terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Os Guarani e Kaiowá lutam na ‘Faixa de Gaza’ do Brasil

Lá se vão alguns anos, talvez uma década, desde quando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chamou o território tradicional reivindicado pelo povo Guarani e Kaiowá, alguns quilômetros de terras no cone sul do Mato Grosso do Sul, de “a Faixa de Gaza no Brasil”. 

A morte da liderança Damiana Guarani e Kaiowá, na segunda-feira (6), de causas ainda em apuração pela Polícia Civil e pelo Ministério Público Federal (MPF), em justaposição ao inferno vivido pelos palestinos na Faixa de Gaza desde o último dia 7 de outubro, início da resposta de Israel ao ataque do Hamas, reavivam a sacada de Viveiros de Castro.  

Ao que o antropólogo chama de a Faixa de Gaza no Brasil se trata de uma área com cerca de 150 km, que margeia a fronteira com o Paraguai, onde acontecem os assassinatos de indígenas Guarani e Kaiowá, hoje e sempre, caso de Marçal Tupã, em 1983, despejos violentos e deslocamentos forçados desde a primeira metade do século XX.  

São cerca de 45 mil indígenas deste povo (IBGE, 2023) que reivindicam duas terras indígenas por ali: Pacurity (em fase de estudo) e Jatayvary (declarada), cujas demarcações, considerando a posse, estão em ao menos 95% dentro desta Faixa de Gaza Guarani e Kaiowá, conforme me explicou Flávio Vicente Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Para setores como o do agronegócio, os Guarani e Kaiowá não deveriam estar ali e ano após ano as terras do povo são subtraídas, invadidas e seus reais donos sofrem as consequências quando resistem. A devastação ambiental é quase total e o que restou de mata e rios está comprometido pelos agrotóxicos espalhados nos monocultivos, a erva daninha que tomou conta daquelas terras.

Resistentes, os Guarani e Kaiowá, desde meados da década de 1980, passaram a fazer retomadas de territórios e a enfrentar de forma abnegada um destino de extermínio. Então se habituou a falar em conflito, tal como na Faixa de Gaza ou na Cisjordânia, mas na verdade se trata de uma longa guerra de ocupação a que os Guarani e Kaiowá e os palestinos estão submetidos.

·        Questão é territorial  

Ocorre que a questão da Palestina não guarda semelhança apenas com a luta dos Guarani e Kaiowá, mas dos povos indígenas como um todo. Da mesma forma que a questão palestina passa de forma destacada pela discussão do território, não se tratando de conflito religioso ou de não aceitação da existência do Estado de Israel, a questão indígena envolve o mesmo tema.

“Não demarcar e viabilizar o acesso de exploradores às terras demarcadas foram eixos motores da antipolítica indigenista, que desterritorializou e fragilizou a aplicação do direito, gerando um ambiente de profunda insegurança e violências sem precedentes na história recente do Brasil”, apontou a antropóloga Lucia Helena Rangel no lançamento do relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2022, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Na Palestina, os mapas que mostram a redução do território do país árabe desde a criação do Estado de Israel, em 1948, são reveladores e bastante conhecidos.

Hoje os palestinos estão amontoados em territórios pequenos perto do que tinham, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, e quem não vive neles está em diáspora pelo mundo, refugiados em outros países, entre eles territórios palestinos tomados por Israel, ou em campos de refugiados.

Mesmo em contrariedade a resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) desde a década de 1970, Israel seguiu expandindo seus domínios sobre o território palestino à base de ocupação militar e colonização de áreas, com os colonos servindo como agentes de repressão aos palestinos que se veem obrigados a deixar para trás seus pertences e terras.

Confinamento em reservas/campos

A Faixa de Gaza da Palestina é maior, claro, tem pouco mais de dois milhões de pessoas vivendo em 365 km quadrados. Com 5.749 habitantes por quilômetro quadrado, a Faixa de Gaza dos palestinos é uma zona muito densamente povoada. São também quase uma dezena de campos de refugiados. Assim como são os poucos territórios garantidos aos Guarani e Kaiowá pelo Estado brasileiro, em sua maioria reservas indígenas bastante parecidas com os campos de refugiados – até mesmo no sentido de suas existências. 

No caso dos Guarani e Kaiowá, as reservas indígenas foram definidas em tempos remotos, sem a luz da Constituição de 1988. Hoje se converteram em campos de concentração. Um total de oito reservas insuficientes para acomodar milhares de famílias sem espaço para ter roça, espaço ritual e tudo o que envolve o jeito de ser Guarani e Kaiowá. As áreas foram organizando como bairros totalmente disfuncionais, à imagem das periferias dos grandes centros urbanos. 

Pelas cidades do entorno, portanto, é possível encontrar um grande contingente de indígenas buscando refúgio em terras tomadas de seu povo, atrás de espaço e meios de sobrevivência, onde são vistos como invasores e a eles todo o tipo de preconceito e racismo é despejado em doses violentas, desde agressões gratuitas e indução ao alcoolismo à exploração sexual e do trabalho quase escravo. 

