Hospitais podem recusar procedimentos por
motivos religiosos?
"Vocês acham que
é fácil ser mulher? Ontem fui a uma consulta no Hospital São Camilo e a médica
me informou que não pode colocar o DIU em mulheres porque isso vai contra os
valores religiosos da instituição."
Essas duas frases,
postadas no X na terça-feira (23/1) pela produtora de conteúdo Leonor Macedo,
foram o gatilho para um extenso debate sobre o acesso a procedimentos e
tratamentos em instituições de saúde brasileiras que têm vínculos religiosos.
Só para
contextualizar, DIU é uma sigla para dispositivo intrauterino, um pequeno
objeto de metal ou plástico que é implantado no útero e que funciona como um
método contraceptivo de longa duração. Ele tem a eficácia e a segurança
comprovadas por diversos estudos clínicos e está disponível há alguns anos no
Sistema Único de Saúde (SUS).
O Hospital São Camilo
usou a mesma rede social para se posicionar sobre a questão. Ao responder
diretamente a postagem de Macedo, a instituição afirmou que, "por diretriz
institucional", não realiza procedimentos contraceptivos, "seja em homens
ou mulheres".
Em nota enviada à BBC
News Brasil, o hospital reforçou que é "uma instituição confessional
católica" e "tem como diretriz não realizar procedimentos
contraceptivos".
"Tais
procedimentos são realizados apenas em casos que envolvam riscos à manutenção
da vida."
"Os pacientes que
procuram pela Rede de Hospitais São Camilo - SP e que não apresentam riscos à
saúde são orientados a buscar na rede referenciada do plano de saúde hospitais
que tenham esse procedimento contratualizado", complementa o texto.
Um centro de saúde
pode se recusar a oferecer determinados procedimentos alegando questões
religiosas?
A BBC News Brasil
consultou especialistas em Direito Sanitário e Bioética — e cada um deles
trouxe uma interpretação diferente sobre uma situação dessas, como você confere
a seguir.
• 'Infração a um direito fundamental'
O advogado Henderson
Fürst, presidente da Comissão de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), avalia que alguns direitos foram violados neste caso.
"O planejamento
familiar está configurado como um direito na própria Constituição e aparece
regulamentado como lei", pontua o especialista, que também é diretor da
Sociedade Brasileira de Bioética.
A lei 9.263,
promulgada em 1996, afirma que "o planejamento familiar é direito de todo
cidadão".
No texto desta lei, o
planejamento familiar é definido como "o conjunto de ações de regulação da
fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento
da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal".
O mesmo artigo ainda
lembra que "as ações de planejamento familiar serão exercidas pelas
instituições públicas e privadas, filantrópicas ou não, nos termos desta Lei e
das normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização estabelecidos pelas
instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde".
"Ou seja, estamos
diante de uma infração dos direitos que todo brasileiro possui em relação ao
planejamento familiar", interpreta Fürst.
Na visão do advogado,
a recusa na implantação do DIU — um dos métodos contraceptivos que permite às
mulheres organizarem a própria vida e decidirem quando querem ter filhos, como
assegurado por lei — representa um problema jurídico.
"Se estivéssemos
falando de a instituição recusar uma cirurgia plástica estética, que não está
vinculada a um direito fundamental, estaríamos diante de um cenário bem
distinto", exemplifica o advogado.
Fürst vê um segundo
ponto de atenção neste debate. Ele lembra que os médicos têm o direito de negar
atendimento, procedimentos ou tratamentos sob uma justificativa de objeção de
consciência, com fundo moral, ético ou religioso.
Segundo ele, isso não
se aplica às instituições de saúde.
"Vamos imaginar o
caso de uma menina de menos de 14 anos que engravidou. Trata-se de um estupro
presumido e ela pode interromper essa gestação. Essa é uma das hipóteses em que
o aborto legal está previsto", explica o advogado.
"Agora, vamos
supor que todos os médicos de uma instituição se recusem a fazer esse aborto.
Eles têm esse direito. Mas é dever do hospital ir atrás de profissionais que
não tenham essa objeção de consciência para realizar o procedimento."
"Uma instituição
de saúde não pode argumentar que não comunga com determinados valores e deixar
de prestar o serviço."
