Sobrevivendo ao
Holocausto: memórias angustiantes que não podem ser esquecidas
É uma manhã fria de
agosto da cidade de São Paulo, mas o clima no
terceiro andar do prédio do Memorial da Imigração Judaica, no bairro do
Bom Retiro, é de inquietação. Ali, como ocorre praticamente todos os dias da
semana, estudantes de escolas públicas paulistanas participam de visitas
guiadas às instalações do Memorial do Holocausto e surpreendem-se com
os relatos de como o regime nazista alemão
exterminou sistematicamente seis milhões de judeus na Europa durante
a Segunda Guerra Mundial, entre 1930 e 1945.
Localizado no
prédio da antiga sinagoga do Bom Retiro, a primeira de São Paulo, de 1912, o
Memorial do Holocausto foi inaugurado em 2017 e é uma das várias iniciativas
promovidas por brasileiros que visam manter vivas as memórias de um dos
períodos mais brutais e dolorosos da história da humanidade. Além do memorial,
existem no Brasil livros, documentários e um banco de dados que compila relatos
dos sobreviventes do Holocausto.
Com um acervo
interativo e audiovisual, repleto de fotografias, vídeos e instalações, o
memorial traz de forma didática a história do
Holocausto e
do antissemitismo, e as escolas podem agendar visitas gratuitamente. O museu
fica no terceiro andar do Memorial da Imigração Judaica, entidade que traz
ao público um amplo acervo documental que ajuda a traçar a identidade dos
judeus estabelecidos no Brasil.
Curador do Memorial
do Holocausto, o pesquisador e fotógrafo Luiz Rampazzo acredita em um
desconhecimento geral por parte da sociedade brasileira do que foi o
genocídio dos judeus na Europa nazista. “Precisamos disseminar didaticamente os
horrores do Holocausto. Não temos o objetivo de aterrorizar os visitantes, mas,
sim, de tocá-los”, diz ele. “Ainda existem pessoas que negam o Holocausto,
e o Memorial traz dados históricos e estudos de centenas de pesquisadores para
mostrar o contrário.”
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Retratos, palavras e memórias
Além de ser curador
do memorial, Luiz Rampazzo retratou 17 judeus que residem no Brasil no
livro Sobreviventes (Maayanot, 2018), cujos depoimentos foram
colhidos pelo palestrante Marcio Pitliuk. Atualmente, Rampazzo e Pitliuk
trabalham na produção de um documentário sobre a história de vida desses
sobreviventes. A dupla estima que existam cerca de 100 sobreviventes do
Holocausto vivos
no Brasil, mas não é possível precisar o número exato.
“Sobrevivente é
todo mundo que escapou do Holocausto, não precisa ter necessariamente ido para
campos de concentração”, explica Marcio Pitliuk, judeu e importante estudioso
do Holocausto. Pitliuk também produziu, em parceria com o cineasta Caio Cobra,
um dos documentários mais impressionantes e sensíveis sobre o
tema: Sobrevivi ao Holocausto, de 2014.
No longa-metragem,
os dois diretores narram a trajetória do judeu polonês Julio Gartner,
sobrevivente de cinco campos de concentração, dentre eles Auschwitz,
Mauthausen e Ebensee. Julio tinha 15 anos de idade quando a Alemanha
nazista invadiu a Polônia, em 1º de setembro de 1939, dando início à Segunda
Guerra Mundial. Em Sobrevivi ao Holocausto, os diretores levam-no de volta
a alguns dos lugares onde viveu momentos de terror. “Apesar de ter sofrido
tanto, ele não se mostrava amargurado, era uma das pessoas mais positivas que
eu conheci”, conta Caio Cobra. Julian Gartner mudou-se para o Brasil depois da
guerra, em 1947, e morreu em 2018, aos 94 anos.
“Essas pessoas são
testemunhas do que aconteceu, mas estão morrendo”, comenta Marcio Pitliuk,
dizendo que tornou-se sua missão disseminar o Holocausto. “Podem até negar que
isso ocorreu, mas esses sobreviventes estão aqui, são uma evidência do terror,
e essa memória tem de ser preservada.”
