Pandemia e redes
sociais agravaram violência escolar no país
O
ataque a faca em uma escola estadual de São Paulo, que deixou uma professora
morta e outras quatro pessoas feridas, na última segunda-feira (27/03), acendeu
um alerta. Ainda que casos isolados de violência escolar sejam registrados no
Brasil há mais de 20 anos, o fenômeno se intensificou nos últimos meses. Em
meio aos efeitos do estresse provocado pelo isolamento social prolongado na
pandemia, jovens encontram estímulos a ações violentas no ambiente digital.
"Infelizmente,
sabemos sabe que vai acontecer de novo. É uma questão de tempo", constata
a pesquisadora Telma Vinha, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Moral (Gepem) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O
primeiro ataque do tipo ocorrido no Brasil se passou em 2002, em Salvador.
Desde então, o país teve 22 casos registrados, já contabilizado o episódio mais
recente. Desse total, nove casos se concentram nos últimos oito meses –
percentual superior a 40%. "A escola tem um sentido negativo para esses
estudantes. Os dados que coletamos mostram que todos eles tiveram sofrimento na
escola, seja por bullying ou humilhação, que geram transtornos mentais. Nos
últimos anos, o problema foi muito fomentado por interações no ambiente
digital, onde grupos extremistas incentivam essas ações", comenta Vinha.
A
radicalização cada vez mais precoce dos jovens é um fenômeno que preocupa
especialistas. O fenômeno de incentivo a práticas violentas, descrito pela
pesquisadora, pode ser facilmente observado por uma rápida busca em redes
sociais. A tag "TCC " (True Crime Community) – comunidade de crimes
reais, na tradução livre – é a chave para identificar interações desse tipo,
seja em chats de games, como o Discord, mas também em plataformas como o
Twitter.
"Esses
grupos sabem como acolher as pessoas e trabalhar seus pontos fracos. Os jovens
se sentem inseridos em uma família, como parte de um movimento, mesmo que seja
imaginário. Quando um menino diz que não está bem e que está pensando até em se
matar, eles falam: se mata, mas não vai sozinho, você leva os outros com
vocês", detalha a pesquisadora.
• Efeito contágio
Nas
48 horas posteriores ao ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, no bairro
Vila Sônia, na capital paulista, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de
São Paulo (SSP-SP) registrou sete boletins de ocorrência com planos de
adolescentes que pretendiam realizar atentados semelhantes em ambiente escolar.
A
Secretaria suspeita que a ampla divulgação pelos veículos de comunicação e
redes sociais da ação na escola Montoro tenha causado um efeito
"contágio", e motivado outros alunos a repetir o ataque. A professora
da Unicamp relata que, em grupos extremistas monitorados por seu grupo de
pesquisa, a repercussão do caso foi celebrada, como uma demonstração de poder.
As
situações de violência contra professores no Brasil não se restringem a casos
extremados. O país lidera um ranking de violência nas escolas elaborado pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O
levantamento, divulgado em 2019, considera dados de 2013, quando 12,5% dos
professores brasileiros ouvidos relataram ser vítimas de agressões verbais ou
de intimidação de alunos ao menos uma vez por semana. A média entre os 34
países pesquisados é de 3,4%. O Brasil é seguido por Estônia (11%) e Austrália
(9,7%).
A
realidade exposta pelas estatísticas foi agravada no período pós-pandemia.
Segundo dados da Secretaria da Educação de São Paulo, nos dois primeiros meses
de aula de 2022, foram registrados 4.021 casos de agressões físicas nas
unidades estaduais — 48,5% a mais que no mesmo período de 2019, último ano em
que os alunos frequentaram as aulas presenciais todos os dias.
• Impactos da pandemia
Em
novembro de 2022, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso)
lançou o livro Trajetórias/práticas juvenis em tempos de pandemia da covid-19,
resultado de uma pesquisa com jovens de seis países latino-americanos. O estudo
teve por objetivo conhecer os impactos do isolamento social prolongado na
juventude.
"Muitos
jovens tentavam preencher o seu cotidiano com coisas diferentes, mas outros não
conseguiam fazer isso e tinham problemas de insônia e depressão. Quando
retornam para o ambiente escolar, trazem isso com eles. A escola, por sua vez,
voltou igualzinha, não mudou em nada o seu papel", avalia a socióloga
Miriam Abramovay, que coordena a Área de Estudos e Políticas da Flacso.
