Campo: as transnacionais querem ser “bio”
A ONG internacional
Grain (Grano), com sede em Barcelona, em um estudo publicado na segunda
quinzena de agosto, confirma que todas as grandes corporações de agroquímicos
-como Bayer, BASF, Corteva, FMC, The Mosaic Group, Syngenta, UPL e Yara, entre
outras- já operam nessa área. Sob o nome de Bioinsumos Corporativos: O Novo
Negócio Tóxico do Agronegócio, o estudo afirma que essa “penetração nesse
mercado se dá de maneira agressiva devido à sua forma típica de proceder, por
meio de compras, contratos de licenciamento e fusões”.
A história do setor
agroquímico nas últimas décadas é repleta de paradoxos. Até o final da década
de 90, a Monsanto (que desde 2018 pertence à empresa alemã Bayer) produzia e
vendia, exclusivamente, defensivos químicos destinados a combater drasticamente
pragas em grandes áreas de monoculturas, com impactos desastrosos para os seres
humanos e para o meio ambiente. Agora, visa controlar o mercado global de
inseticidas do tipo “bio”. Durante todo esse tempo, foi, principalmente, o
campesinato que utilizou agrotóxicos não químicos, como os feitos a partir do
microrganismo Bacillus thuringiensis (Bt), de impacto mais lento e adequado a
unidades produtivas menores.
• O oportunismo como base de lucro
De acordo com o
relatório Bioinsumos. Oportunidades de investimento na América Latina,
publicado em 2023 pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação), o mercado global de insumos biológicos atingiu 10,6 bilhões de
dólares em 2021, enquanto o de insumos agroquímicos atingiu 245 bilhões. Até
2026, o setor de bioinsumos deverá responder por cerca de US$ 18,5 bilhões,
quase o dobro da taxa de cinco anos antes, como resultado de um crescimento
acelerado de proporções devido à voracidade transnacional.
Grain argumenta que
grande parte do mercado global de bioinsumos já está nas mãos das principais
multinacionais de agrotóxicos. Em 2022, a Bayer comercializou insumos de tipo
bio no valor de 214 milhões de dólares e projeta 1,6 bilhões em 2035. Em 2023, as
vendas da empresa estadunidense Corteva atingiram 420 milhões de dólares, e as
do grupo Syngenta, com sede na Suíça, 400 milhões. Essas corporações, assim
como o resto de suas concorrentes, estão interessadas em biopesticidas porque
são os produtos que mais vendem: cerca de metade do mercado global de
bioinsumos. A outra metade inclui biofertilizantes para nutrir as culturas e
bioestimulantes para aumentar sua capacidade de absorver nutrientes. Para
garantir esse crescimento acelerado, as grandes empresas têm concentrado seu
interesse em apenas alguns produtos, aqueles que contêm o microrganismo Bt: 90%
do mercado global de biopesticidas.
Em termos de impacto
regional, o maior mercado de insumos de base biológica está localizado nos
Estados Unidos e no Canadá, seguidos pela Ásia-Pacífico, Europa e América
Latina. Um caso emblemático é o do Brasil, um dos mercados em mais rápida
expansão e, portanto, um importante alvo para as transnacionais agroquímicas.
Em junho de 2024, o Brasil registrou a venda de 1.273 insumos bioagrícolas:
metade biopesticidas, metade biofertilizantes. Em sua maioria, destinados às
principais monoculturas, como soja, milho e trigo, 82% desses insumos foram
produzidos por empresas estrangeiras. De acordo com o Ministério da Agricultura
do Brasil, atualmente, os biofertilizantes são usados em quase 40 milhões de
hectares e os biopesticidas em 10 milhões de hectares. A área cultivável atual
nesse país sul-americano é de quase 79 milhões de hectares.
O estudo da FAO
destaca a magnitude do uso de agrotóxicos na América Latina. “Embora a produção
agrícola global seja sustentada por um uso intensivo de agroquímicos”, afirma,
“de acordo com dados de 2019, pelo menos nove países latino-americanos dobram ou
triplicam o número de quilos de pesticidas por hectare usados por países como
os Estados Unidos e o Canadá”. E ressalta que o aumento das temperaturas -como
resultado das mudanças climáticas-, acelera a forma como as pragas se
reproduzem, colocando maior pressão sobre os sistemas de produção da região.