As crianças Guarani e Kaiowá, assim como as palestinas, são as vítimas mais frágeis. Inúmeros estudos realizados entre o povo indígena mostram o elevado nível de desnutrição entre os pequenos causado pela aterradora falta de comida. Água potável e condições sanitárias adequadas são impossíveis em acampamentos às margens da estrada ou em descampados apenas com soja e veneno ao redor.

·        Ataques aéreos e terrestres   

Há registros aos montes de ataques aéreos e terrestres contra os indígenas com o uso de agrotóxicos despejados por aeronaves e jagunços contratados a partir de empresas de segurança privada. Na região do município de Dourados, um trator convertido em tanque de guerra, chamado de ‘caveirão’, foi usado contra as comunidades.

Assim como os palestinos, os Guarani e Kaiowá vivem sem acesso a direitos básicos, ou com severas restrições a alimentos, sobrevivendo em aldeias cercadas por fazendas e jagunços, acampamentos pauperizados às margens de rodovias, deslocados em seu próprio território como se fossem invasores. 

De tal modo que a relação entre estes dois povos pode ser ainda estabelecida pela abnegada luta por suas terras: apesar de toda a desgraça que pode se abater, de toda morte e desconcerto social que podem aguentar, se mantêm convictos em ficar perto ou sobre elas a qualquer custo.

Assim como a situação na Palestina, uma relatoria especial da Organização das Nações Unidas (ONU), encarregada de investigar supostas violações dos direitos dos povos indígenas e promover a implementação de padrões internacionais relativos aos seus direitos, relatou, em duas ocasiões, que contra os Guarani e Kaiowá recaem crimes de genocídio.  

Conforme dados do relatório Violência Contra os Povos Indígenas, do Cimi, no ano passado os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas foram Roraima (41), Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30), segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena, do SIM e de secretarias estaduais de saúde. Esses três estados concentraram quase dois terços (65%) dos 795 homicídios de indígenas registrados entre 2019 e 2022: foram 208 em Roraima, 163 no Amazonas e 146 no Mato Grosso do Sul.

No Mato Grosso do Sul, o assassinato de Alex Recarte Lopes, jovem Guarani Kaiowá de 18 anos, na Reserva Indígena Taquaperi, no município de Coronel Sapucaia, motivou uma série de retomadas de terra pelos indígenas, que foram duramente atacadas por fazendeiros e por operações policiais realizadas sem mandado judicial.

Uma dessas operações, ocorrida no Tekoha Guapoy, em Amambai (MS), resultou no assassinato do Guarani e Kaiowá Vitor Fernandes, de 42 anos, e deixou várias pessoas feridas. Devido à brutalidade do ataque, os Guarani e Kaiowá passaram a se referir ao caso como “massacre de Guapoy”.

Se pegarmos as escaladas da violência na Faixa de Gaza ou Cisjordânia, veremos eventos muito semelhantes. A pressão contra os palestinos vai numa crescente, perpassando meses, até mesmo pouco anos, então há uma reação, e a esta reação Israel costuma responder com força desproporcional. Como lá, aqui, a depender do governo, as tintas de genocídio são mais ou menos carregadas.

·        O ‘nakba’ Guarani e Kaiowá 

Certa vez uma liderança da Aty Guasu, a Grande Assembleia do povo, Eliseu Guarani e Kaiowá, me contou que para sua gente se trata de juntar os pedaços do que restou de vida após o apocalipse, ou seja, para eles o mundo já acabou – e não apenas uma vez. De modo que vivem uma espécie de distopia própria.

O Nakba, para os palestinos, se assemelha a isso: a palavra árabe significa “catástrofe” ou “desastre”. Trata do êxodo palestino de 1948, quando pelo menos 711 mil árabes palestinos, segundo dados da ONU, fugiram ou foram expulsos de seus lares, em razão da guerra civil de 1947-1948 e da Guerra Árabe-Israelense de 1948.

Talvez para os Guarani e Kaiowá o “Nakba” tenha sido a Guerra do Paraguai ou eventos prontamente anteriores ou posteriores a ela. Fato é que grande parte desta “Faixa de Gaza no Brasil”, antes da guerra, estava atrás das linhas paraguaias. Os Guarani e Kaiowá contam que o tekoha – lugar onde se é – Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante, ficava rente à fronteira antes da guerra. 

Depois veio a colonização dos tempos de Getúlio Vargas, que desejava criar densidade populacional no Centro-Oeste e Norte do país, e não parou mais. Grupos e mais grupos se dirigiam ao então Mato Grosso para ocupar aquelas terras, expulsando à força os Guarani e Kaiowá, no começo para plantar mate, com inúmeros relatos dos mais velhos de como seus pais e avós foram assassinados neste processo. 

Este “Nakba” Guarani e Kaiowá os empurrou para as reservas criadas para acomodar os sobreviventes, os desalojados sem direito algum sobre aquilo que lhes pertencia. Em que ponto está o mais recente apocalipse Guarani e Kaiowá, só eles possam dizer – e possivelmente a nossa forma de tratar o tempo e o espaço jamais nos permitirão entender como o mundo já acabou para muitos povos. 

 

Fonte: Jornal GGN  

 

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