Abin paralela repete estruturas de
espionagem clandestina da ditadura
NO FINAL DA DÉCADA de
1950, o embaixador brasileiro Manuel Pio Corrêia, montou no Itamaraty uma
estrutura clandestina de espionagem para monitorar e investigar cidadãos
brasileiros e estrangeiros supostamente envolvidos em atividades comunistas. A
estrutura era tão secreta que seguiu funcionando à revelia do presidente João
Goulart.
Anos mais tarde, em
1966, sob os auspícios da Ditadura Militar e seu famigerado Sistema Nacional de
Informações, o SNI, a estrutura de espionagem montada pelo embaixador foi então
“oficializada” e recebeu o nome de Centro de Informações do Exterior, ou apenas
CIEx.
A função do órgão
também seria de espionagem: ele monitorava cidadãos brasileiros no exterior,
especialmente exilados políticos, e as atividades de “subversivos” estrangeiros
no país.
Mas eles foram além:
em conluio com outras ditaduras do Cone Sul, participaram do planejamento e
execução de sequestros de opositores políticos brasileiros e estrangeiros –
tanto em solo nacional, quanto no exterior.
Estima-se que o órgão
de espionagem esteja, direta ou indiretamente, envolvido em pelo menos 68 casos
de desaparecimentos forçados ou assassinatos de brasileiros por agentes da
Ditadura Militar. O número de vítimas estrangeiras é desconhecido.
Leitores atentos devem
ter notado que escrevi “oficializado” entre aspas, pois o CIEx nunca constou na
estrutura formal do Itamaraty. Tanto que, apesar de inúmeros relatos, a sua
existência só foi comprovada em 2008.
E havia um motivo para
isso. A estrutura de espionagem totalmente clandestina do órgão permitia que
seus agentes da ditadura agissem de forma sorrateira. Na maioria dos casos,
totalmente indetectável, inclusive por agentes de outros órgãos de inteligência
do país.
E essa máquina era
voltada não apenas contra os opositores da ditadura, mas também contra seus
próprios aliados: embaixadores, políticos, empresários, artistas, etc.
A vigilância do CIEx
recaía sobre todos. Por isso mesmo, seus trabalhos não estavam sujeitos às
normas internas do Itamaraty ou da própria Constituição.
Esse departamento de
espionagem seguia quase que exclusivamente as determinações de seus diretores,
que se reportavam diretamente ao comandante do SNI. Este, por sua vez, estava
subordinado diretamente ao então presidente da República.
E o CIEx não estava
isolado nessa atividade. Outros órgãos de inteligência, como o Centro de
informações do Exército, o CIE do, o Centro de Informações da Marinha, o
CENIMAR, e o Centro de Informações da Aeronáutica, CISA, e o próprio SNI, seguiam o mesmo padrão
de atuação por meio de estruturas clandestinas implementadas nos órgãos
oficiais.
Estruturas
clandestinas que se reportavam, mais uma vez, ao presidente da República.
Estruturas que culminavam – vejam só – nos chamados “centros clandestinos de
tortura e detenção” da ditadura.
Mas que também
alimentavam a política nacional com informações, inclusive falsas, favorecendo
aliados do regime e prejudicando aqueles que, por um motivo ou outro, eram
considerados “problemáticos” pelos militares.
E aqui atingimos o
ponto crucial, pois a história, ao que parece, se repetiu. Um inquérito da
Polícia Federal revela que talvez estejamos diante de uma estrutura semelhante
no caso da Abin paralela.
Segundo a
investigação, entre os anos de 2019 e 2022, o deputado federal Alexandre
Ramagem, na época diretor-geral da Abin, montou na instituição uma verdadeira
estrutura clandestina de espionagem de cidadãos brasileiros com o único intuito
de favorecer o então presidente Jair Bolsonaro.
Essa estrutura foi
utilizada para monitorar e produzir informações a respeito de seus opositores
políticos, incluindo-se aí jornalistas, e para alimentar, por meio de
relatórios apócrifos, narrativas falsas que circulavam nas redes sociais.
Mas isso não é tudo.
Segundo o mesmo inquérito, a estrutura clandestina de espionagem foi utilizada
para ajudar os advogados de defesa do senador Flávio Bolsonaro no caso das
rachadinhas e até para monitorar os amigos dos filhos do ex-presidente.
Com efeito, havia na
Abin uma estrutura paralela, muito semelhante às ramas clandestinas dos órgãos
de inteligência da ditadura.
