nunes aponta que,
durante muito tempo, acreditava-se que a inteligência acima da média estava
relacionada ao nível de maturação de uma região da massa cinzenta chamada
córtex pré-frontal, que fica na região próxima à testa.
"Mas, hoje em
dia, graças aos estudos com ressonância magnética funcional e outras técnicas,
sabemos que esse local relacionado à inteligência é muito mais amplo",
explica a médica.
"Na verdade, não
se trata de um lugar específico. O mais relevante aqui é a rede de neurônios e
como essas células se conectam e interagem entre si", complementa ela.
Uma das pesquisas a
detalhar esses aspectos foi publicada em 2014 por
especialistas do Centro Basco de Cognição, Cérebro e Linguagem, na Espanha, e
das universidades da Califórnia em Berkeley e Davis, nos Estados Unidos.
"As melhoras nas
funções cognitivas superiores desde a infância até a idade adulta refletem a
integração de sistemas cerebrais complexos e amplamente distribuídos",
escrevem os cientistas.
Ou seja, a forma como
os neurônios — responsáveis por transmitir impulsos nervosos relacionados ao
raciocínio e à memória, entre outras funções — "conversam" e criam
conexões fortes parece ser determinante por aqui.
Aliás, a formação de
uma rede neuronal sólida desde a infância é algo importante por toda a vida,
segundo pesquisadores — e pode até retardar o aparecimento dos sinais de demência na
velhice.
Nunes acrescenta que,
durante a nossa formação, existe uma janela valiosa, em que os estímulos
cognitivos trazem impactos ainda mais profundos.
"Essa
plasticidade cerebral está no seu máximo de ação até os três anos de
idade", aponta ela.
Nesse contexto, o
termo plasticidade se refere justamente a essa capacidade das células nervosas
de se modificarem e firmarem conexões fortes por meio do aprendizado e dos
estímulos externos.
Nunes destaca os trabalhos do economista americano James Heckman. Ele defende a ideia de que investir na
primeira infância, nesses primeiros anos de vida, é a principal estratégia para
formar cidadãos com mais habilidades e capacidades.
"E isso tem um
fundamento na neurociência, porque estamos falando do período de maior
habilidade cerebral", diz ela.
"Portanto, se o
indivíduo receber esse apoio inicial, fica mais fácil para ele ter um melhor
desempenho e uma maior qualidade de vida lá na frente."
E, para alguém que já
possui naturalmente uma inteligência fora do comum ou uma habilidade específica
excepcional, esses estímulos podem representar o salto necessário para alcançar
um certo status de genialidade numa determinada área do conhecimento.
"Por outro lado,
a pessoa pode até possuir uma determinada habilidade, mas, se ela cresce num
ambiente desfavorável, ela não a desenvolve", observa Nunes.
Vale ponderar aqui
que, por mais que os três primeiros anos de vida representem de fato essa
janela valiosa, exercitar o cérebro em qualquer faixa etária é fundamental para
manter a memória e o raciocínio afiados.
·
Quando a genialidade vira um fardo
Nunes alerta que, a
depender de como a inteligência fora da curva da criança é vista pelos mais
velhos, ela pode se tornar uma fonte de aflição para os mais jovens.
"É positivo que
os pais reconheçam as habilidades dos filhos e a estimulem", pontua ela.
"Mas a criança
não pode se tornar apenas aquela habilidade. Podemos estar diante de um gênio
da Matemática, mas ele ainda é uma criança."
Isso acontece quando o
menino ou a menina são apenas reconhecidos pelo dom que possuem, e não podem
mais fazer outra coisa ou são até desencorajados a explorar outras áreas do
conhecimento.
"Nesse momento,
aquilo deixa de ser algo que a criança gosta, se alegra em fazer, para virar um
fardo", destaca a neuropediatra.
"A função dos
pais aqui é buscar um equilíbrio e nunca jogar em cima de crianças pequenas
responsabilidades ou expectativas tão grandes", conclui ela.
Fonte: BBC News Brasil
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