O cineasta Caio
Cobra prefere olhar para os sobreviventes não como judeus que resistiram ao
Holocausto, mas como pessoas que sobreviveram. “A partir do momento que o outro
não faz mais parte de você, e você quer segregar, o medo toma conta. O medo e a
ignorância levam à raiva, e para a raiva se transformar em intolerância é
muito fácil”, opina Cobra. “Quando se diz que a outra pessoa é responsável
pelos seus problemas, isso pode virar uma onda de ódio muito rapidamente.”
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Testemunhos registrados
São Paulo abriga a
única base de dados dedicada a registrar os testemunhos de sobreviventes do
Holocausto e refugiados do nazismo radicados no Brasil. O Arquivo Virtual
sobre o Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah) foi criado em
2006 pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e conta com milhares de
documentos que narram a histórias dos judeus que resistiram a guetos, campos de
extermínio e concentração, e se refugiaram no Brasil depois de 1933.
E temos
uma dívida histórica com os judeus: segundo Tucci Carneiro, pelo
menos 16 mil vistos foram negados pelo governo brasileiro aos judeus durante as
administrações dos presidentes Getúlio Vargas (1930-1945) e Eurico
Gaspar Dutra (1946-1951). As chamadas circulares secretas antissemitas
foram enviadas para as embaixadas brasileiras visando dificultar ou mesmo
impedir a vinda de refugiados de origem judaica. Os documentos continuaram a
ser emitidos mesmo após os governantes terem tomado conhecimento do Holocausto,
e continuou no pós-guerra, até 1950.
O Arqshoah
registrou, até 2018, mais de 350 testemunhos em áudio e vídeo, publicados em
quatro volumes da coleção Vozes do Holocausto (Editora
Maayanot), e cerca de 3 mil fotografias selecionadas dos arquivos pessoais do
sobreviventes. “É de extrema importância preservarmos e divulgarmos os
vestígios desse genocídio que criou levas de desenraizados que, ainda
hoje, não conseguem lidar com sua história”, diz a historiadora.
Maria Luiza Tucci
Carneiro defende que o registro dos testemunhos dos sobreviventes do
Holocausto e dos refugiados do nazismo deve ser assumido como uma missão
de memória por todas as nações ditas civilizadas. “A reconstituição das
histórias de vida daqueles que vivenciaram os atos genocidas praticados
pela Alemanha nazista e colaboradores servem de alerta para os perigos
representados, neste século 21, pelos grupos de extrema-direita que,
apesar do Holocausto, endossam versões revisionistas e negacionistas da
história”, observa ela, por e-mail. “A ausência desses indícios pode gerar
fissuras que favorecem os silêncios, a negação e a reabilitação de políticas
antissemitas.”
Para Luiz
Rampazzo, o ódio, a intolerância e o racismo, algumas das bases do
antissemitismo, ainda existem na sociedade, talvez de forma mais velada.
“Temos observado a expansão do ódio contra minorias em diversos países”,
analisa ele. “O discurso de ‘respeitar o próximo’ não modificou o que as
pessoas realmente sentem. Nosso trabalho não é apenas uma homenagem aos
sobreviventes, mas um instrumento para modificar a mentalidade dos jovens
e evitar que horrores como o Holocausto ocorram de novo.”
¨ Quantos sobreiventes do Holocausto ainda estão vivos e
onde residem
O Holocausto é um fato
histórico fartamente registrado e definido pela Enciclopédia do Museu
Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (USHMM) como “a perseguição e o
assassinato sistemáticos de aproximadamente seis milhões de judeus
europeus” por ordem do regime nazista alemão e por todos aqueles
que colaboraram com ele a partir de 1933 e durante
a Segunda Guerra Mundial.
Para
que os horrores vividos neste período nefasto da história, que começa com
a ascensão do ditador Adolf Hitler ao poder, na
Alemanha, jamais sejam esquecidos ou normalizados, o Dia
Internacional de Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto é
celebrado anualmente em 27 de janeiro.
Criada através de
uma resolução da da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em 2005, a
efeméride busca "mobilizar a sociedade civil para a educação e
a lembrança do
Holocausto",
a fim de evitar futuros genocídios.
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Quantas pessoas morreram no Holocausto?
