Sentidos das Diretas Já, 40 anos depois
Este artigo desenvolve
um argumento teórico, duas hipóteses de interpretação política e uma lição
histórica. O argumento teórico é que, na época histórica contemporânea, as
passagens de regimes ditatoriais para regimes democráticos podem assumir,
essencialmente, duas formas ou padrões típicos: transições concertadas ou
revoluções políticas. Não se encontrarão na história, contudo, processos
“quimicamente puros”. Mobilizações com impulso revolucionário para derrubar regimes
odiados não excluem, em alguma medida, negociações ou acordos.
A primeira hipótese é
que o plano de uma abertura lenta e gradual de Geisel/Golbery/Figueiredo – um
projeto de transição política controlada para um regime bonapartista – foi,
parcialmente, implodido. O respeito das formas institucionais do processo de passagem
da ditadura para a democracia pareceu uma transição negociada, mas elas
ocultaram o conteúdo político-histórico do que tinha acontecido. O governo se
manteve até a eleição de Tancredo e Sarney pelo Colégio Eleitoral, mas junto
com Figueiredo era a ditadura que tinha sido vencida. As Diretas Já não foram
em vão.
A segunda hipótese é
que a direção do PMDB estava dividida em relação ao objetivo das Diretas Já,
desde o início da campanha. Ulysses Guimarães de um lado, e Tancredo Neves do
outro, disputavam entre si a candidatura à presidência. Ulysses queria ser candidato
em eleições diretas e Tancredo acreditava que só poderia vencer em eleições
indiretas. Mas a rivalidade pessoal expressava diferentes projetos. Ulysses
apostava na campanha porque acreditava na possibilidade de dividir o PDS e
aprovar as eleições diretas dentro do Congresso Nacional. Tancredo manobrava
com a campanha para garantir um racha no partido da ditadura, e conquistar
maioria dentro do Colégio Eleitoral.
A lição histórica é
que, na luta de classes, mais importante que apostar na divisão dos inimigos de
classe, o decisivo é confiar na mobilização de massas dos trabalhadores, da
juventude e das massas populares oprimidas. Explorar os conflitos entre distintas
frações da classe dominante para abrir um caminho é inteligência tática. Mas
nada é mais fundamental que preservar a independência de classe – a firmeza
estratégica – para não deixar que o povo seja manipulado.
O governo Figueiredo
não alcançou, plenamente, o objetivo que todas as ditaduras em crise desejam:
uma passagem indolor que garantisse a inviolabilidade de interesses que
defendiam, embora tenha conseguido impunidade para os crimes da ditadura. A
queda do regime foi amortizada por uma negociação, e o projeto de transição foi
deslocado. Figueiredo não foi derrubado, mas a ditadura acabou. Figueiredo não
tinha uma estratégia de transição para um regime democrático-eleitoral com
plenas liberdades cívicas e políticas. Como assinalou o insuspeito Elio
Gaspari, em geral, deslumbrado pelo papel de Geisel:
Geisel
carregava inteiro o saco de maldades da ditadura. O que o distanciava de
Carter, aproximando-o dos generais Videla e Pinochet não era apenas uma visão
diversa da questão dos direitos humanos, mas uma compreensão antagônica da
democracia.
A oposição liberal
encarou desde o início, ou seja, logo depois da posse dos governadores em 15
março de 1983, a articulação da campanha pelas Diretas como uma campanha de
pressão para negociações com Figueiredo. Os limites burgueses da direção do
PMDB condicionavam a sua participação em uma luta através da mobilização
popular. Desde antes do comício na Praça da Sé, Tancredo já estava decidido a
ser candidato na eleição indireta pelo Colégio Eleitoral.
A própria direção do
PMDB já se sentia derrotada antes de começar a luta nas ruas. Quase não houve
presença de empresários na campanha pelas Diretas. Os que subiram nos palanques
foram uma exceção. Da grande mídia, nenhum canal de TV e somente um jornal apoiou
a campanha, a Folha de São Paulo. Por que, depois de vinte anos, tanta
hesitação burguesa? Pelo temor da dinâmica da mobilização dos trabalhadores e
da juventude. Porque não podiam saber, por antecipação, quais seriam os custos
de uma desestabilização de Figueiredo.
