Monografias de militares associam PT ao crime,
defendem intervenção e ditadura e o Exército como 'poder moderador'
O Partido dos
Trabalhadores mantém relações com o narcotráfico e o crime organizado. É uma
grave ameaça à segurança nacional – por isso, as Forças Armadas devem assumir
um papel de intervenção direta na política para proteger o país. Essas são
algumas das alegações da monografia do capitão do exército Diego Pereira
Salgado, apresentada na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército
Brasileiro, a EsAO.
Com o título “Partidos
Políticos no Foro de São Paulo: Uma Ameaça à Segurança Nacional”, a monografia
que repete teorias conspiratórias e mentiras da extrema direita foi apresentada
em 2020 no curso de especialização em Ciências Militares com ênfase em Gestão
de Defesa na EsAO.
O trabalho também diz
que a Operação Lava Jato “trouxe à tona parte de um gigantesco esquema de
corrupção montado pelo Partido dos Trabalhadores como forma de angariar
recursos para financiar um projeto hegemônico de poder no Brasil”. Esse
projeto, defende o autor, “se inclui num projeto de poder continental
capitaneado pelo Foro de São Paulo”.
A monografia –
acredite se quiser – foi aprovada pela Escola do Exército, que prepara oficiais
intermediários em liderança, táticas e gestão militar para funções de comando e
estado-maior.
Salgado hoje serve no
setor de aprovisionamento da Escola de Sargentos das Armas. Neste ano, o
militar foi aprovado no processo seletivo para a Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército, a Eceme.
Analisando as
bibliotecas digitais do exército, o Intercept Brasil encontrou mais seis
trabalhos, apresentados entre 2012 e 2023, que embarcam em teorias
conspiratórias e defendem a interferência dos militares na política civil – o
que não tem respaldo na Constituição, ao contrário do que pregam algumas
interpretações.
Ao Intercept, o Centro
de Comunicação Social do Exército afirmou que os trabalhos acadêmicos
realizados “estão direcionados para a evolução da doutrina militar terrestre e
preservação da cultura
militar” e que visam desenvolver a “capacidade de reflexão e
o pensamento crítico”.
O Exército também
afirmou que, desde 2022, vigora uma norma que “que prevê expressamente que os
trabalhos acadêmicos devem ser apolíticos e sem conotação que possa sugerir
qualquer forma de identidade ideológica”.
Mas, entre os
trabalhos que encontramos está, por exemplo, o do tenente-coronel Luiz Augusto
Fontes Rebelo, apresentado em 2023 na Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército.
Rebelo usou sua
monografia para exaltar os tuítes do general Villas Bôas contra o Supremo
Tribunal Federal às vésperas do julgamento que definiria se Lula poderia
disputar as eleições presidenciais de 2018.
Villas Bôas havia
twittado que o Exército compartilhava os anseios dos “cidadãos de bem de
repúdio à impunidade”. O tuíte, na época, foi considerado uma interferência dos
militares em um assunto exclusivamente da esfera civil.
Porém, para Rebelo,
Villas Bôas é um exemplo de líder carismático, e suas manifestações seriam atos
de coragem. “No cenário brasileiro, pode-se exemplificar o atributo da coragem
nos tuítes realizados pelo general Villas Bôas, em 2018, como comandante do
EB”, diz o trabalho.
Rebelo também diz que
o general está no rol das “maiores lideranças estratégicas militares do país no
século XXI”. A monografia foi apresentada como pré-requisito para a matrícula
no Programa de Pós-graduação Lato Sensu em Política, Estratégia e Alta Administração
Militar na Eceme.
Na época em apresentou
o trabalho, intitulado “Os desafios da liderança militar estratégica como vetor
de garantia da estabilidade, legalidade e legitimidade no Brasil”, Rebelo era
coronel. Mais tarde, foi promovido e alcançou o comando do 26º Grupo de Artilharia
de Campanha.
Outro trabalho foi
apresentado em 2023 pelo major João Maurício Dias Lopes Valdetaro, do curso de
Ciências Militares da Eceme. No trabalho, ele propôs a criação de uma Companhia
de Assuntos Civis do Exército Brasileiro, que seria “fundamental para o desenvolvimento
dessa capacidade na Força Terrestre e no Ministério da Defesa”.
Embora a justificativa
seja melhorar a coordenação entre as forças militares e a população civil, a
iniciativa representa um perigoso precedente para a ampliação da influência
militar sobre assuntos civis.
Valdetaro destaca que
“a capacidade de Assuntos Civis do Exército Brasileiro foi evoluindo ao longo
do tempo, tendo como base a doutrina de Assuntos Civis do exército dos Estados
Unidos da América”. E que a companhia facilitaria a interface com o componente
civil da missão, podendo solucionar problemas que estejam impedindo o alcance
dos objetivos estratégicos, sem citar exemplos.
