Estado versus Estado: milícias e as governanças criminais no Rio
O que aconteceu na Zona Oeste é “um vale a pena ver
de novo o pior” no Rio de Janeiro, que se repete, de forma cíclica, conforme as
conveniências da economia política em rede do crime. Mais uma vez, como nas
duas últimas décadas, o que se passou foi mais uma reedição do Estado (as polícias
do bem e os grupelhos policiais clientelistas) brigando com ele mesmo (as
polícias dos bens ou milícias). Nesta briga de Estado versus Estado, as facções
do tráfico escolhem o lado de qual Estado vai estar que lhe oferte acordos
vantajosos na ocasião: se com as milícias ou corriolas policiais apadrinhadas
que tomam por dentro as polícias para seus fins corporativistas e pessoais. E,
claro, como de praxe, a população, já cansada de guerras e suas pirotecnias, é
quem fica no meio dos confrontos entre os instagramáveis “polícia de
espetáculo” e o “crime ostentação”, as celebridades da série política-policial
“o Rio não tem mais jeito”. Estes, conforme as conivências, podem estar juntos
ou separados nas disputas armadas da vez, mas sempre misturados no “esquema”
que promove a insegurança como uma bem-sucedida política pública. Um vale-tudo
por likes, engajamentos e adesões forçadas dos eleitores amedrontados e
fidelizados pela ameaça constante embutida nas ofertas de “mais proteção” que
os senhores da Guerra, seus mercadores e profetas produzem. Preocupado com “os
avanços do crime” parece ser mesmo o próprio crime que, para se organizar,
precisa da máquina do Estado que detém as espadas, o cofre e a pena da lei: ou
pede para sair ou vá e vença nos “esquemas” dos negócios da proteção e seus
mercados ilegais. Como diz o funk, no Rio, “está tudo dominado” pelos
consórcios político-criminais cujo dinheiro arrecadado alimenta o caixa 2 de
campanha e tem como lavanderias certas carreiras políticas e igrejas.
Salvo exceções, no Rio de Janeiro, o Estado tem
funcionado como uma agência reguladora do crime voltada para o empreendedorismo
criminal cujo mote é a “guerra às drogas”. É o Estado quem exerce soberania
sobre territórios e populações, já que que tem base social, política e
econômica para manter Exército e polícias e, com isso, poder brincar de fazer o
que chamam de guerras, ocupações etc. Resta aos domínios armados negociar o uso
desses recursos estatais, no atacado da segurança pública e/ou no varejo das guarnições
policiais, para viabilizar, mesmo que provisoriamente, tanto o seu controle
territorial quanto a conquista de territórios rivais. É mais prático e mais
barato fazer parte do “esquema político-policial” que tem dado certo, menos
para os moradores do Rio. ORCRIMs, sem meios combatentes regulares, não podem
sustentar guerra alguma. E mais: não podem se dar ao luxo de interromper, a
todo tempo, o funcionamento de seus pontos de vendas (bocas de fumo). Há que
pagar fornecedores, honrar a longa folha de pagamento e manter a reputação de
bom negociante político na praça. Para tanto, não se pode afugentar os clientes
com seus estabelecimentos fechados ou inseguros, pois dívidas são pagas com a
vida. O que se vê não são guerras estrito senso entre domínios armados e destes
com as diversas bandas (podre, honesta) das polícias. O que se vê, na
realidade, são disputas comerciais violentas entre governos criminais e
policiais que fazem uso da lógica político-capitalista de matiz neoliberal de
eliminar, incapacitar ou assimilar o oponente, cuja versão manualizada
encontra-se em bancas de revista: “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, adaptada para
a selva do mercado.
