O que são as ordens mendicantes da Igreja, que cuidam dos pobres desde
a Idade Média
A Europa atravessava um momento de transição
naquele período, o fim da chamada Baixa Idade Média. Depois do feudalismo rural
ter experimentado seu auge, burgos começavam a ganhar espaço em um movimento de
urbanização em que a velha divisão entre servos que trabalham, nobres que
guerreiam e religiosos que rezam era insuficiente.
Uma classe de comerciantes, ainda incipiente,
começava a ser visível. Ao mesmo tempo, pela própria natureza da organização da
vida em cidades, a pobreza deixava de ser uma chaga escondida e passava a ser
perceptível nos espaços públicos.
Para historiadores, este contexto foi o causador do
surgimento das chamadas ordens mendicantes, organizações dentro da Igreja
Católica que existem até hoje — entre as mais famosas estão os franciscanos e
os dominicanos. Isto porque, para muitos religiosos de então, não fazia mais
sentido a ideia de um religioso enclausurado, em um mosteiro distante no alto
de uma montanha. Para eles, a Igreja não deveria se esconder dos problemas do
mundo, mas sim ir de encontro a eles.
"Essas ordens surgem num momento de mudança do
mundo rural, em que o mosteiro é uma unidade autônoma, longe das tentações do
mundo, para a vida urbana", explica o historiador Alex Catharino,
professor na Fundação da Liberdade Econômica. "É um momento de mudanças
não apenas sociais, mas também artísticas, culturais e intelectuais."
Ele lembra que a partir do ano 1000, a Idade Média
viu um momento em que havia Cruzadas e o renascimento do comércio. E isto
"acarretou no ressurgimento da vida urbana, mudando o centro da vida
espiritual para as catedrais e também da vida intelectual para as universidades",
comenta o historiador.
"Nesse contexto que emergem as ordens
mendicantes e elas começam uma expansão para toda a Europa, especialmente as
cidades", acrescenta. "Os religiosos deixam a paz de estarem
enclausurados para se lançar num esforço de maior evangelização do mundo fora
do mosteiro."
• Resposta
ao tempo
"Esses frades responderam às novas
necessidades de vida cívica que surgiam. Passaram a frequentar, principalmente,
as cidades e atuar de forte modo nas universidades. Não é por acaso que a
maioria dos teólogos deste período eram frades de ordens mendicantes, como é o
caso de São Tomás de Aquino, dominicano, e São Boaventura, franciscano",
enumera Catharino.
"E apesar dos votos de pobreza, não havia
incompatibilidade entre a pobreza material e a riqueza espiritual e
intelectual. Eles ajudavam pobres e doentes e também serviam a Igreja com a
cultura literária e o estudo", diz o historiador.
Frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão
Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão
Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, situa o nascimento
das ordens mendicantes em um momento em que o chamado movimento pauperista era
muito forte na Europa.
"A experiência religiosa dos mosteiros, mesmo
os reformados como os cistercienses [da Ordem de Cister], não conseguia
responder ao desenvolvimento cultural, social e econômico que se dava no
período, com as cidades cada vez maiores e mais presentes", afirma ele.
"Se a realidade dos mosteiros era compatível
com a vida rural, feudal, com as cidades crescendo, a resposta da Igreja veio
nesse campo", comenta ele. "Havia uma Igreja poderosa e influente
que, em contrapartida, não atendia ao surgimento da classe de comerciantes.
Dessa realidade surgem os movimentos pauperistas."
Alguns desses grupos, como os cátaros e os
valdenses, foram tachados de hereges pelos líderes do catolicismo. No caso
deles, como explica Guimarães, havia uma negação do material. Mas com os
dominicanos e os franciscanos, a postura de não enriquecimento tinha a
justificativa de uma volta aos pobres, de um serviço apostólico e social.
Consideradas as ordens mendicantes mais antigas,
elas surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Os franciscanos foram oficialmente
fundados em 1209, sob o nome de Ordem dos Frades Menores, por Francisco de
Assis. Os dominicanos, ou Ordem dos Pregadores, foram oficializados pela Igreja
em 1216 — a instituição foi fundada por Domingos de Gusmão (1170-1221). Em 1218
foi criada a Ordem de Nossa Senhora das Mercês, ou os mercedários. A Ordem do
Carmo, ou os carmelitas descalços, data de 1226.
"Elas têm em comum a adoção de uma vida mista,
que une a vida contemplativa e vida ativa. Além da contemplação que era adotada
pelos monges, esses frades também abraçavam a vida antes adotada por outros
religiosos seculares, militares e hospitalares", contextualiza o
historiador Catharino. "Esses frades adotavam ainda, além dos votos de
obediência e castidade, o voto de pobreza, rejeitando para si a aquisição e
acumulação de propriedades, abraçando a vida comunitária e vivendo de
doações."
"Cada uma dessas ordens tem uma constituição,
tem uma origem, tem uma natureza, uma finalidade e suas características. Cada
uma tem um carisma a ser trabalhado. Mas todas nasceram em um contexto
medieval", afirma frei Reginaldo Roberto Luiz, da Ordem dos Padres
Mercedários em Roma.
"Os fundadores por excelência do fenômeno são
os dominicanos e os franciscanos", pontua a vaticanista Mirticeli
Medeiros, pesquisadora de história do cristianismo na Pontifícia Universidade
Gregoriana, em Roma.
"Mas podemos enquadrar dentro desse novo
estilo de vida os carmelitanos, agostinianos, trinitários, mercedários e tantos
outros, que surgiram depois. Lembrando que o nome, 'mendicantes', é uma
descrição feita pelos historiadores. Os franciscanos e dominicanos, em si,
jamais atribuíram esse nome às suas ordens religiosas."
