O
que levaria um intelectual brilhante a ceder a uma patética tentação sexual?
Será uma outra
masculinidade possível, ou permaneceremos eternamente nesse looping de
decepções, acusações, dúvidas e sofrimentos? As perdas são para todas e todos
os envolvidos em casos de assédio sexual. Perdas de reputação, perdas
profissionais, pessoais, familiares, de saúde, de paz.
Recentemente, quando
meu professor e orientador (fiz estágio sanduíche em Coimbra, em 2003, estando
ligada a essa Universidade até hoje, 21 anos depois) foi acusado de assédio,
uma parente me escreveu e perguntou: será verdade??? Ontem à noite, quando foram
divulgadas as denúncias contra Silvio Almeida, os primeiros comentários que
chegaram para mim foram variações em torno do “será verdade?”. Pessoas
incrédulas, assombradas, diante da admiração que sentiam tanto pelo acusado,
como por uma das denunciantes, aquela que representa sua irmã, cujo assassinato
revelou os bastidores da podridão miliciana, policial, institucional. Era para
estarmos todos juntos nas lutas… esse triste e inesperado episódio nos provoca
uma dissonância cognitiva, termo de Leon Festinger que foi recuperado por
autores atuais.
As mulheres que são
feministas, críticas do patriarcado cis-hetero-normativo, têm fechado em torno
de uma escolha: nunca questionar a veracidade de uma vítima de assédio que
denuncia. Isso porque são séculos de descrença, de opressão, de suportar
caladas as violências, de se envergonhar por violações sofridas. Somos educadas
para “não criar problemas”. Somos subjetivadas pelos sistemas de dominação
operantes, sendo o patriarcado o mais antigo deles. Essa aposta pode,
eventualmente, estar errada? Raríssimas vezes, pode sim. Lembro de apenas um
caso: o de Julian Assange. Ali, a teoria conspiratória tinha alguma base; os
poderosos do mundo armaram contra ele, que os desafiou. Contudo, meus caros e
caras, é extremamente raro. Assim, este texto parte do pressuposto
ético-político da veracidade das denúncias e da solidariedade às denunciantes.
Passei um vídeo para
meus alunos esta semana, no qual Regina Navarro Lins, num USP-Talks, falava que
antes da descoberta da participação masculina na reprodução humana, as mulheres
eram respeitadas e há hipóteses de sociedades matriarcais, pois matrilineares.
Tudo muda quando, ao iniciar a domesticação dos animais, percebeu-se que
ovelhas desgarradas não tinham filhotes. A observação aguçou-se e caíram as
fichas: é o macho que fertiliza a fêmea. Tal fenômeno teria coincidido com o
início da propriedade privada: daí passou a ser importante garantir a
paternidade, para fins de herança. Foi a partir daí que a mulher foi
aprisionada ao espaço privado, que se inventou que ela deveria ser recatada, do
lar e só se relacionar com o senhor seu marido.
Nem preciso dizer o
quanto as religiões patriarcais, como as tradições judaico-cristã e islâmica
reforçaram esse pensamento e essas práticas. Essa ideologia tomou conta de
praticamente todo o globo. Afinal, propriedade privada também se tornou uma
obsessão generalizada. Todo o tipo de maldade, guerra, atrocidade foi praticada
em função dela. E também ela se revestiu de um caráter moral, sacrossanto. Mas
isso já foge do meu foco e fica para outro texto; voltemos ao tema dos
assédios.
No primeiro caso que
citei, tratava-se de um “pai” intelectual, alguém que me ensinou muito sobre a
conexão do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, essa complexa
articulação que sustenta relações tão desiguais de poder e de saber. Foi, para
mim, um misto de tristeza, decepção, vergonha, culpa… mas culpa, de quê? De não
ter sido assediada? De ter tido uma relação muito boa com o orientador? Não faz
o menor sentido. Acontece que as emoções têm sua própria lógica, seus fluxos
incertos que independem de ideias racionais.
De qualquer modo,
refletir sobre tudo isso tem me levado a pensar que o patriarcado é uma
patologia. Ele rouba a lucidez, o bom senso e o equilíbrio tanto de homens
quanto de mulheres. Não falo aqui de machistas contumazes, dos que cultivam um
modelo de masculinidade à lá coach do Campari, pois esses não têm qualquer
lucidez para ser perdida. Me refiro a homens intelectualizados, inteligentes e…
de esquerda. Como nesses dois casos que citei.