Dados que reforçam a importância atribuída à América Latina pelas empresas
produtoras de insumos agroquímicos tradicionais e dos novos bioinsumos. E o
duplo papel que desempenham: por um lado, promover a produção em larga escala e
o agronegócio (ou agronegócio para exportação) e, por outro, contribuir para o
aquecimento global e para a crise climática.
• Agroquímicas e seu poder arrasador
A corrida das grandes
corporações agroquímicas no desenvolvimento e na promoção de bioinsumos anda de
mãos dadas com impressionantes avanços tecnológicos e científicos, como a
capacidade de editar geneticamente, com a biologia sintética e a ciência de dados,
que facilitam a identificação de microrganismos para a formulação de novos
bioprodutos. Além disso, os avanços tecnológicos permitem que eles garantam o
controle do monopólio por meio de patentes. De acordo com Grain, essas
corporações estão apostando em trazer esses produtos geneticamente modificados
ao mercado sem ter que enfrentar obstáculos regulatórios.
Uma patente é um
título de propriedade industrial através do qual o direito exclusivo sobre uma
invenção é reconhecido. Impede que outros façam, vendam ou usem tal invenção
sem o consentimento de seu proprietário. Entre 2000 e 2023, foram registrados
mais de 44 mil pedidos de reconhecimento oficial de patentes de bioinsumos em
todo o mundo.
Diante dessa avalanche
de multinacionais que tentam penetrar e se impor no mercado de insumos
biológicos a qualquer preço, a reação dos pequenos e médios produtores
agrícolas é insignificante. Segundo Grain, esse processo em curso “pode
provocar uma nova onda de privatização dos modos de vida” que até agora têm
sido reservados às comunidades camponesas e aos seus conhecimentos ancestrais.
As patentes de processos e sequências genéticas de microrganismos criarão um
mercado de bioinsumos dominado pelas corporações, dando-lhes direitos de
monopólio. Isso significa, diz Grain, que aqueles que desejam usar produtos com
certos componentes ou processos patenteados “devem obter autorização ou pagar
pelo direito de uso”. Como a Via Campesina e a Grain alertaram em 2015 em seu
documento conjunto sobre A Criminalização das Sementes Camponesas: Resistência
e Lutas, em caso de descumprimento dos mecanismos estabelecidos pelo direito
internacional de patentes, o campesinato pode receber multas onerosas e até
sentenças de prisão.
• Novo paradigma agrário
Essa é uma questão de
relevância global com um impacto significativo, particularmente para a América
Latina e o Caribe, que continua sendo fundamental para a segurança alimentar e
a preservação da biodiversidade no mundo; uma região que produz alimentos para
cerca de 1,3 bilhões de pessoas (mais que o dobro de sua população), reúne 50%
da biodiversidade do planeta e abriga seis dos países mais biodiversos do
planeta: Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e República Bolivariana da
Venezuela. E, ao mesmo tempo, possui o maior número de espécies de alimentos
silvestres ameaçadas, além de 200 milhões de hectares de terras já degradadas.
As grandes empresas do
agronegócio fazem parte das principais responsáveis pela crise climática e por
muitos outros problemas globais. Para Grain, “a solução não é apenas reduzir os
pesticidas e os fertilizantes químicos”, porque ambos são componentes inevitáveis
do modelo de agricultura industrial inserido em um sistema alimentar global
injusto e predatório, controlado por algumas corporações multinacionais. A
solução vem da definição de um novo paradigma de produção e distribuição
agrícola.
Nesse quadro, como, há
décadas, os movimentos sociais do campo vêm propondo o grande desafio que
consiste em realizar uma transição para a agroecologia baseada no conhecimento,
nos saberes camponeses, na inovação coletiva e na soberania alimentar, descartando
soluções tecnológicas caras e com patentes corporativas que apenas perpetuam a
agricultura industrial e suas consequências devastadoras. É, simplesmente, uma
questão de realocar o cursor social, colocando a saúde de cada ser vivo e da
Mãe Terra no centro.
Fonte: Por Sergio
Ferrari | Tradução: Rose Lima, em Outras Palavras
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