Como a França
chegou à atual onda de insatisfação popular?
Milhões
de manifestantes nas ruas francesas. Cerca de 10 mil toneladas de lixo
acumuladas nas ruas de Paris. Postos sem gasolina após greves nas maiores
refinarias nacionais.
Afinal,
o que está por trás da atual situação na França?
• A reforma da Previdência
A
raiz da onda de insatisfação popular atual é uma reforma no sistema
previdenciário assinada pelo governo de Emmanuel Macron em meados de março. Ela
aumenta a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos para a maioria das
categorias.
O
governo argumenta que a reforma é necessária para sustentar a Previdência, algo
cada vez mais difícil diante da queda na proporção entre trabalhadores ativos e
aposentados.
Só
em 2021, as despesas com pensões custaram quase 14% do PIB francês aos cofres
públicos, quase o dobro da média dos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Segundo
um relatório de especialistas encomendado pelo governo, essas despesas podem
ainda levar a um déficit de 10 bilhões de euros por ano entre 2022 e 2032.
Mesmo
com a mudança, a idade mínima para aposentadoria na França ainda é mais baixa
que a de vizinhos europeus, como Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda,
Espanha e Itália, onde ela varia entre 65 e 67 anos.
No
Brasil, atualmente a idade mínima para aposentadoria por idade é de 62 anos
para as mulheres e 65 para os homens, com tempo mínimo de contribuição de 15
anos. A regra foi estabelecida pela reforma aprovada em 2019, durante o governo
de Jair Bolsonaro.
Mas
o sentimento de revolta na França também está ligado à maneira como a reforma
foi aprovada.
A
coligação de Macron perdeu sua maioria na Assembleia Nacional nas eleições
legislativas de 2022. Com isso, o governo não conseguiu o apoio necessário para
aprovar a reforma por meio dos parlamentares e precisou acionar um dispositivo
especial da Constituição, chamado de 49-3, que permite que a mudança entre em
vigor sem aprovação legislativa.
O
recurso foi criticado por membros da oposição e incitou ainda mais os
protestos.
Para
a professora da Universidade Queen Mary e especialista em política francesa
Rainbow Murray, a ação do governo foi vista por muitos como “um atropelamento
da democracia parlamentar e da vontade do povo”.
• As manifestações
Com
tudo isso, o país chegou ao seu décimo dia de manifestações populares na última
terça-feira (28/3).
O
número total de pessoas nas ruas varia intensamente de acordo com a fonte. Mas,
segundo um dos principais sindicatos do país, só na terça-feira mais de 2
milhões de pessoas compareceram aos atos em toda a França, meio milhão delas
apenas em Paris.
Já
o ministério do Interior e as forças policiais parisienses contabilizaram cerca
de 740 mil e 93 mil franceses nas ruas de todo país e da capital,
respectivamente.
No
ato da semana anterior, o governo havia contabilizado 2 milhões de
manifestantes em toda a França.
E
enquanto a maior parte se mobilizou de forma pacífica, foram registrados
confrontos entre alguns grupos e as forças de segurança.
Em
um dos dias mais violentos, mais de 450 pessoas foram detidas pela polícia
nacionalmente e 903 focos de fogo foram acesos pelos manifestantes nas ruas de
Paris.
E
ao mesmo tempo em que as ruas foram tomadas, diferentes categorias organizaram
greves. Com isso, aeroportos, escolas e refinarias de petróleo foram afetadas,
fazendo com que cerca de 17% de todos os postos de combustível do país
relatassem falta de pelo menos um tipo de combustível.
Os
agentes de limpeza pública, para quem a reforma da Previdência prevê a mudança
da idade mínima de aposentadoria de 57 para 59 anos, também pararam por vários
dias.
Dessa
forma, imagens de ruas em Paris repletas de lixo viraram cena comum nas últimas
semanas, elevando o temor de um problema de saúde pública.
• Tema-bomba
Mas
essa não é a primeira vez que cenas desse tipo são registradas na capital. Nos
últimos 30 anos, todas as tentativas de reformas previdenciárias foram
recebidas com manifestações, greves e protestos de sindicatos.
Segundo
especialistas, há um componente próprio da França: um histórico de resistência
a mudanças no sistema previdenciário, além de uma longa tradição de movimentos
sindicalistas e populares.
Segundo
Rainbow Murray, a forma como a sociedade francesa vê a aposentadoria influencia
na reação às mudanças anunciadas recentemente pelo governo.
“Os
franceses são muito apegados à ideia de uma longa aposentadoria financiada pelo
Estado, especialmente aqueles em profissões mais desgastantes fisicamente e
menos agradáveis — para quem uma carreira mais longa é uma perspectiva pouco
atraente”, diz.