E, a exemplo delas,
havia também nessa Abin paralela uma estrutura cujo funcionamento não estava
sujeito às normas internas e aos trâmites costumeiros da instituição, tampouco
à Constituição.
Segundo o inquérito
policial, tudo isso era feito de forma deliberada para que essa operação
dissimulada não pudesse ser rastreada e denunciada por outros servidores.
Não por coincidência,
consta no inquérito que todas essas ações foram executadas por policiais
federais de confiança de Alexandre Ramagem. Este, por sua vez, é notoriamente
um homem de confiança da família Bolsonaro.
Aqui surgem algumas
questões importantes.
A primeira é a mais
óbvia: quem na hierarquia do governo poderia ordenar a criação dessa Abin
paralela? No passado, as ramas clandestinas da ditadura se remetiam ao
presidente da República. E essa?
A segunda é que é
fundamental compreender se essa estrutura de espionagem clandestina deixou de
atuar após as eleições de 2022, ou se seguiu, como o antigo aparato de
vigilância montado pelo embaixador Pio Corrêa, agindo à revelia do atual
presidente.
A Polícia Federal,
inclusive, investiga se Alexandre Ramagem continuou sendo municiado com
informações privilegiadas após seu afastamento da direção-geral da Abin.
A terceira talvez seja
a mais urgente: compreender se essa é a única estrutura de espionagem
clandestina criada durante o governo Bolsonaro ou se existem outras.
E digo isso lembrando
especialmente de algumas denúncias sobre aquisições suspeitas de ferramentas de
vigilância pelo Exército Brasileiro, da Cellebrite UFED, e das tentativas de
aquisição do sistema Pegasus e Sherlock pelo vereador Carlos Bolsonaro.
O que eles pretendiam
com isso?
Encerro o texto com
esses questionamentos, mas também com a certeza de que estamos diante de um dos
maiores escândalos do governo Bolsonaro. Talvez o maior até o momento.
A existência de uma
estrutura clandestina de espionagem não é um evento trivial. Pelo contrário, é
um sinal claro de que se desenhava no coração do Executivo um estado de
exceção.
Regimes autoritários
como a Ditadura Militar não nascem da noite para o dia e não se sustentam no
vento. Eles nascem e se sustentam por meio de estruturas clandestinas como o
antigo CIEx, o SNI, e o DOI-CODI.
Estruturas
clandestinas como essa Abin paralela.
ALEXANDRE DE MORAES CITA INTERCEPT PARA
AUTORIZAR OPERAÇÃO DA PF SOBRE ESPIONAGEM ILEGAL NA ABIN
OS RELATÓRIOS
produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência para alimentar a defesa de
Flávio Bolsonaro são um indício de que há um aparato clandestino de espionagem
e polícia política funcionando nos porões do governo Jair Bolsonaro.
O colunista Guilherme
Amado, da revista Época, publicou reportagem mostrando que a Abin produziu pelo
menos dois relatórios. Eles instruíram Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre
como agir para conseguir documentos capazes de anular o processo judicial a que
o senador responde pela acusação de desviar salários de funcionários de
gabinete.
O caso conhecido como
o das rachadinhas envolve o ex-assessor Fabrício Queiroz, amigo do presidente
da República, preso em junho na casa do advogado Frederick Wassef, que
trabalhou para Jair Bolsonaro e para o próprio Flávio.
Nesses dois
documentos, segundo a Época, a Abin descreve o que diz ser uma organização
criminosa na Receita Federal, de onde partiram as informações que deram início
à investigação. O objetivo dos relatórios era contribuir com a tese da defesa
de Flávio de que houve uma devassa ilegal dos dados fiscais dele.
Um dos relatórios traz
no campo destinado a esclarecer sua finalidade a descrição “Defender FB no caso
Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos
dados fiscais de FB”, segundo a Época.
A existência de uma
Abin clandestina era uma suspeita alimentada há tempos em Brasília. Ela existia
publicamente desde que o próprio presidente Bolsonaro revelou ter um “sistema
particular de informações” em uma reunião com ministros. Agora, a história ganha
um novo caminho para a possível descoberta desse aparato ilegal.
Nesta sexta-feira, o
Intercept conversou com uma fonte da Abin, que deu detalhes do caso. A fonte
revelou que tanto ela como seus colegas desconfiam da mesma pessoa como sendo a
responsável pelo relatório. Trata-se de Marcelo Bormevet, um policial federal
cedido à agência que é também um bolsonarista entusiasmado nas redes sociais.
Marcelo Bormevet está
na Abin desde 24 de setembro de 2019. Ocupa um posto-chave no Centro de
Inteligência Nacional, o CIN, que surgiu formalmente em agosto de 2020, mas
vinha sendo estruturado às escondidas desde pelo menos o início do ano.