No dia seguinte ao
comício da Praça da Sé de 25 de janeiro de 1984, em editorial, a Folha de São
Paulo comemorava a grandiosidade da manifestação, mas destacava que foi uma
concentração ordeira, pacífica, civilizada. Ou seja, suspirava de alívio,
porque foi controlada. O PMDB abandonou, na verdade, a luta pelas Diretas antes
da derrota do 25 de abril, quando ficou claro que não seria possível derrotar
Figueiredo no Congresso. A emenda Dante de Oliveira não teria os votos para
aprovação “a frio”. Seria incontornável uma radicalização das mobilizações de
massas. Algo impensável pelas lideranças da “Frente Ampla”.
Tancredo estava em
negociações discretas, porém, não secretas, com os líderes do Estado-Maior das
Forças Armadas, entre eles o general-ministro do Exército Leônidas Pires
Gonçalves, com uma parte da cúpula da CNBB da Igreja Católica, e ninguém menos
do que a Rede Globo (que silenciou, escandalosamente, sobre o primeiro comício
de massas na Praça da Sé). A Folha de São Paulo noticiou:
O
porta-voz do Palácio do Planalto, Carlos Átila comentou: o governo só pode ver
com bons olhos a atitude do governador Tancredo, o presidente Figueiredo tem
reafirmado seu desejo de negociar”.
A participação de
Tancredo em negociações com a ditadura, aceitando o seu nome como candidato,
antes da votação da emenda Dante no dia 25 de abril era pública: “Tancredo
jogou a pá de cal na Emenda (..) ao se oferecer como mediador entre as
oposições e o governo Federal tendo já um plano mais de governo do que de
mediador”.
Na verdade, Tancredo
iniciou negociações com a direção do PDS desde antes do comício da Praça da Sé
de 25 de janeiro de 1984. Aliás, o que merece ser considerado excepcional no
processo das Diretas Já não é que Tancredo tivesse conspirado com a ditadura,
mas que Ulysses e Montoro tenham convocado à mobilização de massas contra
Figueiredo.
A desconfiança da
participação popular foi o padrão da conduta política da burguesia brasileira.
Só a obstinação da alta oficialidade das Forças Armadas na defesa obtusa do
regime, quando uma nova relação de forças interna e internacional o deixaram
obsoleto, pode explicar a decisão in extremis de Ulysses e Montoro de resolver
conflito apelando à mobilização de massas.
O processo das Diretas
foi grande o bastante para consolidar nas ruas a conquista das liberdades
democráticas, e derrotar o regime. Foi uma mobilização que venceu a ditadura,
porém, paradoxalmente, não culminou com a queda do governo Figueiredo. A pactuação
de um consenso entre a direção do PMDB e as forças políticas que sustentavam a
ditadura – PDS e, sobretudo, Forças Armadas – resultou em um compromisso
político com uma solução institucional de conciliação. O apoio na classe
dominante, quase unânime, por uma solução negociada deixou a fração de Ulysses
Guimarães isolada.
Renunciando à
continuidade da campanha para conquistar eleições diretas imediatas, uma
campanha que exigia a radicalização das formas de luta para desafiar, tanto
Figueiredo como o Congresso controlado pela ditadura, a oposição liberal
liderada pelo PMDB fez o cálculo que seria demasiado perigoso continuar
mobilizando milhões de pessoas nas ruas.
Mas o “grande acordo”
não teria sido possível sem a mobilização de massas que subverteu o país, e
impôs uma nova relação política e social de forças, que explica a divisão do
partido da ditadura liderado por Sarney, e o apoio à candidatura de Tancredo Neves
no Colégio Eleitoral. Comparativamente, na Argentina triunfou uma revolução
democrática em 1982 contra a Junta militar liderada por Galtieri, e no Chile
vingou um processo de transição depois do afastamento de Pinochet. No Brasil
prevaleceu uma dinâmica intermediária.