O
próprio Emmanuel Macron já enfrentou dificuldades para aprovar propostas do
tipo. No final de 2019 e início de 2020, durante seu primeiro mandato, um
movimento semelhante foi organizado diante do anúncio de um projeto para
unificar todos os 45 regimes de pensão do país.
O
governo também chegou a pressionar por uma mudança na idade mínima para
aposentadoria, mas decidiu adiar o projeto quando o país entrou em lockdown por
causa dos primeiros casos de Covid-19.
Mas
a reforma é uma promessa de campanha de Macron e foi incluída em seu plano de
governo. E ele já disse várias vezes que não pretende abandonar seus planos.
“Vocês
acham que eu estou gostando de aprovar essa reforma? Não”, disse o presidente
em uma entrevista televisionada. “Quanto mais demorarmos, mais o déficit vai
crescer.”
“Essa
reforma não é um luxo, não é um prazer, é uma necessidade.”
• Crise política
A
crise atual é o primeiro grande obstáculo enfrentado por Macron em seu segundo
mandato.
Pesquisas
mostram que a aprovação de seu governo caiu 4 pontos percentuais em um mês, e
está atualmente em 30%.
Além
disso, a crise levou o governo a enfrentar duas moções de desconfiança na
Assembleia Nacional, que não passaram.
Se
alguma das votações tivesse sido bem-sucedida, a primeira-ministra Élisabeth
Borne e todo o gabinete de governo teriam sido derrubados, a reforma anulada e
Macron teria que formar um novo governo.
Mas,
segundo especialistas, a crise pode se aprofundar ainda mais. Há quem tema uma
revolta social maior, semelhante à registrada em 2018 contra reformas fiscais e
sociais, conhecida como movimento dos coletes amarelos.
Para
a cientista política Rainbow Murray, a insatisfação popular também é uma
resposta ao próprio estilo de Macron de governar.
“Macron
é um político convicto e faz o que acredita ser o melhor, mas pode passar a
impressão de ser arrogante e indisposto a ouvir a população. Ele até ganhou o
apelido de presidente dos ricos porque dizem que muitas de suas políticas
beneficiaram mais os cidadãos ricos do que os trabalhadores”, afirma.
As
críticas feitas ao presidente por utilizar um relógio luxuoso em uma entrevista
sobre a crise são reflexo dessa impressão passada pelo presidente.
Segundo
sua equipe, ele tirou o relógio porque estava fazendo barulho na mesa durante a
transmissão. Mas, para os críticos, o objeto de luxo simboliza a falta de
contato dele com a população.
Houve
quem dissesse que o relógio valeria até 80 mil euros, o equivalente a R$ 450
mil. Mas o governo divulgou que ele usava um modelo personalizado de um relógio
que custa na internet entre 1.660 e 3.300 euros, ou R$ 9,4 mil e R$ 18,6 mil,
sem a personalização.
Muitos
analistas franceses dizem que Macron, que é de centro-direita, perdeu a maioria
na Assembleia Nacional justamente por sua forma de governar e por seus planos
econômicos.
Enquanto
isso, a direita radical, representada pelo partido União Nacional, de Marine Le
Pen, conseguiu um resultado histórico e multiplicou por 10 seus representantes
na Assembleia.
E
especialistas dizem que toda a repercussão negativa da reforma previdenciária
pode abrir portas para um crescimento ainda maior da direita radical na França.
Segundo
uma pesquisa divulgada em 19 de março, 26% eleitores votariam no União Nacional
caso as uniões legislativas fossem realizadas hoje. São 5 pontos percentuais a
mais do que há 5 meses.
• Perdas econômicas?
Há
quem diga que as greves e manifestações pesariam nos bolsos da França, mas
diferentes economistas descartaram grandes perdas, apesar dos efeitos no
mercado de combustíveis e transportes.
A
economista Emmanuelle Auriol, da Escola de Economia de Toulouse, disse à BBC
que estima um impacto de algo entre 0.1 ou 0.2 ponto percentual no crescimento
trimestral do PIB francês.
Mas
ela afirma disse que o efeito não deve ser uniforme. “Alguns setores são mais
atingidos do que outros”, disse.
Já
o governo e outros apoiadores da reforma dizem que a economia que pode ser
alcançada com a mudança previdenciária é imensamente superior a esses eventuais
impactos econômicos das paralisações.
'Macron zombou de nós': 3 perguntas para
entender os protestos na França
Há
semanas, a França tem sido abalada por uma série de greves e protestos cada vez
maiores contra a controversa lei previdenciária do governo de Emmanuel Macron.
Na
quinta-feira (23/3), mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em todo o país,
segundo dados do Ministério do Interior.
Uma
das principais confederações de trabalhadores, a CGT, estimou esse número em 3
milhões.
