sexta-feira, 7 de julho de 2023

Guerra ou Paz? Os protagonistas do conflito. De desafiadores a perdedores

Ante a alternativa “Guerra ou Paz?” é muito importante tentar entender a verdadeira natureza desta guerra. Cada vez mais parece que não se trata de um acontecimento circunscrito, mas de um capítulo de uma guerra constituinte que investe toda a ordem internacional e a estrutura como um sistema de dominação e de guerra, cujos efeitos são imprevisíveis e podem ser devastadores para todos, para a comunidade mundial.

Em si mesma, esta guerra da Ucrânia é uma guerra absurda. De fato, a guerra não só pode ser dulce inexpertis, não só pode ser alien a ratione, não só é contra a lei, não só é brutal, mas pode ser mais do que insensata, absurda. E é isso. Não custou nada evitá-la, e poderia acabar logo, 15 dias depois, com os acordos de Antalia imediatamente rejeitados pela OTAN.

Como isso não aconteceu, vejamos que papéis os diferentes protagonistas desempenharam na guerra: o desafiante, o inimigo, a vítima, os vencedores, os perdedores.

1. Os desafiantes são os Estados Unidos que, após a derrubada do Muro de Berlim, pretendem estabelecer uma ordem mundial feita à sua imagem e medida e conformada a um único domínio. Segundo os documentos estratégicos do governo americano – a Casa Branca e o Pentágono – (os últimos de outubro passado) deveria ser uma ordem fundada nos três pilares da democracia, liberdade e livre iniciativa e deveria ser concretizada ainda nesta década com a eliminação da Rússia e o desafio final com a China.

Portanto, a guerra ucraniana apresentou-se como uma boa oportunidade para começar liquidando a Rússia, mesmo sem ter que lutar. Segundo Biden, era necessário reduzir a Rússia à condição de pária e eliminá-la da competição estratégica pelo domínio global. Isso diz qual é a verdadeira alternativa pela qual lutamos nesta guerra: ou um mundo unipolar e monocrático uniformizado a um único modelo cultural e político, ou um mundo pluralista mas em paz com todas as suas diversidades e dialéticas. E esta é também a escolha real que está diante de nós.

2. O Inimigo é, claro, a Rússia. Nela, o Ocidente redescobriu o inimigo que havia perdido graças à remoção do Muro de Berlim por Gorbachev. O Ocidente precisava disso porque sem um inimigo o instrumento de guerra não pode ser recuperado, pois, uma vez terminada a dissuasão, apressou-se a fazer a Guerra do Golfo; ele precisava porque sem inimigo no Leste a OTAN não fica no Ocidente, e porque sem o par amigo-inimigo, segundo a nossa cultura, a política, o "critério" do político, também falha.

A Rússia demorou a ser tomada como inimiga, ofereceu-se à recriminação universal, porque se estava certa em se opor à OTAN na Ucrânia e à repressão em Donbass, ao fazer a guerra caiu no erro e deu um álibi ao frenesi antidominação russa no Ocidente.

No entanto, a Rússia de Putin manteve sua força sob controle, optando por travar uma guerra pequena e de baixa intensidade, em vez de invadir toda a Ucrânia e ocupar Kiev, como poderia ter feito devido à disparidade de forças no campo. Não o fez não porque falhou por despreparo militar, mas porque o que está em jogo não é a Ucrânia, mas a ordem mundial.

E Putin também fez uso controlado da força contra a revolta do grupo Wagner; poderia ter disparado e assim detido a marcha para Moscou, e não o fez, optando por uma solução política (portanto trata-se de terroristas, ao contrário da ortodoxia em vigor em Itália!) e evitando uma guerra civil.

3. A vítima, como sempre diz o Papa, é a atormentada Ucrânia (além das populações pobres de meio mundo afetadas pela crise alimentar e energética). Mas esta vítima ucraniana foi imolada não por um, mas por muitos oficiantes do sacrifício. Putin foi o primeiro a identificá-lo como o fulcro da contradição e causa da violência e lançou-o na guerra, mas os amigos e aliados da Ucrânia imediatamente o assumiram como uma vítima a ser levantada para uma solução salvadora para a crise, e fizeram de Zelensky o herói sacrificado aos valores e à identidade do Ocidente; Europa, América e OTAN alcançaram magicamente a sua unidade, estabelecendo a sua comunhão nas armas enviadas à vítima e confiando os seus sonhos de glória à sua morte sacrificial, passada como vitória.

