7 de Setembro: a
elite que 'tupinizou' o próprio nome pela Independência
O
que Dom Pedro 1º, um precursor da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), um ramo
da família latifundiária Fonseca Galvão em Pernambuco e um punhado de clérigos
do período da Independência têm em comum?
Para
defender a causa da separação política em relação a Portugal, eles
"tupinizaram" os próprios nomes de batismo.
A
cisão almejada por parte da elite colonial em relação à metrópole portuguesa
passou pelo uso da figura do indígena em diversos campos. Bastante presente nas
artes, essa utilização se observou com notável força na literatura romântica.
O
principal exemplo é Iracema, romance de José de Alencar que põe o nativo na
posição de lenda fundadora da nação, no qual a índia "virgem dos lábios de
mel" morre para dar à luz o primeiro cearense — ou seria brasileiro? — mestiço.
Outra
forma com que membros do alto escalão da sociedade da época empregaram o índio
para avançar o interesse pela Independência foi através da onomástica, ao
alterar os próprios nomes. É um processo que ficou conhecido como
"tupinização" ou, de forma mais abrangente, "indianização"
dos sobrenomes, já que não apenas termos do tupi eram usados.
A
lógica por trás do fenômeno é simples.
Como
havia disputa entre os que queriam a volta à subordinação a Portugal e os
independentistas, somente se dizer na vanguarda da Independência do que era
então parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves parecia insuficiente.
Precisava-se, além do mais, compor o próprio nome com algo ligado à terra
brasileira.
"A
valorização do elemento indígena durante a Independência foi sobretudo
simbólica", explica João Paulo Pimenta, professor do Departamento de
História da Universidade de São Paulo (USP). "Simbólica porque o processo
de Independência foi, em parte, o processo de criação de antagonismos, entre
Brasil e Portugal, que não existiam antes e geraram identidades diferentes,
separando os portugueses do Brasil e os portugueses de Portugal."
Uma
parte fundamental da criação desses antagonismos consistiu em uma
"referência intermediária" pela identificação dos grupos favoráveis à
Independência como parte da América, diz Pimenta. "A valorização permitiu
criar a imagem de que havia pautas e histórias diferentes entre Brasil e
Portugal, entre América e Europa. Por isso, há também uma postura de colocar
nos nomes referências ao continente americano em geral."
• O 'manifesto nativista' do Visconde de
Jequitinhonha
"Estamos
falando, a partir desse período, de como uma determinada elite se apropria do
que é ser índio e dos valores indígenas", aponta Vania Moreira, professora
titular e do programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). "Foi um primeiro momento de utilização do
imaginário acerca do indígena, que se desdobra na literatura com o Romantismo e
o desejo da criação de uma cultura eminente brasileira."
O
professor emérito pela Universidade de Sorbonne e da Fundação Getulio Vargas,
Luiz Felipe de Alencastro, aborda o movimento de troca de nomes ocorrido
durante a Independência no texto "Vida privada e ordem privada no
império", que consta da coletânea História da vida privada no Brasil
(1997). Já que não havia regulação jurídica da matéria até a publicação do
Código Civil de 1916, as alterações de nome podiam ser promovidas com relativa
facilidade. Além disso, o número de prenomes tradicionais portugueses parecia
reduzido, aponta Alencastro.
Dentre
tantos, o caso "mais célebre, se não o mais radical", escreve o
estudioso, é provavelmente o do visconde de Jequitinhonha — denominação
geográfica também de raiz indígena, que tem o significado de "rio
largo".
O
baiano, nascido em 1794, chamava-se Francisco Gomes Brandão e era filho de um
traficante de escravos. Formou-se em Portugal, na Universidade de Coimbra,
obtendo os diplomas de filosofia e direito, sendo inclusive um dos precursores
da OAB, ao presidir instituto que à época se prestava a representar a classe
dos advogados.
Ao
retornar a Salvador, entrou a militar pela Independência. No ano de 1824,
esforçando-se para mostrar a determinação pela causa, trocou seus nomes
portugueses por "um verdadeiro manifesto nativista", afirma o
historiador, passando a se chamar Francisco Gê Acaiaba de Montezuma.