Em
Paris, onde as manifestações geralmente são pacíficas, cerca de 120 mil
protestaram.
Houve
confrontos entre policiais e indivíduos mascarados, que quebraram vitrines,
vandalizaram o mobiliário urbanos e atacaram um restaurante da rede McDonald's
na capital francesa, informou a agência de notícias Reuters.
A
polícia disparou gás lacrimogêneo contra os manifestantes, e cerca de 80
pessoas foram presas em todo o país.
Em
Bordeaux, no sudoeste do país, o fogo atingiu o portão principal da Prefeitura
após um dia de protestos e confrontos. O fogo foi rapidamente apagado pelos
bombeiros.
Também
houve uma série de greves de trabalhadores dos setores de transporte, lixo,
educação e outros em todo o país.
A
primeira-ministra francesa, Élisabeth Borne, tuitou: "Expressar
discordância é um direito. A violência e a depredação que testemunhamos hoje
são inaceitáveis. Todos os meus agradecimentos à polícia e às forças de resgate
mobilizadas".
Na
sexta-feira (24/3), foi anunciado que a visita de Estado do rei Charles 3º à
França, que começaria no domingo (26/3), foi adiada.
Explicamos
a seguir no que consiste a reforma previdenciária e por que ela é tão polêmica.
• O que significa a nova reforma?
O
principal objetivo da nova lei previdenciária é aumentar gradualmente a idade
de aposentadoria de 62 para 64 anos até 2030.
O
aumento ocorrerá com base em incrementos de três meses por ano, a partir de
setembro de 2023.
A
última vez que a idade de aposentadoria na França foi alterada foi em 2010,
antes da qual era de 60 anos.
A
reforma também adianta para 2027 a exigência de contribuir 43 anos para obter
uma pensão e não 42 anos como acontecia até agora.
Além
disso, a nova lei elimina os privilégios de aposentadoria de alguns
funcionários do setor público, como os trabalhadores do metrô de Paris.
A
resistência à nova lei tornou-se ainda mais forte depois que o governo forçou
em 16 de março sua aprovação contornando a Assembleia Nacional - a câmara baixa
do Parlamento - onde não tem maioria absoluta.
Por
que Macron está decidido a implementar a nova lei?
A
reforma previdenciária foi uma das principais propostas de Macron durante sua
campanha para as eleições presidenciais de 2022.
Os
protestos e greves iniciados em janeiro não fizeram o presidente recuar. Nesta
semana, ele sobreviveu a duas moções de desconfiança e defendeu a reforma em
entrevista à televisão.
"Esta
reforma é necessária", disse Macron, salientando que a sua implementação
ocorrerá até ao final de 2023.
O
presidente diz que a reforma da previdência é uma forma "impopular, mas
necessária" de garantir o futuro do sistema previdenciário do país.
Segundo
o presidente, a medida é crucial para evitar o colapso do generoso sistema
previdenciário da França e para garantir que os cidadãos mais jovens não
assumam o ônus de financiar as gerações mais velhas.
Macron
diz que se trata de "economizar e prevenir déficits" nas próximas
décadas.
Mas
os oponentes argumentam que a medida afetará desproporcionalmente os
trabalhadores braçais, que têm maior probabilidade de começar a trabalhar em
uma idade mais jovem e ter empregos fisicamente mais exigentes do que
executivos e profissionais autônomos.
• Alguma das partes vai ceder?
O
governo sobreviveu a duas moções de desconfiança nesta semana. Agora, será
preciso ver se a determinação de Macron superará a capacidade de pressão dos
sindicatos nas ruas.
As
pesquisas mostram que mais de dois terços dos cidadãos se opõem à reforma
previdenciária.
E
de acordo com a emissora France 24, "a grande maioria dos franceses também
expressou seu apoio às greves que interromperam as aulas, o transporte público
e a coleta de lixo".
Os
líderes sindicais, que desde janeiro prometeram fazer greves e protestos contra
a lei, classificaram os comentários de Macron em defesa da reforma como
"desprezíveis".
"O
presidente da República zombou de nós", disse Marie Buisson, umas das
lideranças da CGT, à rádio France Info.
Ela
acrescentou que os sindicatos estão "determinados" a continuar
protestando. "Como (a lei) foi aprovada pela força, há indignação",
disse. "Nosso objetivo é que o máximo de pessoas parem de trabalhar."
Greves
generalizadas na quinta-feira levaram a grandes interrupções de transporte em
estradas e trens e cancelamentos de voos.
Os
sindicatos convocaram novos protestos para a próxima terça-feira (28/3).
Macron
enfrenta um enorme desafio. Seu projeto principal foi aprovado, mas com alto
custo político e a insatisfação da maioria dos cidadãos.
Fonte:
BBC News Mundo
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