A
pesquisadora avalia que o conjunto de problemas ligados à convivência escolar
reflete um foco desproporcional nos indicadores de desempenho. Abramovay
salienta que a garantia de um ambiente escolar saudável é fundamental para o
processo de aprendizagem. Para isso, defende que as escolas dediquem maior
atenção à saúde mental dos estudantes, mesmo que não contem com profissionais
específicos para isso.
"Você
não precisa ser psicólogo para ver que um jovem anda de malha todo dia e que,
provavelmente, ele se corta, se automutila. Você não precisa ser psicólogo para
notar que alguém está tão triste, que chega a fazer a tentativa de suicídio.
Você não precisa ser psicólogo para notar que eles brigam, que eles se xingam,
que eles se batem, que eles furtam", afirma.
• Militarização das escolas não é a
solução
Ambas
as pesquisadoras ouvidas pela DW Brasil, Vinha e Abramovay, rechaçam a via de
militarização das escolas como forma de solucionar o problema. Elas recordam
que o primeiro ataque contra professores registrado no Brasil, em 2002, ocorreu
justamente em uma escola militar, na Bahia.
"Precisamos
ampliar os sistemas de proteção, mas sobretudo criar políticas de convivência –
muito mais barato e eficiente do que investir em segurança. Ampliar o
fortalecimento de serviços de apoio à saúde mental também é importante",
afirma Telma Vinha.
A
pesquisadora da Unicamp defende medidas de responsabilização e punição das
plataformas que abrigam conteúdos de incentivo à violência. O monitoramento
efetivo desse tipo de interação permitiria identificar previamente a inclinação
de adolescentes à prática de atos violentos.
"É
muito ingênuo achar que família vai dar conta, porque as famílias de escolas
públicas estão lutando para sobreviver. Quando os jovens saem da escola, não
vão para a natação ou o inglês. Eles ficam em casa sozinhos. Esses pais não
sabem o que é Discord ou Twitter. Quando denunciados, esses conteúdos ficam no
ar por mais de um mês. Tem que haver uma política de Estado ", conclui.
O clima de intimidação e censura na educação
brasileira
O
psicólogo escolar José (nome fictício) foi chamado para uma reunião com a
direção da instituição de ensino na qual trabalhava e representantes da
Secretaria Municipal de Educação. Foi sumariamente demitido, sob alegação de má
conduta profissional e inadequação de conteúdos às respectivas faixas etárias
de alunos.
Dias
antes, José, que é homossexual assumido, havia tido uma conversa com as
crianças sobre bullying. Contou aos alunos do 4º e do 5º anos do ensino
fundamental que, quando começou a trabalhar na escola, ouviu uma das crianças
dirigir-se a um colega chamando-o de "veadinho de merda". Disse-lhes,
no meio da conversa, que aquilo lhe machucou profundamente, não apenas pela
grave agressão à criança, mas também pelo fato de ele ser homossexual.
A
aula sobre problemas comportamentais cotidianos selou ali seu destino: a
demissão da escola da rede pública de um pequeno município no interior de Minas
Gerais, com pouco mais de 3.500 habitantes, ocorreria dias depois.
O
caso de José reflete uma rotina de medo, censura e intimidação que professores
e profissionais da educação têm vivenciado no Brasil, numa escala ascendente
nos últimos anos. A pedido do profissional, seu nome e o município não serão
revelados, pois ele aguarda a rescisão contratual com a escola e teme
represálias. José, no entanto, está decidido a buscar uma reparação na Justiça.
"Não
fui notificado sobre nada. Estava em casa e me chamaram para uma reunião no
Departamento de Educação. Não especificaram nada. Disseram que tentariam
arrumar outro emprego para mim, que gostavam muito do meu trabalho, que eu era
participativo. Fizeram só elogios, o que foi totalmente contraditório. Pareceu
que estavam cortando o mal pela raiz, só porque eu era gay", disse o
psicólogo à DW Brasil. Após o episódio, ele optou por deixar a cidade, devido
às "fofocas". Atualmente está empregado numa cidade do interior de
São Paulo.
O
profissional contou, ainda, que a mãe de um dos estudantes levou fotos do
perfil dele no Instagram à prefeitura. Em uma delas, ele aparecia sem camisa.
Havia, ainda, outra foto dele com as crianças (os menores de costas, sem serem
identificadas).
"A
cidade começou a dizer que eu fui demitido porque falava de sexo com alunos,
que eu os obrigava a fazerem coisas. Foram vários relatos aleatórios, sendo que
nem contatos diretos com os estudantes eu tinha, apenas nos momentos de
intervenções. Eu nunca tinha sofrido homofobia em dimensão tão grande. Foi uma
ferroada que marcou minha vida."
