Um programa
democrático para as Forças Armadas (parte 2)
Supervisão
Parlamentar: A Câmara dos Deputados de nosso país possui uma área denominada
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Um exame das propostas e
relatórios feitos pelos seus integrantes revela que seus parlamentares tem realizado
muitas ações que cabem a ela por determinação legal. Entretanto, pelo exame de
tais documentos verifica-se que a mesma se volta apenas para o desenvolvimento
de funções burocráticas rotineiras.
Observe-se
que em alguns países do mundo há uma representação no parlamento que cuida de
assuntos militares e desenvolve outros tipos de ações. Na Alemanha, por
exemplo, existe a figura do Wehrbeauftragten des Deutschen Bundestages ou o
Comissário Parlamentar das Forças Armadas atualmente exercido por Eva Högl.
Essencialmente ele é um defensor dos interesses dos militares. Uma de suas
principais funções é tomar as medidas cabíveis se constatar violação dos
princípios de desenvolvimento de liderança e educação cívica ou de direitos
básicos do Bundeswehr. Note-se que qualquer fardado, desde o soldado raso até o
general, tem a opção de levar suas queixas diretamente ao Comissário
Parlamentar das Forças Armadas sem aderir à cadeia de comando. O titular desta
comissão está sempre se empenhando para obter informações detalhadas sobre as
forças. Todos os anos costuma visitar vários locais onde se encontram quartéis
das forças armadas. Durante suas visitas recebe informações não apenas de
líderes militares, mas também em conversas diretas com os demais. O Comissário
deve garantir o cumprimento dos exércitos ao Innere Führung, que é, em primeiro
lugar, o conceito de soldado cidadão e militar totalmente integrado numa
democracia liberal e numa sociedade pluralista.
Na
Bósnia e Herzegovina, o principal objetivo perseguido pelo comissário da defesa
é de fortalecer o estado de direito, os direitos humanos e as liberdades dos
militares conforme garantido pela Constituição e convenções internacionais
ratificadas pelo país. Na Austrália existe a figura do ombudsman encarregado de
receber denúncias de abuso praticados contra integrantes das Forças Armadas e
investigar reclamações sobre medidas administrativas tomadas em instâncias
superiores. A comissão de defesa brasileira poderia ampliar suas atividades e
incluir a figura do comissário parlamentar, semelhante ao germânico, para se
dedicar aos interesses dos fardados em relação à carreira, às condições de
trabalho e ao salário bem como atentar aos seus reclamos e expectativas, colher
opiniões, identificar concepções, monitorar suas ações e encaminhar suas
reivindicações.
Relações
Com os Civis: Desde a criação dos Estados nacionais que geraram as Forças
Armadas persiste a preocupação dos paisanos em relação aos fardados quanto à
possibilidade de eles usarem seu poder para esmorecer e até inviabilizar a
dinâmica do regime político. Para evitar a ocorrência de eventuais
intervenções, os estudiosos do assunto propuseram duas alternativas básicas.
Uma delas se centra na concessão pelos civis de autonomia profissional aos
militares, na subordinação deles aos líderes políticos civis, na não
intervenção dos mesmos na política e na não ingerência política nas Forças
Armadas por parte dos civis. A outra é assentada no conceito de civilinização
que é entendido como a presença ativa de civis nas instituições bélicas e o
emprego nelas de noções civis. Sustenta que o avanço da tecnologia é o
responsável pelo fenômeno da civilinização o qual aproxima cada vez mais os
paisanos dos fardados, e desfaz a distinção entre civis e militares e suas
organizações.
A
primeira alternativa, voltada para a persecução do apoliticismo, desde há muito
tempo, vem tentando guiar a grande maioria das Forças Armadas, particularmente
a nossa, entretanto ela tem se mostrado muito vulnerável devido não se coadunar
com a realidade objetiva. Nos Estados Unidos o US Cyber Command tem sido
utilizado na segurança eleitoral. Seus integrantes tem trabalhado para embotar
campanhas de influência e determinar o que conta como conteúdo político
aceitável e inaceitável. Ademais, em seu esforço para reprimir provocadores
estrangeiros, inadvertidamente restringem a liberdade de expressão,
especialmente quando agências de inteligência forasteiras supostamente vêm
atraindo americanos de forma sorrateira, para escrever posts em sites falsos.
