A ameaça dos determinantes comerciais da
saúde
Todos os anos, pessoas
no mundo inteiro desenvolvem problemas de saúde, não conseguem tratá-los e
morrem em consequência deles – por falta de dinheiro. Os remédios são
artificialmente caros, os planos de saúde oferecem coberturas restritas por
preços altíssimos e, em um sentido mais geral, manter a saúde está cada vez
mais custoso. Crescentemente, ela vem se tornando uma mercadoria na atual fase
da economia mundial.
Por isso,
especialistas e ativistas frisam a necessidade de maior atenção aos efeitos dos
determinantes comerciais da saúde (conceito derivado dos hoje amplamente
reconhecidos “determinantes sociais da saúde”), em tempos de oligopólios
dominando a indústria farmacêutica e outros setores estratégicos para a saúde.
“As pessoas não têm dimensão da importância da saúde na economia. Os EUA já
gastam 20% do PIB com saúde”, revela o economista e professor da PUC-SP
Ladislau Dowbor.
Em debate promovido na
sexta-feira (23/8) pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia),
Dowbor e a química e ex-diretora de Farmanguinhos/Fiocruz Eloan Pinheiro
discutiram como essa mercantilização está afetando o Brasil e no mundo. “A Big Pharma
definiu um modelo de desenvolvimento científico-tecnológico que se baseia em
pagar gordos dividendos para seus acionistas e maximizar seus lucros”, explica
Eloan. O regime global de patentes farmacêuticas e o Acordo TRIPS que o
estrutura, ela revela, são dois de seus principais sustentáculos – mas a
financeirização da saúde privada não fica para trás.
Dowbor e Pinheiro
também discutiram no webinário os caminhos para impedir que os determinantes
comerciais da saúde sigam tirando milhões de vidas todos os anos. A ação do
Estado, eles apontam, pode ser decisiva. Com ações que vão do desenvolvimento
do complexo econômico-industrial da saúde em favor da saúde pública a uma
política de patentes mais ousada, o poder público será indispensável no
enfrentamento da concepção da saúde como mercadoria.
Oligopólios dominam a
saúde
Uma recente série de
artigos na revista científica The Lancet voltada para a definição do que são os
determinantes comerciais da saúde destaca que “há evidências esmagadoras de que
algumas, particularmente as maiores corporações multinacionais e transnacionais
estão tendo efeitos cada vez mais negativos na saúde humana e planetária e nas
desigualdades sociais e de saúde. Esses vínculos complexos e muitas vezes
negativos entre o setor comercial e a saúde são cada vez mais referidos como os
determinantes comerciais da saúde.”
Estudioso da fase
rentista do capitalismo, Dowbor indicou que um fator de agravamento da
mercantilização da saúde nas últimas décadas foi a financeirização do setor.
“Hoje, as empresas da saúde privada não são mais dirigidas por médicos. São
grupos financeiros cujo objetivo é maximizar os retornos a curto prazo”, ele
explica.
A saúde dos
brasileiros já é vista pelos tubarões do financismo como um mercado atrativo,
revela o economista: a BlackRock, maior gestora de ativos financeiros do mundo,
adquiriu importante volume de ações da HapVida e da Qualicorp (além da
NotreDame Intermédica, que está em fase final de fusão com a HapVida) nos
últimos anos, por exemplo. Mas há muitos outros exemplos. Os métodos do setor
financeiro na administração desses planos de saúde têm sido denunciados por
este boletim – precarizar os serviços oferecidos, aumentar mensalidades e negar
cobertura para forçar batalhas judiciais muito custosas para os clientes
lesados.
Além das consequências
para a qualidade do serviço prestado, o processo aprofunda a transferência de
recursos de países em desenvolvimento, como o Brasil, para as grandes potências
do Norte Global. “É um ‘mini-dreno’ de milhões de pessoas. O dinheiro que uma
empregada no Brasil paga no plano de saúde ‘popular’ vai, em uma rápida
sequência, da operadora do plano para a instituição financeira que a controla
e, depois, para os acionistas internacionais dessa financeira”, explica o
economista.
Nos últimos meses,
pesquisas de Dowbor e de seu orientando de doutorado Eduardo Magalhães
Rodrigues vem revelando o papel inesperadamente central das sete maiores
empresas da saúde privada na economia do país. Desde fevereiro deste ano (1, 2,
3), Outra Saúde cobre os estudos da dupla, que põem estas “Sete Irmãs da Saúde”
no centro de uma teia de financeirização intensamente ligada a fundos de
investimentos globais e que controla não só os seguros de saúde, como também
setores como os laboratórios farmacêuticos.
“Esse sistema não casa com os interesses da saúde”, arremata o
economista sobre o oligopólio descoberto.
Patentes encarecem
remédios
Contudo, a conquista
da saúde suplementar pelas grandes finanças não é o único processo a
representar o avanço dos determinantes comerciais da saúde. “A financeirização
é acompanhada de um uso das patentes absolutamente inapropriado”, adiciona
Dowbor.
Formada em Química na
década de 1970, Eloan Pinheiro passou pela indústria farmacêutica privada na
mesma década – época em que, como Outra Saúde já contou, o Brasil não
reconhecia patentes de medicamentos – foi uma das pessoas que esteve à frente
da produção de genéricos dos remédios para tratamento do HIV na Fiocruz nos
anos 1990. O tema da propriedade intelectual é uma de suas especialidades. Por
isso, ela apresenta a linha do tempo da infiltração das barreiras de patentes
na Saúde.