Casos
como esse motivaram 80 instituições de educação a reeditar neste ano o Manual
de Defesa contra a Censura nas Escolas, "em resposta ao perverso fenômeno
ultraconservador na educação, em especial aos ataques aos princípios
constitucionais da liberdade de ensino e do pluralismo de concepções pedagógicas
e às normas educacionais".
A
primeira edição do manual foi publicada em 2018, com orientações aos
profissionais, e explicações sobre as legislações vigentes e o direito
constitucional das crianças a uma educação plural e não discriminatória. A
versão atualizada contém detalhes das recentes decisões do Supremo Tribunal
Federal, de 2020, que reforçam a inconstitucionalidade de teses defendidas pelo
movimento Escola Sem Partido e de legislações que interditam os conteúdos de
educação sexual e sexualidade nas escolas.
O
objetivo da publicação é fornecer aos profissionais respostas pedagógicas,
políticas e jurídicas possíveis em situações de conflito, propondo mediações e
tentativas diálogo com a comunidade escolar e as famílias. As respostas
judiciais, recomenda o manual, devem ser buscadas em casos de agressões
abusivas e injustas.
• A cortina de fumaça da chamada
"ideologia de gênero"
Outra
iniciativa, da Human Rights Wacth (HRW), reflete também a gravidade do momento.
A organização fez um levantamento intitulado "Tenho medo, esse era o
objetivo deles": esforços para proibir a educação sobre gênero e
sexualidade no Brasil.
O
relatório traz a análise de 217 projetos de lei aprovados no Brasil entre 2014
e 2020 cujo objetivo central é proibir a educação sexual nas escolas, com veto
a materiais didáticos e abordagem dos temas em diferentes disciplinas. A
justificativa sempre é a de que há "doutrinação" ou a chamada
"ideologia de gênero". Como o relatório da HRW enfatiza, tal termo
carece de definição precisa, mas "seus defensores convenientemente o
empregam para atacar diversos temas, como educação sexual abrangente, casamento
entre pessoas do mesmo sexo, feminismo, direitos reprodutivos e direitos das
pessoas trans”.
De
acordo com a pesquisa da HRW, 47 desses projetos de lei foram aprovados, e pelo
menos 20 estão em vigor em diferentes municípios do país e um no Ceará como um
todo. Outros 41 projetos estão em tramitação em legislativos locais, sendo 15
deles na Câmara dos Deputados. Os números estão subestimados, de acordo com a
própria organização, pela dificuldade de acesso à base de dados de municípios.
O
Supremo Tribunal Federal (STF) já
derrubou oito leis do tipo, julgadas pela corte em 2020. Já os tribunais
inferiores barraram 17 iniciativas. Há ainda, na pauta do Supremo, mais quatro
casos que tratam da "ideologia de gênero" aguardando julgamento.
"A
Suprema Corte já emitiu excelentes sentenças em defesa do direito das crianças
e adolescentes à educação sobre gênero e sexualidade, e contra a censura de professores
que tentam abordar essa temática, mas há mais casos pendentes que devem ser
resolvidos. As decisões sólidas e bem fundamentadas do STF têm auxiliado na
consolidação do direito das crianças e adolescentes a esse conteúdo
didático", afirma Cristian González Cabrera, pesquisador da divisão de
Direitos LGBT da Human Rights Watch e coordenador do relatório.
No
entanto, Cabrera sustenta que "o Conselho Nacional de Educação deveria
elaborar uma resolução estabelecendo que a educação em sexualidade no Brasil
precisa estar de acordo com os padrões internacionais sobre educação integral
em sexualidade e as decisões do STF".
Para
o pesquisador da HRW, os professores não devem hesitar em denunciar os casos de
ameaças, censura e intimidação e devem procurar sindicatos. "Há também
organizações no Brasil, como a Ação Educativa, que ajudam a orientar os
professores sobre o que fazer quando são assediados pelos temas que abordam em
sala de aula."
Cabrera
pontua que a educação integral em sexualidade é um direito de todas as crianças
e adolescentes e que o veto a tais temas é inconstitucional. Além dos aspectos
legais, o pesquisador salienta as evidências de que a educação em sexualidade e
gênero previne violências sexuais contra crianças, gravidez precoce e indesejada,
por exemplo.