O que leva um homem
altamente sofisticado em termos intelectuais, com uma brilhante carreira e
reputação a zelar, ceder a uma ridícula tentação quinta série de enfiar a mão
entre as pernas de uma mulher? Que patética insânia é essa? Que falta completa
de lucidez (nem falo de respeito, decência e dignidade, notem!) de colocar seu
nome em risco por tamanha cretinice, já que se sabe que hoje as mulheres também
intelectualizadas podem não ficar mais quietas?! Seria a certeza da impunidade
que milênios de patriarcado fixaram nos genes masculinos? Ou seria mesmo uma
posição alucinada que coloca sofisticados intelectuais de esquerda num nível
Pablo Marçal de canalhice e Jair Bolsonaro de burrice e tosquice? Um misto de
ambas as coisas?
As mulheres são, por
sua vez, colocadas em lugares de paralisia, medo, vergonha e pavor que estão
longe da lucidez (me refiro aqui, especialmente, às mulheres adultas e
informadas). Ao não denunciar, ao eventualmente seguirem engajadas na relação
profissional e/ou pessoal com o assediador, dão “munição ao inimigo”. Num caso
de eventual denúncia, anos passados dos eventos, perguntar-se-á: “por que não
denunciou antes? Será verdade?”. No primeiro caso citado, uma das denunciantes
relatou eventos que ocorreram em 2010, que foram terríveis, humilhantes e
sofridíssimos. Por que seguiu escrevendo ao assediador até 2014 (tive acesso
aos e-mails) em termos amistosos, inclusive solicitando recursos para
participação em eventos, tratando-o por “meu querido amigo”? Isso pôs em dúvida
a palavra dela diante de quem perguntou: será verdade?
Não podemos entrar em
dinâmicas de “eu aguento, porque tenho compensações, porque não posso falar,
porque não acreditarão em mim”… Talvez eu não esteja me exprimindo bem e temo
até ser mal interpretada (estou com as mulheres!), mas sinto que precisamos nós
também de um aprendizado para enfrentar essas situações, para agir rapidamente,
para não deixar a coisa andando por anos a fio, cronificando, naturalizando-se.
Compartilhei com meus
pares, minhas colegas de profissão, essas angústias, e as manifestações foram
no sentido de entender que ainda estamos aprendendo que o que antes se vivia
calada, hoje tem nome e não precisamos aceitar, não podemos mais aceitar. De compreender
e assimilar como um valor inegociável, assim como as mulheres que nos
antecederam aprenderam que violência sexual tinha nome e poderia ser
considerada ilegal, um crime. Que não estava certo ceder diante dos desejos do
homem, contrariando o seu próprio. Nesse difícil aprendizado, é natural que
haja ambivalências e contradições, hesitações e dificuldades. Uma colega da
área do direito ainda reforçou que se vê muito isso em processos judiciais, e
que serve sempre para desqualificar a vítima e sua denúncia, por vezes com
sucesso.
Seja como for, acho
que precisamos nos fortalecer e apoiar, para termos a força de gritar que fomos
assediadas! No lugar da paralisia, o grito: não aceitarei essa violência! Ela é
indigna e criminosa! Quando ela acontecer, será imediatamente rechaçada e denunciada.
Acho que conseguimos chegar lá, com apoio mútuo e acolhimento. Com mudança
cultural.
Quanto aos homens, o
“tratamento” da patologia começa por compreender que não têm de dominar nada
nem ninguém além deles mesmos. Controlar os impulsos é o controle que precisam
exercer: aquele sobre si mesmos. E saber que não se trata de jogo de sedução,
que não é algo lúdico: é asqueroso, criminoso, inadequado, nojento. Nosso campo
(esquerda, progressista, crítico, como queiram chamar) precisa dar conta da
questão étnico-racial e de gênero, ou seguirá refém de arrogâncias impermeáveis
à reflexão e autocrítica. Não há como mudar o cenário dantesco sem dolorosos
processos, que revelem o que nos entristece tanto. Receio não haver outro
caminho; vamos trilhá-lo juntos, homens e mulheres que sabem que isso tem de
acabar, que basta, como diz a Mafalda do Quino.
• A condenação perpétua de Silvio Almeida.