• Pobreza
no centro da missão
"Essas novas ordens têm muito claro que é
preciso ter a pobreza de modo central. Em vista de não enriquecer. São
conhecidas como mendicantes por conta disso, dessa centralidade na vida
apostólica", pontua Guimarães. "Não são mais monges, estão no centro
da cidade. Vivem e se deparam muito mais com a pobreza, diferentemente da
realidade do campo em que os pobres vivem muito mais afastados. Na cidade, as
pessoas estão aglomeradas, e a pobreza é mais visível e provocativa."
Para sobreviver, eles recorrem à chamada
"providência divina", traduzida por esmolas de benfeitores. Por isso
o termo "mendicante". Guimarães explica, filosoficamente, que a ideia
é "mendigar como justamente o ato de não ter propriedade, evitar a
propriedade". Esses novos religiosos assumem um modo de vida despojado,
muitas vezes itinerante. E, principalmente, um compromisso de que não cairiam
novamente na "espiral de enriquecimento" que, àquela altura,
contaminava o clero.
"Em Francisco de Assis essa percepção é
central", afirma o frade. "Ao abraçar a vida religiosa, ele vê que
não quer ser monge porque nota o enriquecimento dos mosteiros e o
distanciamento dos mesmos. Propõe uma vida mais radical com a mensagem de
Jesus, priorizando a doação, a ajuda ao próximo."
Mas se o surgimento das ordens mendicantes era para
dar respostas a alguns problemas daquele momento histórico, é preciso ressaltar
também que havia a necessidade de se posicionar perante uma questão que
incomodava no cerne da própria Igreja: a corrupção da alta cúpula, que
enriquecia às custas da fé e dos jogos de poderes.
"Foi uma resposta direta à corrupção da Igreja
e ao desejo de recobrar o cristianismo das origens e a radicalidade da vivência
do Evangelho", ressalta Medeiros. "Por isso que, nós, historiadores,
identificamos esse movimento como uma manifestação."
Ela frisa que esses religiosos, em sua origem,
"sustentavam um ideal de pobreza e de uma vida religiosa sem privilégios,
vivendo somente da doação de fiéis". "Se tornaram um diferencial
porque a referência da vida religiosa na época era a vida monástica, [cujos
membros] acumulavam propriedades e tinham meios para garantir a própria
subsistência."
• Fora
das paredes do claustro
Para o estudioso de cristianismo antigo Thiago
Maerki, pesquisador na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado
da Hagiography Society, nos Estados Unidos, o ponto importante é essa visão ao
encontro do mundo que esses novos religiosos da época adotaram, ao contrário da
"espiritualidade de reclusão" dos monges.
"As ordens mendicantes vieram com pregação,
apostolado, assistência aos pobres. De certa forma retiraram a espiritualidade
de dentro dos muros e a inseriram no meio do povo", compara ele.
"Nesse sentido, foram pautadas pelo movimento urbano."
"Se antes a ideia era fugir do mundo, porque o
mundo 'era pecaminoso', a novidade era ir em direção ao povo, em uma volta ao
que fazia o cristianismo primitivo", ressalta Maerki.
• Começo
da reforma
Essa atitude de serviço e de vivência dos valores
do evangelho fez com que essas ordens mexessem com o centro da Igreja. Era como
um questionamento vindo de dentro para fora. Ao adotarem uma postura mais
social e pobre, junto aos desfavorecidos, esses religiosos escancaravam a
maneira com que muitos religiosos viviam, ostentando riqueza.
Para pesquisadores, isso acabaria sendo um dos
fatores que, três séculos mais tarde, descambaria no movimento da reforma, em
que o cristianismo acabou rachando e surgiram as igrejas protestantes.
"Elas [as ordens mendicantes] representavam,
por excelência, o espírito da época", diz a vaticanista Medeiros. "É
resultado de uma sucessão de fatos desde a reforma gregoriana [realizada entre
1073 e 1085], através da qual a própria hierarquia da Igreja sentiu a
necessidade de mudanças. A Igreja, grosso modo, estava cansada de seu próprio
mundanismo, digamos assim. Há quem diga, por exemplo, que Lutero [que fez a
reforma protestante, em 1517] é fruto de todo esse espírito reformador que
começava a se manifestar na Europa."
"As ordens mendicantes quebravam o círculo em
que os religiosos não respondiam àquela época em que a pobreza crescia. Foi um
movimento que pedia novas formas eclesiais", comenta Guimarães.
Nos tempos atuais, essas ordens ainda existem e
desempenham seus trabalhos na sociedade. "Apesar de mudanças conforme o
tempo foi passando, muito se mantém desse espírito medieval de unir a vida
contemplativa e ativa, os votos de obediência e castidade e também de
pobreza", avalia Catharino. "A Igreja não é estática. Tradição quer
dizer, para muitos religiosos, a continuidade entre passado, presente e
futuro."
Ele ressalta que, no entendimento desses
religiosos, "defender a tradição não é cultuar as cinzas, mas passar
adiante a chama". "Muitas dessas ordens se mantêm com o mesmo nome,
mas atingem agora outras finalidades, principalmente trabalhos educacionais e
obras sociais. Muitas paróquias e igrejas dessas ordens hoje tomam conta de
escolas, preocupadas em evangelizar, principalmente em comunidades carentes e
populações ribeirinhas", comenta Catharino.
Fonte: BBC News Brasil
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