Evidencia-se que o Estado tem funcionado como uma
grande imobiliária que arrenda territórios populares para o crime e que, na
busca por mais recursos para projetos de poder de seus locupletadores, produz
os confrontos com mortes para subir o preço do contrato já firmado, gerando
doses maiores de instabilidade nas governanças criminais das milícias e dos
grupos do tráfico. Só o Estado é capaz de administrar quem deve e quem pode
matar e morrer educando a bandidagem sobre as regras do jogo e como jogá-las
para não ter contratempos políticos e econômicos evitáveis. Só o Estado, com
sua superioridade de meios logísticos e modos táticos constantes e disponíveis,
tem condição de ditar as normas dos confrontos com ele ou entre as governanças
criminais. Só o Estado tem como determinar os termos dos rearranjos destes
domínios armados e de seus acordos nos territórios instáveis sob disputa
latente.
No momento, tem-se um exemplo do papel do Estado
disputando consigo mesmo em suas distintas faces na Zona Oeste. Permitiu-se a
quebra dos contratos que mantinham a tartaruga em cima do muro, acirrando os
ânimos dos parceiros e colaboradores criminais, deixando-os entregues a si
mesmos, aos seus espasmos beligerantes e vingativos que descapitalizam o seu
lado firma e oneram o seu lado governo. Cabia apenas assegurar a herança
miliciana do governante criminoso, morto por uma das muitas polícias dentro das
polícias fluminenses, para os seus herdeiros e parceiros leais. Tratava-se
apenas, de, garantindo-lhes a posse criminosa dos territórios, bens e serviços
essenciais (luz, água, gás, internet, transporte alternativo, moradias e, principalmente,
policiamento) arrendados e tornados mercadorias ilegais com fé pública dada com
os arreglos firmados. Aqui se fez o distrato, aqui se pagou a multa com a
demonstração exibicionista da sabotagem à mobilidade urbana de milhares de
pessoas. Quem não pode sustentar uma guerra faz terror: vários ônibus queimados
e malha urbana interditada!
A questão político-criminosa que se explicitou no
caso da Zona Oeste com a revolta miliciana é a diminuição da estabilidade dos
acordos com as versões do Estado político-policial nas ruas que, até um passado
recente, adquiriam mais duração quando se tinha as milícias, saídas de dentro
do Estado, como fiéis da balança junto às facções parceiras do tráfico. Cabe
lembrar que as milícias, localistas, fragmentadas e vindas de baixo das forças
públicas, têm trânsito político, conhecimento privilegiado da máquina estatal,
mobilidade logística ou passaporte e visto para entrar e sair de todos os
lugares e, não menos importante, o “tiro certo” ou a expertise no provimento de
proteção. É este conjunto de atributos que dá vantagem política e
tática-operacional às milícias, e que possibilitou seu fortalecimento e
expansão sob o lastro estatal. É isto que permite que ela faça a segurança das
facções do tráfico como se assiste hoje, não somente na Zona Oeste, mas em
outras partes da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Desde meados de 1990, a publicitária guerra contra
o crime veio pondo em prática o seu propósito político-eleitoral de produzir
grupos criminais, fortalecê-los e ampliá-los. A aceleração do crescimento das
milícias vai se dar a partir de 2007, na esteira do calendário dos grandes
eventos no Rio de Janeiro. As milícias são um dos grupos mais beneficiados com
narrativa do estado de guerra no Rio, ainda que todas as ORCRIMs sejam
parceiras político-comerciais no bastidor e inimigas número 1 no teatro
público. Assim, tem-se feito a guerra para vender a paz da propina e do
cemitério. Uma fórmula aparentemente simples, mas de execução complexa, uma vez
que envolve negociações simultâneas e abertas a sucessivas revisões entre
agentes estatais distintos com interesses conflitivos. Uma fórmula que dá mais
vantagens às milícias nascidas da máquina estatal.
Cabe ressaltar que nenhum grupo criminal, nem a
Yakuza no Japão, nem as máfias de Miami e da Itália, nem o CV e o TCP no Rio de
Janeiro, nem o PCC em São Paulo, ganharam existência e funcionam sem uma
parceria com o Estado. Daí o desserviço ao se falar em “Estado ausente” nos
espaços populares sob domínio armado, quando o que de fato existe são distintas
expressões do Estado que negociam sua presença e que cobram alvará de
funcionamento das governanças criminais que, estrategicamente, um tipo de
cláusula de confidencialidade de seus contratos, ora ocultam o seu lado Estado,
como o PCC, ora ocultam o seu lado firma, como as milícias. Contudo, todo “CNPJ
do crime”, para não morrer, tem a seu lado o Estado.