Dentre as mais
de 6 milhões de pessoas mortas violentamente em campos de
concentração, fuzilamentos, câmaras de gás, através de torturas
e espancamentos, ou por falta de comida, ação do frio e de
doenças – entre outras causas conhecidas – havia também uma uma
parcela de não-judeus que foram “deslocados, perseguidos
ou discriminadas devido às políticas raciais, religiosas,
étnicas, sociais e políticas dos nazistas e seus colaboradores entre
1933 e 1945", explica o Museu Memorial do Holocausto.
Apesar
dos judeus serem o alvo prioritário do antissemitismo nazista, o total de
perseguidos incluia ainda homens homossexuais ou
bissexuais; civis acusados pelo governo nazista de
“resistência” ao regime ou de “atividade partidária" distinta da
que estava no poder; estrangeiros que viviam na Alemanha e passaram a
ser considerados "criminosos profissionais"; pessoas negras:
portadores de deficiência; prisioneiros de guerra de
origem soviéticos; romanis (chamados de “ciganos”); além
de Testemunhas de Jeová, detalha a Enciclopédia do Holocausto.
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Existem sobreviventes do Holocausto até hoje? Onde eles vivem?
Uma recente e
vasta pesquisa publicada em 23 de janeiro de 2024 e realizada
pela Conferência sobre Reivindicações Materiais Judaicas contra a Alemanha
(ou Claims Conference, entidade judia sem fins lucrativos) indica que –
até esta data – existiam 245 mil sobreviventes do
Holocausto ainda
vivos.
A investigação
é considerada a mais atualizada e completa sobre o assunto, segundo a rede
de comunicação pública alemã Deutsche Welle em um artigo publicado online. Os
dados também mostram que estas pessoas estão espalhadas por 90 países,
sendo que quase metade (49%) vive em Israel. Outros 18%
estão na Europa Ocidental (como na França, por exemplo, com 21.900
pessoas), 16% nos Estados Unidos e 12% em países da antiga União
Soviética.
”Na América
do Sul e no Caribe vivem cerca de 700 sobreviventes, sendo 300
deles no Brasil e 200 na Argentina”, destaca a reportagem da
DW.
Como era de se
esperar, a maioria daqueles que escaparam vivos do regime nazista já
é bastante idosa e tem, em média, 86 anos de idade. Cerca
de 20% dos sobreviventes já passaram dos 90 anos e o número de
mulheres vivas (61%) é maior do que o de homens (39%).
O estudo também
indicou que 96% destes sobreviventes eram crianças quando os horrores
ordenados por Hitler estavam sendo impostos. "Quase toda a atual
população de sobreviventes era criança na altura da perseguição
nazista, tendo resistido a campos, guetos, fugas e vidas na clandestinidade",
diz o estudo.
Antes disso, as
estimativas de pessoas que escaparam do Holocausto ainda
restantes no mundo variavam muito e dependiam de
uma definição mais precisa do que seria um sobrevivente.
Neste sentido, o
Memorial do Holocausto delimita como sobreviventes “todas as pessoas,
judias ou não judias, que foram deslocadas, perseguidas ou
discriminadas devido às políticas raciais, religiosas, étnicas e
políticas dos nazistas e seus aliados entre 1933 e 1945”. Também
inclui ex-internos de campos de concentração, guetos e prisões, e
aqueles que se refugiaram ou estiveram escondidos durante
esse período.
¨ 'Fugimos só com a roupa do corpo', lembra sobrevivente
do nazismo radicada no Brasil
Era 9 de novembro
de 1938 e Margot tinha apenas seis anos. Naquele dia, nazistas lançaram um
violento ataque coordenado contra lojas, edifícios e sinagogas judaicas — a
chamada 'Noite dos Cristais', como ficou conhecido o episódio devido aos
pedaços de vidro partidos espalhados pelas ruas.
"Fomos dormir
e, de repente, escutamos estrondos horríveis, mas não sabíamos o que estava
acontecendo. No dia seguinte, nos demos conta da tragédia. Eles (os nazistas)
queriam acabar com os judeus definitivamente", conta ela à BBC News Brasil
por telefone.
Margot, que vive no
Brasil desde a adolescência, fala pausadamente e não tem sotaque. Com uma
memória impecável, ela é testemunha ocular dos horrores que culminariam no
Holocausto — como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus,
bem como homossexuais, ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante
a 2ª Guerra Mundial, a partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado
pelo partido nazista de Adolf Hitler.
