quarta-feira, 11 de setembro de 2024

 O que levaria um intelectual brilhante a ceder a uma patética tentação sexual?

Será uma outra masculinidade possível, ou permaneceremos eternamente nesse looping de decepções, acusações, dúvidas e sofrimentos? As perdas são para todas e todos os envolvidos em casos de assédio sexual. Perdas de reputação, perdas profissionais, pessoais, familiares, de saúde, de paz.

Recentemente, quando meu professor e orientador (fiz estágio sanduíche em Coimbra, em 2003, estando ligada a essa Universidade até hoje, 21 anos depois) foi acusado de assédio, uma parente me escreveu e perguntou: será verdade??? Ontem à noite, quando foram divulgadas as denúncias contra Silvio Almeida, os primeiros comentários que chegaram para mim foram variações em torno do “será verdade?”. Pessoas incrédulas, assombradas, diante da admiração que sentiam tanto pelo acusado, como por uma das denunciantes, aquela que representa sua irmã, cujo assassinato revelou os bastidores da podridão miliciana, policial, institucional. Era para estarmos todos juntos nas lutas… esse triste e inesperado episódio nos provoca uma dissonância cognitiva, termo de Leon Festinger que foi recuperado por autores atuais.

As mulheres que são feministas, críticas do patriarcado cis-hetero-normativo, têm fechado em torno de uma escolha: nunca questionar a veracidade de uma vítima de assédio que denuncia. Isso porque são séculos de descrença, de opressão, de suportar caladas as violências, de se envergonhar por violações sofridas. Somos educadas para “não criar problemas”. Somos subjetivadas pelos sistemas de dominação operantes, sendo o patriarcado o mais antigo deles. Essa aposta pode, eventualmente, estar errada? Raríssimas vezes, pode sim. Lembro de apenas um caso: o de Julian Assange. Ali, a teoria conspiratória tinha alguma base; os poderosos do mundo armaram contra ele, que os desafiou. Contudo, meus caros e caras, é extremamente raro. Assim, este texto parte do pressuposto ético-político da veracidade das denúncias e da solidariedade às denunciantes.

Passei um vídeo para meus alunos esta semana, no qual Regina Navarro Lins, num USP-Talks, falava que antes da descoberta da participação masculina na reprodução humana, as mulheres eram respeitadas e há hipóteses de sociedades matriarcais, pois matrilineares. Tudo muda quando, ao iniciar a domesticação dos animais, percebeu-se que ovelhas desgarradas não tinham filhotes. A observação aguçou-se e caíram as fichas: é o macho que fertiliza a fêmea. Tal fenômeno teria coincidido com o início da propriedade privada: daí passou a ser importante garantir a paternidade, para fins de herança. Foi a partir daí que a mulher foi aprisionada ao espaço privado, que se inventou que ela deveria ser recatada, do lar e só se relacionar com o senhor seu marido.

Nem preciso dizer o quanto as religiões patriarcais, como as tradições judaico-cristã e islâmica reforçaram esse pensamento e essas práticas. Essa ideologia tomou conta de praticamente todo o globo. Afinal, propriedade privada também se tornou uma obsessão generalizada. Todo o tipo de maldade, guerra, atrocidade foi praticada em função dela. E também ela se revestiu de um caráter moral, sacrossanto. Mas isso já foge do meu foco e fica para outro texto; voltemos ao tema dos assédios.

No primeiro caso que citei, tratava-se de um “pai” intelectual, alguém que me ensinou muito sobre a conexão do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, essa complexa articulação que sustenta relações tão desiguais de poder e de saber. Foi, para mim, um misto de tristeza, decepção, vergonha, culpa… mas culpa, de quê? De não ter sido assediada? De ter tido uma relação muito boa com o orientador? Não faz o menor sentido. Acontece que as emoções têm sua própria lógica, seus fluxos incertos que independem de ideias racionais.

De qualquer modo, refletir sobre tudo isso tem me levado a pensar que o patriarcado é uma patologia. Ele rouba a lucidez, o bom senso e o equilíbrio tanto de homens quanto de mulheres. Não falo aqui de machistas contumazes, dos que cultivam um modelo de masculinidade à lá coach do Campari, pois esses não têm qualquer lucidez para ser perdida. Me refiro a homens intelectualizados, inteligentes e… de esquerda. Como nesses dois casos que citei.

