Um quilombo luta para se reerguer
A primeira vez que
noto a presença de João Resende de Souza ele está sendo conduzido para dentro
do salão comunitário do quilombo do Rincão dos Martimianos, no interior de
Restinga Seca (RS). Pouco depois, já do lado de fora, descubro que um problema
de saúde prejudica a visão do líder comunitário. Apesar da dificuldade
sensorial, logo percebo que a capacidade de enxergar o futuro permanece intacta
em João. Aos 65 anos, já foi pedreiro, carpinteiro, ferreiro e agricultor. As
mãos calejadas ajudam a contar a sua trajetória marcada pelo trabalho.
Com uma fala
tranquila, o homem preto com cerca de 1,70 metro menciona a dificuldade
encarada desde cedo pela comunidade rural: ser quilombola no interior no Rio
Grande do Sul é estar exposto ao racismo e a invisibilidade em muitas
dimensões. O reconhecimento da terra onde vive é o que motiva o líder a seguir
lutando por melhores condições para sua comunidade. “Daqui a 50 anos, meu
tataraneto vai ter um pedaço de terra garantido para ele”, afirma João, ao
apontar para os campos do território coletivo de 98 hectares do quilombo, fruto
de um processo de reconhecimento que começou há 20 anos, em 2004.
João é um dos bisnetos
de Martimiano Resende de Souza, filho de ex-escravizados que foi o primeiro a
ocupar o território que hoje pertence ao quilombo. Atualmente, são 54 famílias
que vivem na comunidade rural, mas as dificuldades econômicas para produzir
levam muitos a buscar emprego na cidade. Essa situação, explica João, está
relacionada à dificuldade em obter financiamento e apoio.
Diferente de médios e
grandes produtores rurais que recebem diversos incentivos públicos e privados,
os moradores do Rincão dos Martimianos encaram barreiras para obter empréstimos
para custear sua produção. Como a posse do território é coletiva, as terras não
podem ser dadas como garantia. “A nossa luta é para desenvolver uma política
voltada para termos acesso a financiamento. Quando chego no banco me pedem um
documento de terra como garantia. Essa política não foi desenvolvida para nós”,
reclama João Resende.
Uma das possibilidades
às quais a comunidade pretende recorrer é o Plano Safra da Agricultura Familiar
(PSAF), lançado em julho pelo governo federal, com a previsão de R$ 76 bilhões
em investimentos e linhas especiais para quilombolas, indígenas e assentados da
reforma agrária. Porém, antes a comunidade precisa trabalhar para recuperar
parte do solo que ficou inundado com as enchentes de maio no Rio Grande do Sul.
• Impactos do desastre e reconstrução
Presidente da
Associação do Quilombo Rincão dos Martimianos, Clédis Resende de Souza conta
que com o passar dos anos, a produção no território foi diminuindo, porém, a
comunidade possui o desejo de mudar esse cenário. “A comunidade tem esse anseio
de ter autonomia produtiva, desenvolver algumas culturas e resgatar nossa
ancestralidade”, afirma a líder comunitária e irmã de João Resende. Outro
objetivo está em valorizar as plantas e ervas medicinais, uma herança ancestral
do quilombo.
Durante o desastre
climático no estado, o território chegou a ficar quase uma semana isolado. As
chuvas também afetaram diretamente pelo menos quatro famílias. Apesar disso, os
impactos mais sentidos foram em parte da área antes utilizada para o cultivo de
arroz e outras atividades econômicas. “Hoje estamos sem pasto para o gado,
porque tudo ficou alagado. Também para produzir, lavou muito, as áreas de
mandioca e batata apodreceram e a lavoura de arroz também foi prejudicada”,
descreve Clédis.
Quando a reportagem
visitou o quilombo rural, um grupo de voluntários da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), em parceria com a Emater RS/Ascar e o município de Restinga
Seca, estavam realizando ações de apoio humanitário. As atividades incluíram o
cultivo de uma horta comunitária, doação de sementes e oficinas de saúde e
alimentação saudável.
“Essas comunidades
sempre estiveram em uma situação de vulnerabilidade”, lembra Victor Lopes,
coordenador de Cidadania da Pró-reitoria de Extensão da UFSM e um dos
responsáveis por organizar as ações. Segundo ele, desde a primeira visita
realizada no local, ainda no mês de junho, a comunidade já manifestou o
interesse, principalmente, em apoio para recuperar o solo e voltar a cultivar
suas terras.
Vice-presidente da
associação, Teresinha Aparecida Lopes Paim afirma que as necessidades de um
quilombo rural e familiar são diferentes de quilombos urbanos e outros grupos
sociais. Em manifestação no salão comunitário da comunidade, Teresinha é uma
das vozes mais ativas, inclusive, no momento de reivindicar melhorias nas
unidades de saúde que atendem à população do território.
Com 58 anos, Teresinha
possui um história de luta constante e atua também na Federação das Comunidades
Quilombolas do RS e na Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos
(Conaq-RS). Para conversar com ela, somente após o almoço, pois a coordenação da
cozinha era sua responsabilidade. Questiona sobre as demandas e desejos da
comunidade, ela reforça o que relatam João e Clédis de valorizar a terra e
buscar autonomia. “Trazemos essa ancestralidade do trabalho com a terra há
anos”, pontua Teresinha.
• Racismo e invisibilidade
De acordo com Clédis
Resende, muitas vezes a comunidade recebe mais atenção da Universidade do que
da administração local. Como comparação, mas não justificativa, a líder cita a
maior atenção destinada para outra comunidade quilombola de Restinga Seca, São
Miguel, onde vivem mais de 200 famílias.
João Resende também
menciona um episódio que exemplifica o racismo estrutural sofrido pelos
quilombolas. No início dos anos 2000, João tinha sido contratado para finalizar
a construção de uma série de residências financiadas pelo programa “Minha Casa
Minha Vida”. Com o dinheiro, ele foi até a cidade para comprar os materiais
necessários para a obra. Após fazer o pedido, foi questionado sobre como
poderia pagar. Na visão do quilombola, se fosse uma pessoa branca, essa
pergunta não seria feita.
Após o início do
processo de reconhecimento do território, João cita que pôde descobrir mais
sobre sua origem e adquirir mais força para lutar pela comunidade. “Até então
éramos uma comunidade invisível. Existíamos, mas não sabiam que nós
existíamos”, enfatiza o líder comunitário. Após esse primeiro passo em direção
à dignidade e efetivação dos direitos, o objetivo é resgatar a ancestralidade e
construir novos futuros para o Rincão dos Martimianos.
Fonte: Por Rôney
Rodrigues, em Outras Palavras
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