Para Fürst, quando um
hospital proíbe os médicos de realizar um certo procedimento — que está
regulamentado e aprovado por agências regulatórias e outras instâncias —, há
uma limitação da autonomia desses profissionais de saúde.
"E isso pode
violar o direito e limitar a atuação deles. O código de ética diz que o médico
deve exercer sua profissão com autonomia", diz ele.
• 'Extrapolação do direito de médicos'
Para o advogado
Fernando Aith, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo (FSP-USP), o posicionamento do Hospital São Camilo traz uma
extrapolação daquela prerrogativa garantida aos médicos.
"Do ponto de
vista jurídico, o profissional médico pode se recusar a fazer um atendimento
que vá contra qualquer crença ou convicção particular que ele possua. A
novidade é esse tipo de postura ser adotado por uma instituição", reforça
o especialista, que também é diretor do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário
da USP.
"Por ser uma
instituição privada religiosa, o hospital pode ter regras internas que impõem
certos limites aos procedimentos."
"Nesse caso,
estaríamos diante de uma extensão analógica de uma regra que vale para o
médico, como pessoa física, para o empregador. E isso é algo que pode gerar
controvérsias jurídicas", admite Aith.
O advogado também
destaca a questão da autonomia médica e questiona como o Conselho Federal de
Medicina (CFM) se posicionaria diante de uma situação como essa.
"O empregador
pode estar impondo aos seus médicos um tipo de conduta terapêutica que o
profissional não necessariamente concorda."
Aith lembra que o CFM
utilizou bastante o argumento da autonomia médica durante a pandemia de
covid-19 para defender a liberdade dos profissionais da saúde de prescrever
determinados tratamentos.
A BBC News Brasil
procurou o CFM para avaliar o episódio. Por meio da assessoria de imprensa, o
órgão disse que, como "instância de julgamento", prefere se abster de
fazer comentários sobre casos concretos, "para manter a isenção".
"Qualquer pessoa
pode apresentar queixa sobre fatos aos quais tenha sido confrontado junto ao
Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado onde tenham ocorrido. Caberá ao
CRM analisar a situação e tomar as providências necessárias, após realização de
sindicância", complementa o conselho.
O professor da USP
entende que é preciso avaliar em detalhes se, apesar de ser uma instituição
privada, o Hospital São Camilo presta algum tipo de serviços ao SUS — e, neste
contexto da saúde pública, também veta os métodos contraceptivos.
"Se existir esse
tipo de recusa para pacientes do SUS, haveria uma violação de toda a lógica do
sistema de saúde e dos protocolos de contracepção estabelecidos no país",
interpreta ele.
A BBC News Brasil
questionou o Hospital São Camilo, para entender se existe alguma prestação de
serviços pelo SUS — e se, no âmbito da rede pública, a instituição oferece (ou
não) métodos contraceptivos que são preconizados pelo Ministério da Saúde.
O hospital respondeu
que, "em São Paulo, não realiza atendimento ao SUS".
"Porém, as
atividades das unidades Pompeia, Santana e Ipiranga subsidiam cerca de 40
unidades administradas pela São Camilo e que atendem pacientes do SUS em 15
Estados brasileiros", acrescentou.
A BBC News Brasil
perguntou novamente se as unidades ligadas ao SUS administradas/subsidiadas
pelo São Camilo oferecem métodos contraceptivos.
Em resposta, o
hospital encaminhou uma nota das entidades camilianas — a ordem católica que
gere a instituição:
"Informamos que
em todas as unidades a diretriz é não realizar procedimentos contraceptivos em
homens ou mulheres, exceto em casos de risco à saúde, em alinhamento ao que é
preconizado às instituições confessionais católicas."
• 'Não há urgência ou emergência'
A advogada Mérces da
Silva Nunes, especialista em Direito Médico e Bioética pela Faculdade de
Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que a postura do Hospital
São Camilo não apresenta problemas do ponto de vista jurídico.
"Primeiro,
trata-se de uma instituição privada, que professa a doutrina da Igreja Católica
e segue esse regramento", começa ela, que também é mestre e doutora em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
"Além disso,
nesse caso concreto, não há uma situação de urgência ou emergência em relação à
saúde ou à vida da paciente."