"Gê",
ou "jê", é um termo que faz menção aos tapuias, expressão genérica
para designar grupos indígenas que não falavam tupi-guarani, enquanto Acaiaba é
um vocábulo tupi, referente à cajazeira. Já Montezuma é uma referência ao
imperador do povo pré-colombiano mexica (ou asteca) à época da invasão das
tropas espanholas, no início do século 16. "Colocar um termo asteca nome
também era uma forma de se dizer americano e alinhado a um certo povo
considerado civilizado", afirma Pimenta, da USP.
Dom
Pedro 1º também está no balaio. Ao passar a frequentar a loja maçônica do
Grande Oriente, fundada em junho de 1822 no Rio de Janeiro, o primeiro imperador
do Brasil recebeu, como era costumeiro, um nome de batismo: tornou Pedro
Guatimozín, referência a outro imperador mexica.
Um
exemplo de indianização com elementos indígenas puramente locais ocorreu com um
ramo da família de senhores de engenhos Fonseca Galvão, de Pernambuco,
"que mudou o nome legitimamente português", como escreve Gilberto
Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), para Carapeba, termo tupi que faz
referência a um peixe da família dos guerrídeos. Clérigos e militares também acharam
espaço na tendência.
O
número 5 da Gazeta Pernambucana, publicado em novembro de 1822 e disponível no
arquivo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, chama atenção para um
ataque sofrido por um padre e deputado pró-Independência da província — algo
que na opinião do periódico seria injustificado por se tratar de alguém
favorável à causa do Brasil. A Gazeta, então, listou diversos nomes
"tupinizados", de indivíduos que estariam, assim, automaticamente
identificados com a separação política, merecendo proteção.
Entre
eles, estavam o padre Martinho Caetano Pegado, do Bispado de Pernambuco, que
adicionou um "Jacarandá" a seu nome e acabava por expressar seu apoio
a Dom Pedro 1º, recém-feito imperador. Outro destaque tinha o padre Bento
Januário de Lima, também de Pernambuco, que para se diferenciar justapunha um
"Camará", termo referente a uma planta em tupi. Manuel Alexandre
Taveira, segundo tenente de artilharia ligeira da província, "preferindo
morte à escravidão e ao despotismo", rogou aos "verdadeiros patriotas"
do Império o seu reconhecimento pelo nome modificado pela palavra
"Canetudo".
• O lugar dos indígenas no
pós-Independência
Outro
tipo de menção expressa dos pró-Independência aos indígenas ocorria na forma de
criação de meios de imprensa, diz Moreira. Este é o caso de José Bonifácio de
Andrada e Silva, considerado o "Patriarca da Independência" e
encabeçador do primeiro ministério formado por brasileiros.
Após
o seu pedido de demissão do gabinete de Dom Pedro 1º, fundou em 1823 um jornal
de tendência antilusitana e nativista com nome "O Tamoyo". O título
da publicação era uma referência ao grupo indígena que combateu os portugueses
no período colonial.
"Era
necessário fincar o pé em algo genuinamente brasileiro nessa época para
construir a identidade do Estado que estava se erguendo. Mas não percamos de
vista que o que se tem a partir do Marquês de Pombal e que também é o objetivo
de Bonifácio é um projeto de assimilação do indígena, de miscigenação dele com
outras raças, até que a sua identidade desapareça", afirma Fernanda
Sposito, historiadora e professora da Universidade Federal do Paraná.
Ela
se refere ao Diretório dos Índios, iniciativa legislativa de 1757 de Pombal,
primeiro-ministro português. Trata-se de uma lei assimilacionista que colocava
os aldeamentos indígenas sob administração de um diretor e intencionava
transformar os índios em vassalos do rei de Portugal.
Autora
da dissertação "Nem cidadãos, nem brasileiros", defendida na USP em
2006, Sposito afirma que o processo de formação de Estado brasileiro não
incluiu os indígenas em nenhuma dessas duas categorias. Ela também lembra que o
indígena não é sequer mencionado na Constituição de 1824 outorgada por Dom
Pedro 1º.
