quarta-feira, 28 de agosto de 2024

A ameaça dos determinantes comerciais da saúde

Todos os anos, pessoas no mundo inteiro desenvolvem problemas de saúde, não conseguem tratá-los e morrem em consequência deles – por falta de dinheiro. Os remédios são artificialmente caros, os planos de saúde oferecem coberturas restritas por preços altíssimos e, em um sentido mais geral, manter a saúde está cada vez mais custoso. Crescentemente, ela vem se tornando uma mercadoria na atual fase da economia mundial.

Por isso, especialistas e ativistas frisam a necessidade de maior atenção aos efeitos dos determinantes comerciais da saúde (conceito derivado dos hoje amplamente reconhecidos “determinantes sociais da saúde”), em tempos de oligopólios dominando a indústria farmacêutica e outros setores estratégicos para a saúde. “As pessoas não têm dimensão da importância da saúde na economia. Os EUA já gastam 20% do PIB com saúde”, revela o economista e professor da PUC-SP Ladislau Dowbor.

Em debate promovido na sexta-feira (23/8) pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), Dowbor e a química e ex-diretora de Farmanguinhos/Fiocruz Eloan Pinheiro discutiram como essa mercantilização está afetando o Brasil e no mundo. “A Big Pharma definiu um modelo de desenvolvimento científico-tecnológico que se baseia em pagar gordos dividendos para seus acionistas e maximizar seus lucros”, explica Eloan. O regime global de patentes farmacêuticas e o Acordo TRIPS que o estrutura, ela revela, são dois de seus principais sustentáculos – mas a financeirização da saúde privada não fica para trás.

Dowbor e Pinheiro também discutiram no webinário os caminhos para impedir que os determinantes comerciais da saúde sigam tirando milhões de vidas todos os anos. A ação do Estado, eles apontam, pode ser decisiva. Com ações que vão do desenvolvimento do complexo econômico-industrial da saúde em favor da saúde pública a uma política de patentes mais ousada, o poder público será indispensável no enfrentamento da concepção da saúde como mercadoria.

Oligopólios dominam a saúde

Uma recente série de artigos na revista científica The Lancet voltada para a definição do que são os determinantes comerciais da saúde destaca que “há evidências esmagadoras de que algumas, particularmente as maiores corporações multinacionais e transnacionais estão tendo efeitos cada vez mais negativos na saúde humana e planetária e nas desigualdades sociais e de saúde. Esses vínculos complexos e muitas vezes negativos entre o setor comercial e a saúde são cada vez mais referidos como os determinantes comerciais da saúde.”

Estudioso da fase rentista do capitalismo, Dowbor indicou que um fator de agravamento da mercantilização da saúde nas últimas décadas foi a financeirização do setor. “Hoje, as empresas da saúde privada não são mais dirigidas por médicos. São grupos financeiros cujo objetivo é maximizar os retornos a curto prazo”, ele explica.

A saúde dos brasileiros já é vista pelos tubarões do financismo como um mercado atrativo, revela o economista: a BlackRock, maior gestora de ativos financeiros do mundo, adquiriu importante volume de ações da HapVida e da Qualicorp (além da NotreDame Intermédica, que está em fase final de fusão com a HapVida) nos últimos anos, por exemplo. Mas há muitos outros exemplos. Os métodos do setor financeiro na administração desses planos de saúde têm sido denunciados por este boletim – precarizar os serviços oferecidos, aumentar mensalidades e negar cobertura para forçar batalhas judiciais muito custosas para os clientes lesados.

Além das consequências para a qualidade do serviço prestado, o processo aprofunda a transferência de recursos de países em desenvolvimento, como o Brasil, para as grandes potências do Norte Global. “É um ‘mini-dreno’ de milhões de pessoas. O dinheiro que uma empregada no Brasil paga no plano de saúde ‘popular’ vai, em uma rápida sequência, da operadora do plano para a instituição financeira que a controla e, depois, para os acionistas internacionais dessa financeira”, explica o economista.

Nos últimos meses, pesquisas de Dowbor e de seu orientando de doutorado Eduardo Magalhães Rodrigues vem revelando o papel inesperadamente central das sete maiores empresas da saúde privada na economia do país. Desde fevereiro deste ano (1, 2, 3), Outra Saúde cobre os estudos da dupla, que põem estas “Sete Irmãs da Saúde” no centro de uma teia de financeirização intensamente ligada a fundos de investimentos globais e que controla não só os seguros de saúde, como também setores como os laboratórios farmacêuticos.  “Esse sistema não casa com os interesses da saúde”, arremata o economista sobre o oligopólio descoberto.

Patentes encarecem remédios

Contudo, a conquista da saúde suplementar pelas grandes finanças não é o único processo a representar o avanço dos determinantes comerciais da saúde. “A financeirização é acompanhada de um uso das patentes absolutamente inapropriado”, adiciona Dowbor.

Formada em Química na década de 1970, Eloan Pinheiro passou pela indústria farmacêutica privada na mesma década – época em que, como Outra Saúde já contou, o Brasil não reconhecia patentes de medicamentos – foi uma das pessoas que esteve à frente da produção de genéricos dos remédios para tratamento do HIV na Fiocruz nos anos 1990. O tema da propriedade intelectual é uma de suas especialidades. Por isso, ela apresenta a linha do tempo da infiltração das barreiras de patentes na Saúde.