• Tom agressivo de Bolsonaro e intervenção
militar
Outro exemplo é o
coronel Magno Paiva Duarte, que apresentou sua monografia para a matrícula no
Programa de Pós-graduação Lato Sensu em Ciências Militares da Eceme.
No texto, o militar
tenta justificar o tom agressivo do então presidente Jair Bolsonaro contra as
instituições. “A radicalização da polarização política, aliado [a grafia foi
mantida] ao conflito gerado entre os poderes executivo, legislativo e judiciário,
caracterizado por este último extrapolar sua missão constitucional e interferir
ou mitigar os poderes do executivo, tem influenciado o Presidente [Jair
Bolsonaro] a dar depoimentos sobre o artigo 142 da Constituição Federal”.
Duarte também diz que
“em uma análise indutiva, enfoque ‘bottom-up’, observa-se que a população em
geral, com conhecimento superficial de direito, clama por uma intervenção
militar”. O militar chegou ao posto de tenente-coronel e foi para a reserva
como coronel em dezembro do ano passado.
• ‘Poder moderador’
Já a monografia “A
Importância do Exército Brasileiro ao Longo da História Política do Brasil: De
sua Criação até os Dias Atuais”, de 2019, do capitão Michael Pinheiro da Silva,
reforça uma ideia golpista recorrente nos últimos anos do Brasil: a de que o
Exército Brasileiro deve atuar como um poder moderador.
Na seção de objetivos
da monografia, o capitão destaca a importância do exército “durante o
desenvolvimento [da] História Política Nacional, sendo o fiel moderador e
responsável pela estabilidade nacional”.
O trabalho também defende que o golpe de 1964 foi uma resposta “legítima
e necessária às ameaças internas”.
O trabalho foi
apresentado na escola Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais em 2019. Silva
recebeu, em 2023, a Medalha Marechal Trompowsky por exercer a função de docente
em estabelecimento de Ensino do Sistema de Educação e Cultura do Exército.
A comenda tem como
propósito condecorar personalidades que prestaram relevantes serviços ao
Magistério do Exército.
• Mentalidade intervencionista persiste na
democracia
Embora muito presente
nas monografias, a tese de poder moderador do exército já foi refutada tanto
pela Câmara dos Deputados quanto pelo Supremo Tribunal Federal. Em junho de
2023, a Câmara emitiu um parecer esclarecendo que o artigo 142 da Constituição não
autoriza a intervenção militar, reforçando que as Forças Armadas não têm poder
para arbitrar conflitos entre os poderes.
Já em abril deste ano,
o STF, por unanimidade, decidiu que o mesmo artigo não concede poder moderador
aos militares, reafirmando que eles não podem intervir nos três poderes da
República. Ainda assim, dentro das instituições militares brasileiras, a intervenção
é vista como uma resposta legítima às crises políticas.
Para o antropólogo
Piero Leirner, pesquisador das Forças Armadas há mais de 20 anos e professor da
Universidade Federal de São Carlos, esses trabalhos estão “fora do propósito”
de uma formação tática ou estratégica, que deveria ser o foco das escolas do exército
— e são, na verdade, “puro suco
ideológico” e um guia operacional para ação política em esferas que não dizem
respeito à atuação das Forças Armadas.
Leirner afirma que
essa visão é internalizada e perpetuada por doutrinas e rituais militares. “Essas coisas são elaboradas no topo, mas
descem na hierarquia. Isso está embutido em todo regime de formação deles”, explica.
Ele argumenta que essa
ideologia é uma forma de compensar a falta de uma identidade sólida e controle
sobre a cadeia de comando, resultando em um narcisismo que vê a positividade da
nação como uma projeção dos próprios valores dos militares. “Para mim, seria
preciso muito divã sociológico para resolver isso”, completou.
Para Robson Augusto,
sociólogo, militar da reserva e editor da Revista Sociedade Militar, a
identidade militar é moldada em um ambiente isolado, onde os jovens oficiais
são incentivados a adotar a visão do superior para avançar em suas carreiras.
“Os jovens oficiais são ensinados nas
academias dentro de um ambiente isolado do mundo exterior, e existe um grande
estímulo à homogeneidade. ‘Se o general pensa assim eu tenho que pensar assim
para ser um bom oficial, pra chegar lá’. A confiança na liderança é imposta, e
a crença nas decisões do superior é essencial, mesmo sem verificação”, afirmou
o sociólogo.
Ele também aponta que
essa mentalidade se estende para aspectos políticos e sociais: poucos oficiais
discutem publicamente os riscos das ideias de “poder moderador” ou “intervenção
militar”. “Na minha visão, esse pensamento deve perdurar ainda por vários
anos”, argumenta.
Fonte: Por Cleber
Lourenço, em The Intercept
Nenhum comentário:
Postar um comentário