"Na
Assembleia Constituinte de 1823, houve a discussão sobre quem era o brasileiro
e, também, quem era o cidadão brasileiro. Vai se dizer que o indígena não é
nenhum dos dois, porque vive em guerra com a sociedade e é um selvagem",
aponta.
"O
brasileiro era quem aderia à Constituição, então não importava se você não
nascia aqui. O português podia ser considerado brasileiro, desde que residisse
aqui à época e declarasse apoio à Carta", explica ela, citando o caso do
próprio Dom Pedro 1º, português de origem.
O
próprio Montezuma, que, como vimos acima, indianizou o próprio nome, sendo
deputado da Constituinte, defendia a posição de que os índios estavam
"fora do do grêmio da nossa Sociedade".
"Não
são súditos do Império, não o reconhecem, nem por consequência suas
autoridades, da primeira até a última, vivem em guerra aberta conosco; não
podem de forma alguma ter direitos, porque não têm nem reconhecem deveres os
mais simples", afirmou o deputado, segundo o Diário da Assembléia Geral,
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, disponível pelo Senado
Federal.
• Sujeitos da história
A
professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Mariana Dantas,
chama a atenção para o fato de que a apropriação de nomes indígenas e seus
retratos na pintura e na literatura pela elite serviram para moldar a ideia de
que a população indígena "está no passado, e não no presente de construção
do país".
"A
referência aos tamoios como um grupo heroico, no caso do periódico de
Bonifácio, se localiza no tempo longínquo. É o mesmo caso de Iracema: ela
morre, desaparece e só serve para deixar um legado", diz Dantas. "A
ideia, não muito óbvia, mas que se insinua nas entrelinhas, é que o indígena
está sumindo e, aos poucos, vai sendo esquecido da história".
"É
uma ideia que, de alguma forma, perdura até hoje: a de que o índio bom, para a
nossa sociedade, é o índio morto", sentencia Pimenta, da USP.
Dantas
ressalta que é preciso levar em consideração o indígena como um sujeito
político, que, diferentemente de um espectador, é agente da história. "Não
é como no quadro do Victor Meirelles", diz ela, em referência à pintura A
primeira missa no Brasil, de 1861.
A
própria experiência dos indígenas contemporâneos da Independência mostra o grau
de sua participação política. Pesquisadora do papel dos índios nas revoltas
liberais de Alagoas e Pernambuco em sua tese de doutorado, que lhe valeu o
Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 2015, a historiadora avalia que os
nativos se organizavam a favor ou contra os processos políticos estudados com
base nos próprios interesses, como a defesa e o acesso à terra.
"Há
uma multiplicidade de formas de luta indígena, mas o nexo comum entre várias
participações políticas do índio no século 19 em Pernambuco, Ceará, Espírito
Santo ou Rio Grande do Sul, é a inserção deles nas redes de relação local
procurando principalmente defender o acesso coletivo à terra coletiva",
diz ela, citando ainda que a luta pela negociação do uso da mão de obra
compulsória do indígena era outro guia para a posição deles.
Deste
modo, índios se associavam a um político local porque este contribuíra, de
alguma maneira, para prevenir a invasão de seu território — o aldeamento
próximo ao povoamento colonial em que viviam, elucida Dantas.
Havia
grupos de índios, inclusive, que chegaram a defender a restauração de Dom João
6º, durante a Guerra dos Cabanos, já que associavam o regime monárquico à
concessão de terras que tinham a seu dispor, explica.
"Tematizar
a história indígena não é só citar que os índios estão ali, mas colocá-los em
posição de protagonismo. Nós nos esquecemos da sua presença porque nos acostumamos
com o índio mítico do passado fundador", diz Moreira, docente da UFRRJ.
"O
fato de eles terem acampado na Praça dos Três Poderes é um indicador do
engajamento político que têm", afirma, em referência às manifestações de
grupos indígenas em Brasília na última semana, em meio ao julgamento do Supremo
Tribunal Federal sobre o marco temporal da demarcação de terras.
Fonte:
BBC News Brasil
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