Eloan explica que, até os anos 1970, as leis patentárias da maioria dos países (até mesmo alguns na Europa) não reconheciam direitos de propriedade intelectual no âmbito da produção e inovação farmoquímica. Ou seja, era possível a entes públicos ou privados de todo o mundo produzir versões genéricas de medicamentos sem pagar royalties às corporações que o desenvolveram – afinal, o essencial é garantir que o remédio seja acessível a quem precisa dele.

Porém, uma importante inflexão veio com a aprovação do Bayh-Dole Act pelo governo dos Estados Unidos em 1980. Essa lei permitiu que as empresas pudessem registrar patentes de invenções feitas a partir de pesquisas financiadas com dinheiro público. “É o contrário da noção do conhecimento como um bem público”, ela critica. Como a maior parte dos estudos na área da Saúde recebem recursos do Estado, inclusive os promovidos pela indústria, a nova legislação ampliou enormemente os lucros dos monopólios farmacêuticos da maior potência econômica do mundo.

Depois, no apogeu neoliberal dos anos 1990, a ofensiva comercial sobre a saúde virou global: naquela década, foi assinado o Acordo TRIPS, um tratado que impôs a todos os países que quisessem fazer parte da Organização Mundial do Comércio (OMC) a criação de leis patentárias mais duras, que incluíssem as patentes farmacêuticas. “Foi aí que a saúde adquiriu fortemente a presença comercial” que hoje a caracteriza, diz a química.

Mesmo assim, insatisfeitas com a duração limitada das patentes de seus produtos, as empresas farmacêuticas criam subterfúgios para estendê-la irregularmente e seguir coletando royalties. “No que eles chamam de evergreening, eles fazem uma pequena modificação e ganham mais vinte anos de vigência. Hoje em dia, vinte anos é sentar em cima” do remédio, critica Ladislau Dowbor.

“Desde então”,  aponta Eloan Pinheiro, “o que vemos é a Pfizer lucrando bilhões com vacinas e a ViiV lucrando bilhões com remédios”. O encarecimento dos remédios pelas patentes é uma realidade que amplia o caixa das empresas às custas do bolso das famílias e também do orçamento público dos países que buscam oferecê-los a seus cidadãos.

No Brasil, o exemplo mais aberrante é o dolutegravir, um importante remédio de HIV pelo qual o Brasil paga um valor dezenas de vezes mais alto que o preço internacional devido a problemas com a ViiV, empresa dona da patente. Outra Saúde já contou essa história, que envolve inclusive uma suspensão – cujas razões seguem sob segredo de Justiça – de uma parceria que permitia ao Lafepe, um laboratório público de Pernambuco, produzi-lo a baixo custo. Segundo um estudo de preços apresentado por Eloan, hoje pagamos R$4,18 por caixa do medicamento, enquanto o preço da OMS é de cerca R$0,21 por caixa.

Há inúmeros outros casos, que dificultam ou dificultaram o enfrentamento de doenças como a Hepatite C e a tuberculose.

Para enfrentar os determinantes comerciais da saúde

Excetuada a corajosa quebra da patente do dolutegravir pelo governo de Gustavo Petro, na Colômbia, a ação dos Estados tem sido tímida em todo o mundo frente à captura da saúde por interesses comerciais, seja no âmbito dos seguros ou do setor farmacêutico. No Brasil, não é diferente – o que causa estranheza a muitos ativistas pelo direito à saúde, já que, em 2007, o país se tornou referência internacional ao decretar a licença compulsória (nome técnico da “quebra de patente”) do efavirenz, outro medicamento usado para tratar HIV.

“Apesar de termos um governo progressista e uma ministra da Saúde altamente competente, a licença compulsória hoje é considerada uma subversão”, lamenta Eloan Pinheiro. Ela propõe um pequeno programa de quatro pontos que, se implementado, ajudaria a enfrentar os determinantes comerciais da saúde pelo ângulo da redução da vazão de recursos da Saúde Pública para os bolsos da indústria farmacêutica internacional.

Primeiro, ela aponta, é preciso fortalecer o complexo econômico-industrial da saúde –  não só com a criação de plantas industriais, mas também com a implantação de um centro estatal de desenvolvimento tecnológico para a área, similar ao Cenpes, da Petrobras, ou aos National Institutes of Health (NIH), do Estado-norte americano.  Além disso, defende a ativista, nos casos em que o país aprendeu a produzir um determinado Insumo Farmacêutico Ativo (IFAs) por meio de uma Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), o governo deve determinar a obrigatoriedade da aquisição dos IFAs nacionais para a produção de genéricos pelas farmacêuticas, a fim de estimular a competitividade desse setor estratégico.

Em terceiro lugar, seria preciso desonerar a cadeia de desenvolvimento farmoquímico “definindo uma política específica para a compra de insumos” necessários à indústria, explica a química. Por fim, avalia Eloan, é necessária uma política de desenvolvimento dos produtos que oneram fortemente o orçamento do Ministério da Saúde, inclusive aqueles que têm patentes em vigor – o que leva de volta à necessidade de voltar a ser mais ousado com a aplicação de licenças compulsórias.

Para além das medidas pontuais, o economista e a química reiteram que não há como postergar a ação organizada para conter a ganância corporativa que busca engolir a Saúde – os Comuns não podem seguir em mãos privadas, como defende Dowbor em seu livro Pão nosso de cada dia, publicado em parceria com Outras Palavras.

“A sociedade tem que se manifestar, tem que entender que tem direitos objetivos. Vacinas, diagnósticos e medicamentos têm que ser bens públicos, até porque a maior parte do financiamento é público”, conclui Eloan.

 

Fonte: Por Guilherme Arruda, em Outra Saúde

 

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