Em
Israel já foi evidenciado que reina uma falsa percepção quanto ao traço
apolítico dos militares. De fato, os mesmos se vêm como um corpo profissional
que atua segundo uma concepção apartidária. Acreditam que fazem parte de um
exército cidadão que se apresenta como a nação em armas pois reflete os matizes
da sociedade civil haja vista que os fardados são oriundos de todas as camadas
sociais. Não visualizam as Forças Armadas pelo ângulo do profissionalismo
militarista e sim segundo a ideia de Mamlachtiyut, que diz respeito a um ethos
nacional estatista combinador da noção de pertencimento à mesma comunidade,
condutas comuns e engajamento para o bem de Israel.
Outrossim,
em algumas nações europeias a proposta da profissionalização se revelou
inconsistente. Veja-se o caso da França, que, na década de 60 do século
passado, estava envolvida em uma guerra contra a Argélia. Receosa de perder
mais uma colônia, chamou o general de Gaulle para administrar o conflito. Após
conceder autodeterminação aos argelinos, emergiu a República da Argélia. Muitos
franceses sentiram-se traídos e fundaram a denominada Organização do Exército
Secreto que junto com alguns generais tentaram dar um golpe, porém fracassaram.
Recentemente, emergiu um manifesto encabeçado por generais, contendo milhares
de assinaturas, advertindo que frente ao crescimento do caos no país as Forças
Armadas logo seriam convocadas para conter uma guerra civil. Após algumas
semanas, apareceu outro de caráter anônimo, mas seus autores declararam ser
militares da ativa. O conteúdo acusava o governo de se mostrar incapaz para
enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna.
Agregue-se também o caso da Grécia em 1967 quando emergiu o Plano Prometheus
elaborado pelos militares com base na justificativa de salvar a nação de um
suposto regime comunista que sustentou a alcunhada ditadura dos coronéis.
Essa
proposta do apoliticismo militar, que tem guiado a ação dos servidores de
uniforme do nosso país desde há muito tempo, defendida por governantes, parlamentares,
jornalistas, intelectuais e estudiosos de assuntos militares, não possui um
mínimo de sustentação empírica. Não detém também nenhum suporte teórico.
Note-se que a ideia do apoliticismo se ancora no pressuposto da neutralidade o
qual não encontra base nem na Ciência e nem na Filosofia. Nesta somente a área
da fenomenologia admite a epoché, que é a possibilidade da suspensão do juízo
apenas no início de uma investigação científica. Esse alvitre é resultante da
falsa concepção de estabilidade social, da criticável ideologia conservadora,
da fragilidade do raciocínio assentado nos princípios da lógica formal e da
insustentável cosmovisão funcionalista.
Tendo
em vista uma melhora radical nas relações civis-militares, é imprescindível
abandonar de vez essa infundada teoria do apoliticismo, que teima em segregar
inutilmente os militares no interior dos quartéis para se dedicarem
inteiramente aos afazeres da defesa do país. Vale dizer que é esse isolamento
que facilita a elaboração por parte deles de soluções muitas vezes nada
democráticas para os problemas nacionais. É crucial abandonar também o uso do
princípio da identidade, o qual induz a ideia de que militar é militar e civil
é civil, bem como o pensamento de que essa ideia tem que persistir, haja vista
que cabe a cada um deles tarefas pertinentes e específicas. Faz-se necessário
ainda civilinizar cada vez mais as Forças Armadas, pois a civilinização é o
destino inexorável das instituições castrenses nos países regidos pela
democracia. A visível aproximação cada vez maior dos fardados aos paisanos, bem
como de suas organizações, está contribuindo decisivamente para o
desaparecimento das diferenças entre uns e outros até o ponto em que
provavelmente ocorrerá o ato da fusão, cujo exemplo mais aproximado é a figura
do citizen in uniform existente nos países da Europa, o qual é
profissionalmente regido pela Carta Social Europeia voltada aos civis.