"Toda a questão
está centrada na necessidade imediata de socorro do paciente. O planejamento
familiar é uma necessidade, mas não é algo que terá um impacto imediato na
saúde do indivíduo. É algo diferente de você precisar socorrer alguém com
prontidão, para evitar uma morte."
"Ou seja, como
não era uma situação de emergência, eu entendo que a instituição pode sim
autorizar ou não determinados procedimentos", complementa ela.
Para a especialista,
esse caso contrapõe diferentes direitos fundamentais. Por um lado, as pessoas
têm garantido por lei o acesso ao planejamento familiar. Por outro, há questões
de liberdade religiosa — e instituições privadas podem escolher os procedimentos
que elas vão oferecer ao público.
"Se esta fosse a
única instituição que realiza esse tipo de procedimento, daí entendo que ela
não poderia se recusar a fazê-lo. Mas é possível acessar esse método
contraceptivo por outros meios, no próprio plano de saúde", argumenta ela.
Nunes reforça que, em
casos de vida ou morte, as instituições de saúde são obrigadas a prestar
assistência e realizar procedimentos, mesmo que eles sejam contrários à visão
de mundo ou às diretrizes internas do estabelecimento.
"Além disso, se
estivéssemos falando de uma instituição pública de saúde, isso não teria
cabimento, porque há o dever constitucional de fazer todos os procedimentos
necessários para a preservação da saúde de uma pessoa", pontua a advogada.
Nunes também destaca
que o São Camilo deixou claro que não oferece métodos contraceptivos nem para
homens, nem para mulheres.
Caso o estabelecimento
só limitasse o acesso do público feminino, no entanto, poderia enfrentar
problemas. Nesse caso hipotético, haveria uma desigualdade de gêneros.
"Eu
particularmente penso que, numa situação dessas, haveria um ato discriminatório
e a instituição poderia responder por isso", explica ela.
• 'Do ponto de vista da bioética, há
vários riscos'
O médico
infectologista Dirceu Greco, professor emérito da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), lembra que esse não é o primeiro episódio em que instituições de
saúde que têm vínculo com a Igreja Católica se recusam a oferecer métodos
contraceptivos durante consultas.
Numa reportagem
publicada em 2019 no site Rewire News Group, a escritora Evann Normadin relatou
que não teve acesso ao DIU mesmo após pedir a implantação do dispositivo
durante uma consulta realizada no Hospital Universitário Medstar Georgetown, em
Washington, nos Estados Unidos. O centro também é gerido por organizações
católicas.
Já uma matéria do The
Guardian de 2023 destaca que hospitais controlados por instituições católicas
na Austrália usavam o argumento religioso para negar a realização de diversos
métodos contraceptivos — desde a laqueadura até o DIU.
Greco, que foi
presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, também chama a atenção para
alguns artigos do Código de Ética Médica, publicado pelo CFM.
O artigo 31, por
exemplo, afirma que é vedado ao médico "desrespeitar o direito do paciente
ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de
práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de
morte".
Já o artigo 42 diz que
este profissional de saúde não pode "desrespeitar o direito do paciente de
decidir livremente sobre método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo
sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco".
"Os princípios
fundamentais do Código de Ética também apontam que 'a Medicina é uma profissão
a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem
discriminação de nenhuma natureza'", cita Greco, que é membro do Comitê
Internacional de Bioética da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco).
Na avaliação do
professor, ao recusar o acesso a métodos contraceptivos, um hospital pode estar
desrespeitando esses princípios e artigos.
"Então, do ponto
de vista da bioética, há vários riscos numa situação como essas. Primeiro,
mesmo num Estado laico como o nosso, parece haver um impedimento para que as
coisas aconteçam com respeito à separação entre Igreja e o Estado", opina
Greco.
"Um caso desses
também descarta a decisão pessoal, autônoma e informada do paciente de receber
tratamento ou procedimento, que está correto do ponto de vista
científico."
Por fim, Greco diz que
é necessário avaliar a abrangência dessas decisões de hospitais e centros de
saúde brasileiros, que estão de alguma maneira ligados a uma religião.
"Precisamos ver
se as pessoas estão impedidas de exercer seus direitos aos cuidados em saúde
baseados exclusivamente em causas religiosas, que podem ir de encontro ao foco
de toda a atenção médica, que é sempre a saúde do paciente sem qualquer tipo de
discriminação", conclui ele.
Fonte: BBC News Brasil
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