Eloan explica que, até
os anos 1970, as leis patentárias da maioria dos países (até mesmo alguns na
Europa) não reconheciam direitos de propriedade intelectual no âmbito da
produção e inovação farmoquímica. Ou seja, era possível a entes públicos ou
privados de todo o mundo produzir versões genéricas de medicamentos sem pagar
royalties às corporações que o desenvolveram – afinal, o essencial é garantir
que o remédio seja acessível a quem precisa dele.
Porém, uma importante
inflexão veio com a aprovação do Bayh-Dole Act pelo governo dos Estados Unidos
em 1980. Essa lei permitiu que as empresas pudessem registrar patentes de
invenções feitas a partir de pesquisas financiadas com dinheiro público. “É o contrário
da noção do conhecimento como um bem público”, ela critica. Como a maior parte
dos estudos na área da Saúde recebem recursos do Estado, inclusive os
promovidos pela indústria, a nova legislação ampliou enormemente os lucros dos
monopólios farmacêuticos da maior potência econômica do mundo.
Depois, no apogeu
neoliberal dos anos 1990, a ofensiva comercial sobre a saúde virou global:
naquela década, foi assinado o Acordo TRIPS, um tratado que impôs a todos os
países que quisessem fazer parte da Organização Mundial do Comércio (OMC) a
criação de leis patentárias mais duras, que incluíssem as patentes
farmacêuticas. “Foi aí que a saúde adquiriu fortemente a presença comercial”
que hoje a caracteriza, diz a química.
Mesmo assim,
insatisfeitas com a duração limitada das patentes de seus produtos, as empresas
farmacêuticas criam subterfúgios para estendê-la irregularmente e seguir
coletando royalties. “No que eles chamam de evergreening, eles fazem uma
pequena modificação e ganham mais vinte anos de vigência. Hoje em dia, vinte
anos é sentar em cima” do remédio, critica Ladislau Dowbor.
“Desde então”, aponta Eloan Pinheiro, “o que vemos é a
Pfizer lucrando bilhões com vacinas e a ViiV lucrando bilhões com remédios”. O
encarecimento dos remédios pelas patentes é uma realidade que amplia o caixa
das empresas às custas do bolso das famílias e também do orçamento público dos
países que buscam oferecê-los a seus cidadãos.
No Brasil, o exemplo
mais aberrante é o dolutegravir, um importante remédio de HIV pelo qual o
Brasil paga um valor dezenas de vezes mais alto que o preço internacional
devido a problemas com a ViiV, empresa dona da patente. Outra Saúde já contou
essa história, que envolve inclusive uma suspensão – cujas razões seguem sob
segredo de Justiça – de uma parceria que permitia ao Lafepe, um laboratório
público de Pernambuco, produzi-lo a baixo custo. Segundo um estudo de preços
apresentado por Eloan, hoje pagamos R$4,18 por caixa do medicamento, enquanto o
preço da OMS é de cerca R$0,21 por caixa.
Há inúmeros outros
casos, que dificultam ou dificultaram o enfrentamento de doenças como a
Hepatite C e a tuberculose.
Para enfrentar os
determinantes comerciais da saúde
Excetuada a corajosa
quebra da patente do dolutegravir pelo governo de Gustavo Petro, na Colômbia, a
ação dos Estados tem sido tímida em todo o mundo frente à captura da saúde por
interesses comerciais, seja no âmbito dos seguros ou do setor farmacêutico. No
Brasil, não é diferente – o que causa estranheza a muitos ativistas pelo
direito à saúde, já que, em 2007, o país se tornou referência internacional ao
decretar a licença compulsória (nome técnico da “quebra de patente”) do
efavirenz, outro medicamento usado para tratar HIV.
“Apesar de termos um
governo progressista e uma ministra da Saúde altamente competente, a licença
compulsória hoje é considerada uma subversão”, lamenta Eloan Pinheiro. Ela
propõe um pequeno programa de quatro pontos que, se implementado, ajudaria a
enfrentar os determinantes comerciais da saúde pelo ângulo da redução da vazão
de recursos da Saúde Pública para os bolsos da indústria farmacêutica
internacional.
Primeiro, ela aponta,
é preciso fortalecer o complexo econômico-industrial da saúde – não só com a criação de plantas industriais,
mas também com a implantação de um centro estatal de desenvolvimento
tecnológico para a área, similar ao Cenpes, da Petrobras, ou aos National
Institutes of Health (NIH), do Estado-norte americano. Além disso, defende a ativista, nos casos em
que o país aprendeu a produzir um determinado Insumo Farmacêutico Ativo (IFAs)
por meio de uma Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), o governo
deve determinar a obrigatoriedade da aquisição dos IFAs nacionais para a
produção de genéricos pelas farmacêuticas, a fim de estimular a competitividade
desse setor estratégico.
Em terceiro lugar,
seria preciso desonerar a cadeia de desenvolvimento farmoquímico “definindo uma
política específica para a compra de insumos” necessários à indústria, explica
a química. Por fim, avalia Eloan, é necessária uma política de desenvolvimento
dos produtos que oneram fortemente o orçamento do Ministério da Saúde,
inclusive aqueles que têm patentes em vigor – o que leva de volta à necessidade
de voltar a ser mais ousado com a aplicação de licenças compulsórias.
Para além das medidas
pontuais, o economista e a química reiteram que não há como postergar a ação
organizada para conter a ganância corporativa que busca engolir a Saúde – os
Comuns não podem seguir em mãos privadas, como defende Dowbor em seu livro Pão
nosso de cada dia, publicado em parceria com Outras Palavras.
“A sociedade tem que
se manifestar, tem que entender que tem direitos objetivos. Vacinas,
diagnósticos e medicamentos têm que ser bens públicos, até porque a maior parte
do financiamento é público”, conclui Eloan.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outra Saúde
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