"Estudos
indicam que esse tipo de educação também pode contribuir para resultados mais
amplos, como prevenir e reduzir a violência e a discriminação de gênero, bem
como melhor conhecimento de igualdade de gênero, autoeficácia ao lidar com situações
de risco e confiança dos estudantes. Proibir informações sobre gênero e
sexualidade nas escolas atrasará a melhoria da sociedade nesses
problemas."
• "Intimidação também envolve
política, não apenas gênero"
Os
relatos de intimidação velada contra professores, assédio moral e ameaças,
inclusive físicas, cresceram sobretudo nos últimos dois anos, afirma Celso
Napolitano, presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo
(Fepesp). Napolitano afirma que a pandemia, com aulas remotas, agravou a
situação, pois os profissionais ficaram muito vulneráveis e expostos.
"Muitos
professores relataram intromissão nas aulas pelas famílias, por grupos de
ensino, institutos, inclusive afetando a própria liberdade de cátedra. Esse
grupo Escolas Abertas (que pressionou pelo retorno do ensino presencial no auge
da pandemia) e o Escola sem Partido agiram de maneira muito intensa neste
período da pandemia", relata Napolitano. A Fepesp é uma das instituições
parceiras do manual contra a censura nas escolas.
Segundo
o presidente da federação, que reúne 25 sindicatos representantes de
professores que atuam em escolas privadas, os professores têm procurado ajuda,
mas normalmente pedem que seus nomes e casos sigam anônimos, para evitar
exposição na mídia. Nas escolas particulares, sustenta ele, é a política, e não
temas de gênero, que mais provocam ruídos.
"Sobretudo
agora, com essa polarização [em ano eleitoral], várias direções de escolas
conversam com professores para evitarem alguns assuntos. Ou as famílias se manifestam
diretamente contra qualquer ação do professor que consideram doutrinária ou
politizada."
Nesse
quesito, as disciplinas de história, filosofia, sociologia, por exemplo, seriam
as mais prejudicadas. Um tema bastante interditado é o debate sobre a ditadura
no Brasil, exemplifica. Na opinião do profissional, as consequências desta
autocensura dos profissionais e deste clima de medo é extremamente prejudicial
para a formação de crianças e adolescentes.
• "Problema é estrutural e não se
trata de movimento recente"
O
cerco a professores, com demissões imotivadas e sumárias, intimidações, e
interferência na liberdade de cátedra não são fenômenos recentes no Brasil,
ainda que tenham ganhado visibilidade nos últimos anos, alerta Raquel Franzim,
pedagoga e diretora de educação do Instituto Alana. A instituição também apoiou
a publicação do manual contra a censura.
"Não
é algo que nasceu com o Escola sem Partido. Por nossos estudos, há uma enorme
subnotificação desses casos no Brasil. O que chega aos tribunais e à imprensa é
muito menos do que de fato acontece", afirma a diretora. Ela alerta que a
situação é mais delicada na educação básica, uma vez que no ensino superior há
regulamentações mais claras que asseguram a liberdade de cátedra, o
contraditório e o conhecimento científico.
"A
escola trata, ou deveria tratar, as questões sociais de maneira distanciada do
senso comum. O ensino não é só protetivo, ele é preventivo, para que não sejam
formadas gerações que reproduzem violência de gênero, sexual e racial."
A
diretora do Instituto Alana diz que o manual contra a censura foi uma
iniciativa importante, pois as mudanças precisam acontecer nas comunidades
escolares, com diálogo. "Essa questão não vai ser resolvida numa canetada.
A autonomia pedagógica das escolas não pode ser absoluta e não ocorre sem
diálogo com as comunidades escolares. A escola é o ambiente para se tratar, de
maneira bastante respeitosa, as divergências", defende.
Segundo
ela, as transformações são graduais e hoje, por exemplo, já houve bastante
avanço em relação ao combate ao racismo nas escolas brasileiras. Apesar de
reconhecer que a ambiência política e institucional no Brasil é bastante
desfavorável para esse debate, a pedagoga insiste que é preciso admitir que se
trata de um problema estrutural da educação brasileira, que expõe as crianças e
jovens a ainda mais violências.
"Quem
perde nessa equação sempre são crianças e adolescentes. Precisamos sair, neste
momento, de debater o assunto como se fosse vinculado à agenda de costumes e à
agenda moral. Não é. É um assunto estruturante. As crianças estão aprendendo
pior sobre vários assuntos, sem tratamento adequado, científico e profissional
dentro das escolas. Tal cerceamento prejudica a aprendizagem", conclui.
Fonte:
Deutsche Welle
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