Por Luiz Eduardo Soares
Vocês acham que não
tem nada a ver com racismo, a velocidade fulminante com que se acusou, julgou e
condenou à abominação perpétua e irrevogável um homem, um homem negro
brilhante, devotado à luta antirracista, que por sua capacidade e trajetória se
destacava como postulante a posições de liderança em âmbito nacional e
internacional? Vocês acham mesmo que a sem-cerimônia com que se lhe marcou o
lombo com a figura em brasa do banimento nada tem a ver com a cor desse homem,
com sua ancestralidade, com a negritude retinta de sua pele? Silvio Almeida, em
menos de 24 horas, foi banido da pátria dos cidadãos decentes e honrados,
aqueles a quem se concede voz e dignidade. Faria sentido que ele viesse a ser
para sempre um apátrida, vagando entre o desprezo arrogante da direita e a
repulsa inflamada da esquerda? Um homem invisível?, não, pior.
Vocês pensaram que não
haveria destino mais doloroso do que a invisibilidade? Pois há, porque a
invisibilidade, embora devastadora, pode servir a estratégias de sobrevivência,
oferecendo uma espécie de sombra para quem precisa desesperadamente escapar de
algozes onipresentes. Invisibilidade pode ser trincheira solitária para quem o
desaparecimento é morte mais suportável do que o aviltamento sem consolo,
trégua ou salvação. O preso condenado um dia cumpre a sentença, o preso
torturado cultiva a esperança de reparação futura, mas a pessoa moralmente
desconstituída na fogueira da linguagem nunca mais terá abrigo em nenhuma
versão futura de nossa história comum. A pessoa moralmente estigmatizada corre
o risco de vir a ser, enquanto viver, um morto-vivo que contamina, com a morte
que ostenta, o espaço ao redor.
Uma acusação
autossuficiente percorre todas as etapas num átimo, da denúncia ao patíbulo.
Quem ousará por-se ao lado do condenado à morte que porta consigo a morte
adiada, contagiando os ambientes? Relatar a dor inominável da execração moral
significará aliar-se ao perpetrador e trazer para si o estigma da cumplicidade.
Quem se arriscará a imolar-se na pira sacrificial dos bons sentimentos? Quem
ensaiar um gesto de empatia com o banido será apedrejado com as réplicas óbvias
e inevitáveis, que cobrarão a omissão da outra dor, a dor das vítimas, o
sofrimento negligenciado quando o foco da descrição é o tormento imposto ao
acusado. Mais uma volta no parafuso, acuando os que duvidam, hesitam, lamentam
a tragédia que se abate sobre ambos, acusado e vítima.
O conflito seríssimo
entre a necessidade de legitimar a voz das vítimas, tomando a sério as
acusações, e, ao mesmo tempo, respeitar a presunção de inocência e o direito de
defesa, este conflito está longe de ter sido resolvido, seja legalmente, seja
cultural, moral e politicamente. Estamos pendurados sobre o abismo por um fio,
e para que ele não se rompa temos de, pelo menos, penso eu, ter humildade e
extremo cuidado ante casos desse tipo, casos que essa situação dramatiza de
forma tão intensa, por suas implicações. Enfim, sinto uma tristeza imensa por
todas as perdas envolvidas, e pela ausência do reconhecimento da gravidade
desse impasse. Não há direito de defesa quando seu exercício é automaticamente
tomado como renovada agressão à vítima, uma espécie de extensão do ato
criminoso, desautorizando a própria defesa. Por outro lado, como sabemos,
chegamos a esse extremo porque era preciso reverter o histórico silenciamento a
que as mulheres eram submetidas, silenciamento patriarcal que desautorizava
suas acusações.
No caso de Silvio
Almeida, não apenas este impasse foi reposto para a sociedade brasileira. A
dupla opressão de gênero e raça está sendo mobilizada. Abusos têm sido a
linguagem do opressor masculino. Acusações que precipitam condenações perpétuas
e irreversíveis têm sido a linguagem do racismo, de que dá testemunho o
encarceramento em massa de jovens negros, cujas sentenças tantas vezes se
fundamentam na palavra do policial, responsável pela prisão em flagrante.
Em nome do respeito
que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu
me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da
policialização e da penalização das situações que talvez pudessem ser melhor
enfrentadas e elaboradas por outras linguagens e mecanismos, em que fossem
efetivamente rompidas as estruturas que acabam reiterando as opressões de raça
e gênero, articuladas com o domínio de classe. Não nos iludamos: as condenações
morais que são perpétuas e transcendem penas não fazem avançar as lutas mais
nobres, apenas agravam as dramáticas iniquidades brasileiras, que trituram
tantas vidas — com a mais perversa hipocrisia —, em nome da justiça, da ordem e
da moralidade.
Fonte: Por Marília
Veríssimo Veronese, na Rede Estação Democracia/Outras Palavras
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