O que leva um homem altamente sofisticado em termos intelectuais, com uma brilhante carreira e reputação a zelar, ceder a uma ridícula tentação quinta série de enfiar a mão entre as pernas de uma mulher? Que patética insânia é essa? Que falta completa de lucidez (nem falo de respeito, decência e dignidade, notem!) de colocar seu nome em risco por tamanha cretinice, já que se sabe que hoje as mulheres também intelectualizadas podem não ficar mais quietas?! Seria a certeza da impunidade que milênios de patriarcado fixaram nos genes masculinos? Ou seria mesmo uma posição alucinada que coloca sofisticados intelectuais de esquerda num nível Pablo Marçal de canalhice e Jair Bolsonaro de burrice e tosquice? Um misto de ambas as coisas?

As mulheres são, por sua vez, colocadas em lugares de paralisia, medo, vergonha e pavor que estão longe da lucidez (me refiro aqui, especialmente, às mulheres adultas e informadas). Ao não denunciar, ao eventualmente seguirem engajadas na relação profissional e/ou pessoal com o assediador, dão “munição ao inimigo”. Num caso de eventual denúncia, anos passados dos eventos, perguntar-se-á: “por que não denunciou antes? Será verdade?”. No primeiro caso citado, uma das denunciantes relatou eventos que ocorreram em 2010, que foram terríveis, humilhantes e sofridíssimos. Por que seguiu escrevendo ao assediador até 2014 (tive acesso aos e-mails) em termos amistosos, inclusive solicitando recursos para participação em eventos, tratando-o por “meu querido amigo”? Isso pôs em dúvida a palavra dela diante de quem perguntou: será verdade?

Não podemos entrar em dinâmicas de “eu aguento, porque tenho compensações, porque não posso falar, porque não acreditarão em mim”… Talvez eu não esteja me exprimindo bem e temo até ser mal interpretada (estou com as mulheres!), mas sinto que precisamos nós também de um aprendizado para enfrentar essas situações, para agir rapidamente, para não deixar a coisa andando por anos a fio, cronificando, naturalizando-se.

Compartilhei com meus pares, minhas colegas de profissão, essas angústias, e as manifestações foram no sentido de entender que ainda estamos aprendendo que o que antes se vivia calada, hoje tem nome e não precisamos aceitar, não podemos mais aceitar. De compreender e assimilar como um valor inegociável, assim como as mulheres que nos antecederam aprenderam que violência sexual tinha nome e poderia ser considerada ilegal, um crime. Que não estava certo ceder diante dos desejos do homem, contrariando o seu próprio. Nesse difícil aprendizado, é natural que haja ambivalências e contradições, hesitações e dificuldades. Uma colega da área do direito ainda reforçou que se vê muito isso em processos judiciais, e que serve sempre para desqualificar a vítima e sua denúncia, por vezes com sucesso.

Seja como for, acho que precisamos nos fortalecer e apoiar, para termos a força de gritar que fomos assediadas! No lugar da paralisia, o grito: não aceitarei essa violência! Ela é indigna e criminosa! Quando ela acontecer, será imediatamente rechaçada e denunciada. Acho que conseguimos chegar lá, com apoio mútuo e acolhimento. Com mudança cultural.

Quanto aos homens, o “tratamento” da patologia começa por compreender que não têm de dominar nada nem ninguém além deles mesmos. Controlar os impulsos é o controle que precisam exercer: aquele sobre si mesmos. E saber que não se trata de jogo de sedução, que não é algo lúdico: é asqueroso, criminoso, inadequado, nojento. Nosso campo (esquerda, progressista, crítico, como queiram chamar) precisa dar conta da questão étnico-racial e de gênero, ou seguirá refém de arrogâncias impermeáveis à reflexão e autocrítica. Não há como mudar o cenário dantesco sem dolorosos processos, que revelem o que nos entristece tanto. Receio não haver outro caminho; vamos trilhá-lo juntos, homens e mulheres que sabem que isso tem de acabar, que basta, como diz a Mafalda do Quino.