As Diretas Já, como
ficaram conhecidas as jornadas de 1984, foram a maior mobilização política de
massas da história do Brasil do século XX. Foi na campanha pelas Diretas que o
Datafolha iniciou o cálculo de pessoas presentes nas manifestações usando a medição
do número de metros quadrados ocupados pelos presentes. Este método é um
critério pouco polêmico. O Datafolha estimou que 300 mil pessoas estiveram na
Praça da Sé em São Paulo no dia 25 de janeiro de 1984. Durante os noventa dias
de mobilizações estima-se que saíram às ruas em todo o país mais de 5 milhões
de pessoas. Em 1984, a PEA (População Economicamente Ativa) era estimada em 40
milhões. A escala desta mobilização corresponderia agora em 2024 a algo próximo
a 10 milhões nas ruas.
As Diretas tiveram
desde o início a direção liberal-burguesa do PMDB, embora Lula fosse o orador
mais entusiasticamente aplaudido em todos os atos, e a vanguarda mais
mobilizada fosse petista. A ditadura foi surpreendida pela decisão de uma
parcela da direção do principal partido de oposição, que venceu as eleições
para governadores em 1982, de tentar impulsionar uma mobilização de rua pelas
Diretas Já para a presidência, subvertendo o calendário da transição controlada
pelo regime militar.
O impacto da crise
econômica aberta com a crise da dívida externa foi decisivo. Em dois anos,
entre 1982/84, o crescimento da inflação e do desemprego abriram uma crise
social que incendiou o mal-estar entre os trabalhadores e provocou uma séria,
ainda que minoritária, divisão burguesa, arrastando a classe média para o campo
da oposição à ditadura. A “fadiga” do regime era avassaladora. Esta nova
relação política de forças se traduziu em um isolamento político do governo que
inviabilizou o projeto da transição pelo alto, tal como tinha sido elaborado
durante o mandato de Geisel/ Golbery. Uma nova geração entrou em cena e, aos
milhões, descobriu a força social de choque de sua mobilização.
Embora o governo
Figueiredo tenha sido paralisado, não chegou a ser derrubado no dia 25 de abril
de 1984. A crise do governo se transformou em crise de regime. A principal
instituição da ditadura, as próprias Forças Armadas, descobriram-se
desmoralizadas diante da vontade da nação expressa nas ruas. Figueiredo ficou
suspenso no ar, ou seja, por um fio. Faltou o empurrão final.
Até o fim do mandato,
Figueiredo deixou de poder governar. Sua queda foi evitada por uma operação
política complexa que envolveu governadores da oposição como Tancredo e
Brizola, o alto comando das Forças Armadas, e até uma ala da Igreja Católica.
Somente o jovem PT se posicionou contra, boicotou o Colégio Eleitoral e não
votou na chapa Tancredo/Sarney. O governo não ruiu, mas a ditadura acabou.
Figueiredo manteve seu
mandato, mas, politicamente, o regime militar foi derrotado. As liberdades
democráticas conquistadas nas ruas foram garantidas e, finalmente, o regime
militar acabou. A força política das Diretas Já revelou-se insuficiente para
alcançar, imediatamente, o direito de eleger pelo sufrágio universal o
presidente da República. A tática de convocação de um de greve geral para 25 de
abril foi defendida pela CUT, liderada por Jari Meneguelli. Ulysses chegou a
concordar com a ideia de uma paralisação cívica nacional, chamada por patrões e
trabalhadores, mas Tancredo Neves vetou.
A democracia liberal
brasileira nasceu de uma luta política de massas, a ditadura foi deslocada, mas
o governo Figueiredo não caiu. O fim da ditadura foi amortecido por um grande
acordo que, finalmente, apesar de ter sido respeitado, nem sequer pôde ser comprido.
Quis o acaso que o resultado das Diretas terminasse sendo esdrúxulo: Tancredo
Neves foi eleito presidente, tendo José Sarney como vice, mas não tomou posse,
porque veio a falecer vítima de uma doença que, misteriosamente, ninguém
suspeitava existir.
Sarney, o presidente
civil do partido que defendia a ditadura militar, foi o primeiro presidente não
eleito do regime democrático-liberal, mas ficou refém da maioria emedebista
eleita para a Constituinte em 1986. Tancredo passou uma rasteira em Ulysses, o
destino passou uma rasteira em Tancredo, e Ulysses passou uma rasteira em
Sarney.
Tem coisas que só no
Brasil.
Fonte: Por Valerio
Arcary, em Outras Palavras
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