Exercício
do Comando: Muitas Forças Armadas do planeta e todas as pertencentes aos países
autocráticos adotam um estilo linear de condução da tropa, isto é, na forma de
uma estrutura piramidal em cujo vértice se encontra a autoridade máxima
preservadora da unidade de comando. Assim sendo, é centralizadora, poucos
mandam, haja vista que a quase totalidade das ordens são oriundas de uma só
chefia. Nos escalões mais baixos, os indivíduos não se comunicam livremente,
necessitam da intervenção dos respectivos chefes para a troca de informações.
Cada setor age com autonomia, sujeitando-se somente em relação à autoridade de
linha, ou seja, na vertical. Observe-se que não deve ter sido fácil para as
nações do leste europeu que quiseram adentrar à comunidade europeia, após a
queda do muro de Berlim, substituir o modo linear de comando em suas tropas.
Nos Estados Unidos, o Exército usa a Gestão de Qualidade Total, que exige o
emprego da técnica do brainstorming, requerente da busca de consenso entre
ideias e opiniões. Na Suíça, os fardados empregam uma ferramenta da Gestão de
Pessoas denominada liderança transformacional, cujo relacionamento é construído
por meio do contato entre os integrantes da equipe. É um estilo de ação em que
dirigentes e dirigidos se ajudam de forma mútua em busca de objetivos comuns.
Em
diversos países democráticos, a liderança dos agrupamentos militares se mostra
bem diferente da forma linear. Na Alemanha o comando se assenta no estilo
denominado Auftragstaktik, ou missão dada pela finalidade, o qual possibilita
que todos os integrantes da pirâmide hierárquica, desde o soldado raso até o
general comandante, exercitem seu espírito crítico, sua faculdade de
julgamento, sua conduta autônoma e sua capacidade de tomar a iniciativa. O
militar, qualquer que seja sua graduação, pode, até mesmo em circunstâncias
especiais, modificar ou deixar de cumprir as tarefas que lhes foram confiadas
por superiores hierárquicos, se ele considerar que isso está de acordo com a
intenção do comandante responsável pela ordem expedida.
Novamente
citando os Estados Unidos, verifica-se, desde alguns anos, que vem sendo posto
em prática um procedimento de liderança alcunhado de shared leadership, o qual
pode ser traduzido como liderança compartilhada. Em tal modo de direção grupal,
inexiste a figura de um indivíduo específico responsável pelo encaminhamento do
grupo. A ênfase recai na interação dos membros da equipe, para possibilitar o
exercício do comando coletivo, no qual a conduta de todos é resultante de
protagonismos alternados. Ele se mostra bem adequado em operações militares
carregadas de alto risco para todos os integrantes que participam dessas
operações. Outro estilo também utilizado e empregado pelas tropas da Otan, o
qual foi repassado de modo exitoso aos fardados da Ucrânia, se baseia no
conceito de decentralized warfare. Ele confere agilidade aos agrupamentos
combatentes porquanto possibilita aos líderes das pequenas e dispersas unidades
pensarem e agirem por conta própria observando a opinião dos subordinados
hierárquicos.
Em
nosso país o exercício do comando, de forma predominante, segue o modelo
linear, embora não seja incomum a prática da inquirição aos subalternos para
tomar decisões que pode não a levar em conta e a promoção do incentivo à tomada
de iniciativa por todos os integrantes da escala hierárquica. É um estilo de
liderança que acentua a tradicional conduta de imediata obediência às ordens
expedidas. Tal automatismo comportamental não se coaduna com a natureza atual
do combate exigente da avaliação pessoal relativa à busca das melhores
respostas a determinados tipos de perigos. Portanto, se mostra necessário rever
esta forma de gerenciamento de pessoas, no sentido da adoção cada vez mais
ampla e intensa de procedimentos participativos, os quais, sem dúvida, estão em
sintonia com a essência do regime político democrático.
Fonte:
Por Antônio Carlos Will Ludwig, na Conjur
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