Bormevet é coordenador-geral de Credenciamento de Segurança e Análise de
Segurança Corporativa.
O CIN tem a atribuição
de acompanhar “assuntos de inteligência estratégica”, aí incluídos segurança
pública, crime organizado e manifestações políticas. Goza ainda a prerrogativa
de fazer o que, na Abin, se chama de ‘pesquisas sociais’ – a investigação prévia
sobre indicados para cargos no governo.
Ex-agente
penitenciário no Distrito Federal, Marcelo entrou para a Polícia Federal em
2005. No Twitter, é um bolsonarista típico: retuíta posts de Jair e Carlos
Bolsonaro e faz proselitismo para o Aliança pelo Brasil, partido que não saiu
do papel. Também compartilha notícias falsas sobre a eficácia da cloroquina no
tratamento da covid-19 e lança dúvidas sobre as vacinas que o governo federal
se esforça para barrar no Brasil.
• Um mistério até mesmo para os colegas
O detalhe é que pouca
gente na Abin sabe exatamente o que faz a coordenação tocada por Bormevet. Não
há sequer uma descrição das funções dela no organograma da agência, algo
incomum mesmo no setor de inteligência.
A criação do CIN, em
agosto passado, causou desconfiança. O deputado Alessandro Molon, do PSB do
Rio, tenta sustá-la com um projeto de decreto legislativo que apresentou dias
depois do novo departamento da Abin aparecer no Diário Oficial. Na justificativa,
ele argumentou que ela “pode dar respaldo para perseguição de opositores
políticos”. Até agora, porém, o projeto de Molon não saiu do lugar.
No mesmo decreto que
criou o CIN, Bolsonaro também autorizou a Escola de Inteligência, o centro de
preparação dos agentes da Abin, a dar treinamento a quem não é servidor da
agência. Para a oposição, as mudanças abrem brecha para que a agência funcione
como um órgão de governo e não de Estado – justamente o que se vê no caso
Flávio Bolsonaro.
O autor dos
relatórios, porém, não parece ter passado pela escola da Abin. Os olhos
treinados do pessoal da inteligência de quem levantamos informações estranharam
a redação dos relatórios produzidos para Flávio Bolsonaro. A linguagem nada tem
em comum com o padrão adotado pela Abin.
“Todos os analistas de
inteligência passam por um treinamento para seguir uma espécie de manual de
redação”, nos disse a fonte. A ideia é justamente adotar uma linguagem que não
identifique quem produziu um determinado papel, uma linguagem neutra e burocrática.
• Basta querer para identificar o autor
Chama a atenção,
ainda, o fato dos relatórios não terem sido gerados em nenhum dos dois sistemas
usados pelos analistas para produzir esse tipo de documento. Não é à toa: por
meio deles seria muito fácil identificar o autor. Os documentos foram enviados ao
filho 01 do presidente por WhatsApp, segundo a Época.
Ainda assim, uma
investigação daria conta de identificar quem usou a estrutura da Abin para
salvar o pescoço de Flávio Bolsonaro. “Basta procurar os logs em bases de dados
à disposição de analistas da Abin e rastrear pedidos feitos a outros órgãos em
nome da agência”, nos revelou a fonte. Neste caso, já se sabe até onde procurar
– a Receita Federal. Isso, claro, se o governo estivesse disposto a esclarecer
alguma coisa. Não está.
Em nota divulgada
hoje, o gabinete do ministro Augusto Heleno, a quem a Abin está subordinada,
segue tentando negar suas digitais no caso. “As acusações são desprovidas de
veracidade, se valem de falsas narrativas e abordam supostos documentos que não
foram produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência”, diz o texto.
Ocorre que a defesa de
Flávio Bolsonaro confirmou à Época que os documentos foram de fato produzidos
pela Abin. Enviamos perguntas ao e-mail funcional de Bormevet e à assessoria de
comunicação da agência. Ninguém nos respondeu.
A sexta-feira foi um
dia de confusão na sede da Abin, em Brasília. O caso Flávio Bolsonaro tem o
potencial de colocar uma bomba atômica no colo do presidente da República e de
Augusto Heleno, seu ajudante de ordens. Mas, na Abin, são poucos os que veem chance
de que o diretor-geral da agência, Alexandre Ramagem, um delegado da PF que é
amigo da família presidencial, seja demitido por causa dele.
Os tempos, afinal, são
sombrios.
Fonte: The Intercept
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