Vale dizer: é o Estado, de forma intencional ou
não, que organiza o crime com sua política de (In)segurança cujo lema cínico é
a “defesa da lei e da ordem” propagada por certos governantes e políticos sob
patrocínio criminal. No Rio, nós temos várias máquinas partidárias
clientelistas que disputam os espaços populares e, curiosamente, tem-se vários
domínios armados ostensivamente com chancela política. Em São Paulo, tem-se uma
unidade política das máquinas clientelistas em torno dos seus interesses
regionais e, curiosamente, tem-se um comando criminoso também unificado com
armamento encoberto.
É preciso salientar que, no caso das disputas
criminais com quebra de acordos na Zona Oeste, não é uma demonstração da
fragmentação das milícias no Rio. A fragmentação já existe, pois as milícias
são localistas. O projeto político-criminoso em curso não é produzir rachas e
acirrar rivalidades. Inversamente, com o protagonismo do Estado em suas versões
criminais e anti-criminais nas ruas, tem-se a ambição é de unificação em torno
de diplomacias e modelos de negócios comuns. Isto permitiria às milicias, por
exemplo,se constituírem como um governo criminal autônomo mais forte do que
qualquer governo eleito, ainda que parceiro. O que está em curso no Rio de
Janeiro é a construção de um novo tratado de Tordesilhas, mediante o qual se
busca governar com o crime e não contra ele.
Bem, não estava no jogo dos acordos entre
milicianos e agentes públicos matar o sobrinho-herdeiro. Estava no esquema
prender “uns de nós” como parte da produção de saldo operacional e fazer
estatística para governante, alimentando a mídia e a opinião pública do “Kit
Sucesso” das apreensões e caças presas. As milícias, aliás, participam de
operações que limpam terreno do tráfico para o seu arrendamento. Segundo
denúncias, “a milícia vai na frente, trocando tiro”. Seria a primeira linha de
confronto, porque ela vai ficar no território e fazer sua gestão amiga com
segmentos do Estado.
Assistiu-se, portanto, a um cenário em que o
cliente “arrendou o território e pagou para o Estado”, e um outro setor do
Estado resolveu “subir o preço do alvará”. Aqui se tem também a colaboração do Legislativo,
já que o dinheiro da milícia é lavado em carreiras eleitorais. Nomeá-los é o
trabalho de inteligência e de investigação para poder desvendar os esquemas de
corrupção político-policial e entregar à Justiça. Mas como fazer isso, se a
moda é matar o bandido, a galinha dos ovos de ouro do trabalho de investigação
e da inteligência que poderia revelar como funcionam os governos criminais no
Rio e sua economia política itinerante e em rede? Foi neste contexto de quebra
de acordos com o estímulo à concorrência com rivais que eles [milicianos]
responderam: “ok, então 35 ônibus queimados”. Estão mandando o recado, como
outros parceiros sob distrato o fizeram: “Como é que é? Vai cobrar de mim de
novo? Não é assim, não, a gente cria o caos na cidade”. Tudo isso faz com que o
governador vá se tornando um garoto propaganda de saldo operacional, um
ventríloquo-refém dos esquemas que desconhece, um governante sem tinta na
caneta que optou por não comandar a segurança quando virou papagaio de pirata
de operações policiais e manteve extinta a secretaria de segurança que
possibilitava o comando civil e controle estatal sobre as forças policiais. Ele
terceirizou a segurança para os grupelhos que tomam para si as polícias,
sabotando a sua própria institucionalidade. Permitiu-se a autonomização
predatória do poder de polícia que já se anunciava e cuja expressão da
ingovernabilidade mais bem acabada é a milicialização.