Assim, uma violenta unanimidade foi estabelecida em torno da Ucrânia, unindo amigos e inimigos. Por sua vez, a Ucrânia, enganada pelos Aliados que lhe prometiam a vitória sobre a Rússia, ofereceu-se como vítima expiatória com a decisão de proibir as negociações, não admitindo outro desfecho senão a recuperação das terras perdidas, até a Crimeia.

Há páginas perturbadoras de René Girard, o grande revelador da ideologia do sacrifício, que mostra como muitas vezes a própria vítima se torna cúmplice de sua própria imolação. E em Zelensky o sacrificador tornou-se sacrílego porque a carne de seu povo jogada na fornalha é sagrada: mesmo ao custo de permanecer na guerra por anos, como disse o chanceler ucraniano Kuleba em entrevista ao "Otto e mezzo". Na lógica do poder, como o próprio Girard demonstrou, as instituições ocultam sua própria violência, projetando-a sobre sempre novas vítimas.

4. Os vencedores desta guerra são, sem dúvida, os fabricantes de armas americanos que entre 1996 e 1998 investiram 51 milhões de dólares (94 milhões hoje) em atividades de lobby para convencer os congressistas e a Casa Branca a estender a OTAN para o leste, para expandir o mercado de armas. Como disse o arcebispo Delpini na catedral de Milão após a morte de Silvio Berlusconi, quando fazemos negócios, olhamos para os números e esquecemos os critérios. Esqueça os critérios, a guerra na Ucrânia chegou e pagou esse investimento com usura, já que 100 bilhões de dólares dos Estados Unidos foram em armas e lucros para sustentá-la.

E quem é o perdedor? Derrotado é o projeto de um mundo todo absorvido no novo século americano, porque o mundo não está aí para ser reduzido a um único império. O mundo não é uma entidade amorfa, primitiva, disponível para a dominação. Essa foi a arrogância do Ocidente, sua ascensão ao céu. Enquanto outras civilizações floresciam, por muito tempo acreditamos que o mundo estava todo na koiné greco-romana, então o incorporamos ao cristianismo e agora o chamamos de Ocidente. Mas esta guerra marca o fim do Ocidente, a derrota de sua pretensão de possuir a história do mundo, de recapitular todos os seus valores.

·         Qual foi o pecado capital do Ocidente?

O Ocidente não reconheceu o outro, o estrangeiro, não o considerou igual a si mesmo. Apesar da derrubada do cristianismo e de São Paulo, o Ocidente trouxe consigo uma antropologia da desigualdade que de Aristóteles, da sociedade de senhores e servos, de cidadãos e metecos, de escravos e livres, chegou até Hegel e Croce, passando através da descoberta da América; só isso custou o desaparecimento de 100 milhões de indígenas, cujas almas até os teólogos do Ocidente duvidavam.

O medo atual da substituição étnica, a luta contra os migrantes que vêm do Sul, não os que vêm da Ucrânia, portos fechados, Cutro, são filhos dessa cultura de seleção e exclusão. O estrangeiro não passa!

Mas, como diz Carl Schmitt, no sentido mais extremo, o estrangeiro não é apenas o outro, o estranho, mas é o inimigo. E o inimigo não é necessariamente o maligno, o inimigo é simplesmente o outro de mim.

E, finalmente, como o próprio Schmitt diria mais tarde no fim de sua vida, graças à "sabedoria da cela" em que foi preso devido ao seu passado com o nazismo, o inimigo é "aquele que me questiona". Em certo sentido, portanto, o inimigo é algo que está dentro de nós, porque nós mesmos somos continuamente uma questão para nós mesmos. Mas isso significa que se o Ocidente não reconhece o outro, não o acolhe como outro igual a si mesmo, rejeita-o como próximo, não se conhece nem a si mesmo, está dividido até dentro de si, é um inimigo de si mesmo.