 

•        A condenação perpétua de Silvio Almeida. Por Luiz Eduardo Soares

Vocês acham que não tem nada a ver com racismo, a velocidade fulminante com que se acusou, julgou e condenou à abominação perpétua e irrevogável um homem, um homem negro brilhante, devotado à luta antirracista, que por sua capacidade e trajetória se destacava como postulante a posições de liderança em âmbito nacional e internacional? Vocês acham mesmo que a sem-cerimônia com que se lhe marcou o lombo com a figura em brasa do banimento nada tem a ver com a cor desse homem, com sua ancestralidade, com a negritude retinta de sua pele? Silvio Almeida, em menos de 24 horas, foi banido da pátria dos cidadãos decentes e honrados, aqueles a quem se concede voz e dignidade. Faria sentido que ele viesse a ser para sempre um apátrida, vagando entre o desprezo arrogante da direita e a repulsa inflamada da esquerda? Um homem invisível?, não, pior.

Vocês pensaram que não haveria destino mais doloroso do que a invisibilidade? Pois há, porque a invisibilidade, embora devastadora, pode servir a estratégias de sobrevivência, oferecendo uma espécie de sombra para quem precisa desesperadamente escapar de algozes onipresentes. Invisibilidade pode ser trincheira solitária para quem o desaparecimento é morte mais suportável do que o aviltamento sem consolo, trégua ou salvação. O preso condenado um dia cumpre a sentença, o preso torturado cultiva a esperança de reparação futura, mas a pessoa moralmente desconstituída na fogueira da linguagem nunca mais terá abrigo em nenhuma versão futura de nossa história comum. A pessoa moralmente estigmatizada corre o risco de vir a ser, enquanto viver, um morto-vivo que contamina, com a morte que ostenta, o espaço ao redor.

Uma acusação autossuficiente percorre todas as etapas num átimo, da denúncia ao patíbulo. Quem ousará por-se ao lado do condenado à morte que porta consigo a morte adiada, contagiando os ambientes? Relatar a dor inominável da execração moral significará aliar-se ao perpetrador e trazer para si o estigma da cumplicidade. Quem se arriscará a imolar-se na pira sacrificial dos bons sentimentos? Quem ensaiar um gesto de empatia com o banido será apedrejado com as réplicas óbvias e inevitáveis, que cobrarão a omissão da outra dor, a dor das vítimas, o sofrimento negligenciado quando o foco da descrição é o tormento imposto ao acusado. Mais uma volta no parafuso, acuando os que duvidam, hesitam, lamentam a tragédia que se abate sobre ambos, acusado e vítima. 

O conflito seríssimo entre a necessidade de legitimar a voz das vítimas, tomando a sério as acusações, e, ao mesmo tempo, respeitar a presunção de inocência e o direito de defesa, este conflito está longe de ter sido resolvido, seja legalmente, seja cultural, moral e politicamente. Estamos pendurados sobre o abismo por um fio, e para que ele não se rompa temos de, pelo menos, penso eu, ter humildade e extremo cuidado ante casos desse tipo, casos que essa situação dramatiza de forma tão intensa, por suas implicações. Enfim, sinto uma tristeza imensa por todas as perdas envolvidas, e pela ausência do reconhecimento da gravidade desse impasse. Não há direito de defesa quando seu exercício é automaticamente tomado como renovada agressão à vítima, uma espécie de extensão do ato criminoso, desautorizando a própria defesa. Por outro lado, como sabemos, chegamos a esse extremo porque era preciso reverter o histórico silenciamento a que as mulheres eram submetidas, silenciamento patriarcal que desautorizava suas acusações.

No caso de Silvio Almeida, não apenas este impasse foi reposto para a sociedade brasileira. A dupla opressão de gênero e raça está sendo mobilizada. Abusos têm sido a linguagem do opressor masculino. Acusações que precipitam condenações perpétuas e irreversíveis têm sido a linguagem do racismo, de que dá testemunho o encarceramento em massa de jovens negros, cujas sentenças tantas vezes se fundamentam na palavra do policial, responsável pela prisão em flagrante.

Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização das situações que talvez pudessem ser melhor enfrentadas e elaboradas por outras linguagens e mecanismos, em que fossem efetivamente rompidas as estruturas que acabam reiterando as opressões de raça e gênero, articuladas com o domínio de classe. Não nos iludamos: as condenações morais que são perpétuas e transcendem penas não fazem avançar as lutas mais nobres, apenas agravam as dramáticas iniquidades brasileiras, que trituram tantas vidas — com a mais perversa hipocrisia —, em nome da justiça, da ordem e da moralidade.

 

Fonte: Por Marília Veríssimo Veronese, na Rede Estação Democracia/Outras Palavras

 

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