Ainda que grave, o problema do Rio de Janeiro,
antes de ser criminal, é político. E a solução, portanto, é política. É
fundamental, por exemplo, que o governo federal articule uma repactuação
federativa da segurança pública e dos mandatos policiais que seguem como um
cheque em branco, uma procuração em aberto no Brasil a ser preenchida no fio do
bigode e dentro de gabinetes escuros, conforme o oportunismo político do
momento e o palanque eleitoral antecipado de ocasião. É esta ingovernabilidade
policial que possibilita a clientelização política das polícias, que vai do 8
de janeiro com os policiamentos autorizados de figuração e se estende até as
governanças criminais nos espaços populares.
Cabe ao governo federal liderar e, pôr em prática,
enquanto ainda dá tempo, a primeira lição básica das democracias para se ter
previsibilidade, regularidade e estabilidade no exercício do poder legal e
legitimamente eleito que é: blindar as polícias do seu uso político-partidário,
da sua apropriação mercantil por grupos de poder e de sua particularização por
grupos corporativos que as utilizam para seus projetos pessoais. Só assim será
possível afastar os fantasmas golpistas com seus chupa-cabras e aves de mau
agouro que oportunisticamente vêem golpe em todo lugar para seguirem promovendo
a insegurança pública como um projeto de poder e oportunizar os falsos profetas
da segurança e suas gastanças licitatórias.
Há que produzir governabilidade dos meios de força
combatentes e comedidos para que não se viva de sustos golpistas e espasmos
autoritários. Há que produzir governabilidade e não brincar com as polícias
como animadores de auditório fazendo agrados pontuais à moda. Não se pode
seguir colocando e engordando onça para tomar conta de quintal e reproduzindo
monopólios e quase monopólios de policiamento que sabotam as bases
democráticas.
É preciso ultrapassar os modismos de ocasião na
segurança pública e ir além da lógica curto-prazista das ações incrementalistas
e de visibilidade midiática expressas, por exemplo, no varejão da distribuição
de recursos com o mais do mesmo (diárias, viatura, armamento e munição). E isto
sem contrapartida dos entes federados à adesão a uma política nacional de
segurança pública e, também, publicada, de conhecimento de todos. É preciso
sair da armadilha de se seguir de prioridade circunstancial em prioridade
circunstancial. Pois a gastança fragmentada e o atendimento emergencial, ainda
que por vezes inadiáveis, não fidelizam nem as polícias nem os governantes ao
novo governo e sua política saída das urnas.
Para que de fato o governo federal tenha um papel
indutor e de coordenação federativa é preciso repactuar os termos cooperativos
e ressuscitar o SUSP como o guarda-chuva onde a política, seja ela conservadora
ou progressista, possa ser efetivamente executada. Para que os fins da
política, os meios alocados e os modos de atuação não briguem entre si e não se
apresentem fragmentados como se tem observado. Qualquer programa federal de
enfrentamento aos crimes organizados, no seu plural, não pode se reduzir a
alocação suplementar de recursos para os Estados, ao repasse de meios com
fotos. Há que ter institucionalidade, articulação política, base normativa e
procedimental e, mais uma vez, pactuação federativa. Do contrário será por
papel de bala vistoso em recheio duvidoso. Há muito a fazer; por exemplo, dar a
conhecer e desenvolver políticas transversais e intersetoriais sob a
responsabilidade do MJSP que ainda pouco se sabe:
1) a política de justiça;
2) a política penitenciária;
3) a política de migração e refúgio;
3) a política de drogas e recuperação de ativos;
4) a política de direito econômico e defesa do
consumidor;
5) a política de fronteiras e
6) a política de segurança pública.
E tem, ainda, uma política nacional de defesa
civil. Muita coisa debaixo de um teto ministerial carecendo de conhecimento
público quanto à sua integração efetiva e exequibilidade. Não falta serviço
para o governo federal sair da lógica reativa que orienta as mentalidades
políticas, de olhar com distância de quem está em Brasília as mortes empilhadas
nas portas dos palácios estaduais e municipais.
Fonte: Por Jacqueline Muniz – Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, em O Cafezinho
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