Há poucos dias, o Corriere della Sera, publicando um editorial de Angelo Panebianco sobre o estado do mundo, trazia a seguinte manchete: "O Ocidente e o resto do mundo". Não, não há um Ocidente que seja o mundo, e um resquício que seja o que sobra do mundo, o resíduo, o lixo. O mundo é um, mas não para dominá-lo como um único império, nem para dar-lhe um único direito, um único Nomos. Isso não é universalidade. O Ocidente teve vocação para a verdadeira universalidade, gerou messianismos e profecias, concebeu uma koiné que, na harmonia de diversas riquezas, se estenderia até os confins da terra. É essa universalidade que o Ocidente traiu. Mas nunca é tarde para recapturar o kairòs enquanto ele foge e reabrir o futuro.

Estaria na hora de o Ocidente recuperar sua vocação, evitar o fim e junto com todos os outros se colocar em jogo por outra concepção do mundo, para salvar a Terra.

 

Ø  Guerra como produto

 

motim do [grupo paramilitar] Wagner na Rússia terminou negativamente para o soldado Prigozhin e para os serviços de inteligência ocidentais que, se era verdade a gaba de que sabiam tudo de antemão, não sabiam como se mover e o que fazer. Em vez disso, acabou positivamente para Putin, que poderia ter parado o comboio de mercenários na estrada para Moscou com tiros de canhão e, pelo contrário, calculou bem os riscos, preferindo a solução política (portanto, é uma questão de terroristas!) e evitando a guerra civil. Contra as alegres profecias de um colapso da Rússia e sua derrocada militar, a contraofensiva ucraniana não tirou nenhuma vantagem da crise e a guerra continuou como estava.

Em vez disso, a aventura do grupo Wagner chamou a atenção para o flagelo dos exércitos mercenários e dos "empreiteiros" que integraram ou até substituíram os exércitos conscritos. O pacifismo no Ocidente saudou a renúncia ao recrutamento obrigatório pelos estados como sua vitória, mas na realidade foi a vitória dos belicistas que, queimados pela experiência do Vietnã (os cartões postais de preceito queimados nos campi universitários) e pela legitimidade da objeção de consciência, perceberam que não podiam mais confiar no exército popular e no seu amor gratuito pela pátria e optaram pela prostituição, pela guerra e pela compra de serviços militares por dinheiro.

Desta forma, a guerra perdeu cada vez mais os seus álibis ideais (e os comportamentos sonhados pelas Convenções de Genebra) e tornou-se cada vez mais intrínseca ao dinheiro; como toda realidade submetida pelo capitalismo, e antes pelo Nomos do Ocidente, à lei da coisa, a guerra tornou-se um produto e os homens e mulheres de armas tornaram-se produtíveis, não apenas em benefício das indústrias e do mercado de armas, mas também das guerras a serem travadas e do saque e dos mortos a serem trocados entre as partes em conflito.

O sistema de dominação e de guerra ao qual, a partir do grande acontecimento político da derrubada do Muro de Berlim, a ordem internacional foi conformada e a própria condição humana na Terra foi escravizada (lembre-se do ministro que durante a Guerra do Golfo explicou na Câmara que já não era mais possível distinguir tempo de guerra de tempo de paz), foi assim institucionalizado e equipado com todas as garantias de não ser questionado e contestado em democracia sobre as guerras individuais a serem travadas.

"Paradoxalmente, se hoje queremos lutar pela paz e pelo repúdio ao sistema de guerra, devemos lutar pelo restabelecimento do serviço militar obrigatório, mas de forma a visar a criação de exércitos capazes de defender, de várias formas, não apenas um, mas muitos municípios ativos de que consistem as Pátrias; e estas Forças Armadas podem nem sempre estar armadas, como foi o caso da missão militar italiana que, após a queda de Hoxha, saiu sem armas para ajudar a Albânia e não por acaso foi chamada de “Pelicano”. E com o recrutamento obrigatório poderia até voltar a objeção de consciência que na Itália, único país do mundo, a lei reformada elaborada no Parlamento pelo Grupo Interparlamentar (e interpartidário) pela Paz (GIP) chama, positivamente, "a obediência à consciência".

 

Fonte: Por Raniero La Valle, para IHU

 

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