Ela e seus pais,
todos judeus, conseguiram fugir da Alemanha rumo à América do Sul pouco antes
da eclosão do conflito.
Mas nem todos
tiveram a mesma sorte. Grande parte de seus parentes próximos, incluindo os
oito irmãos de seu pai, foi enviada a campos de concentração e assassinada.
<><> Infância
Apesar de ter
deixado a Alemanha ainda muito pequena, Margot consegue se lembrar de muitos
episódios marcantes.
Nascida em uma
família de classe média, seu pai, polonês, era comerciante e sua mãe, alemã,
dona de casa.
Ela vivia uma
infância feliz, conta, mas tudo mudou quando os nazistas chegaram ao poder. A
perseguição contra judeus e outras minorias ganhou força e seus direitos
passaram a ser gradativamente suprimidos.
"Lembro-me de
uma vez que meu pai me levou ao kindergarten (jardim de infância) e havia uma
placa que dizia "Juden Verboten" ("Proibidos a
Judeus")", conta.
Depois da Noite dos
Cristais, os nazistas também começaram a perseguir e deter homens judeus.
"Uma amiga
mais velha da minha mãe, cujo marido havia sido levado pelos nazistas, lhe
avisou que meu pai tinha que fugir", diz.
"Eles bateram
então na porta da minha casa. Minha mãe mentiu, dizendo que não sabia do
paradeiro do meu pai. No dia seguinte, eles (nazistas) voltaram. Revistaram
tudo e deixaram uma bagunça tremenda. Meu pai acabou se escondendo na casa da
minha tia", acrescenta.
Cabia à pequena
Margot, portanto, ser o elo de comunicação entre seus pais.
"Se meu pai
fosse pego, ele seria preso. Eu andava por aquelas ruas tenebrosas com todos os
vidros quebrados, fumaça… terrível. Minha mãe sempre me dizia para eu não falar
com ninguém. Realmente, não falava", diz.
Com a vida na
Alemanha se tornando insustentável para os Rotstein, o pai de Margot decidiu que
era hora de deixar o país. E conseguiu vistos para o Paraguai, Bolívia e
Brasil.
"Naquela
época, ninguém conhecia a América do Sul", lembra.
<><> Fuga
Mas a jornada rumo
à terra desconhecida seria repleta de desafios.
"Fomos à
estação para pegar o trem à França e os nazistas nos tiraram todos os nossos
pertences. Até uma bonequinha minha. Fugimos só com a roupa do corpo",
conta.
"Na fronteira,
agentes pararam o trem e obrigaram todos os homens a desembarcar. As mulheres
com as crianças permaneceram. O trem já estava a ponto de partir e não havia
sinal do meu pai. Foi quando os soldados franceses jogaram alguns de volta
dentro do trem, incluindo meu pai. Ele se salvou. Mas muitas mulheres foram
deixadas sozinhas com seus filhos", acrescenta.
Em Marselha, na
França, a família embarcou em um navio "de terceira categoria", conta
Margot, mas não sabia aonde iria.
"Foi uma
viagem longa, de mais ou menos três meses. Homens e mulheres dormiam separados,
em beliches", diz.
"Meu pai tinha
um visto para o Brasil, para o Paraguai e para a Bolívia. Mas tanto o Brasil,
de Getúlio Vargas, quanto o Paraguai impediram a entrada de judeus. O único
país a nos deixar entrar foi a Bolívia e sou grata a eles até hoje",
acrescenta.
Na Bolívia, os
Rotstein ficaram até 1947. Foi quando decidiram mudar-se novamente, dessa vez
para o Brasil.
"Mas era outra
época e não tivemos problemas para emigrar".
No Brasil, Margot
casou-se com Ignacio, já falecido, com quem teve três filhos. Hoje avó de
quatro netos, ela dedica-se a preservar a memória do Holocausto.
"Sou muito
empenhada nisso. É algo que não podemos esquecer. Quero que essa memória não
desapareça. Hoje há muita desinformação, gente que diz que o Holocausto não
existiu".
Em 1994, Margot
viajou a Berlim com outros sobreviventes para ser homenageada e deve receber
uma comenda do governo alemão nos próximos meses — a cerimônia foi postergada
por causa da pandemia de covid-19.
Fonte: National
Geographic Brasil/BBC News Brasil
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