quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Marcelo Zero: A guerra de Trump contra o mundo começou

Aqueles que achavam que Trump era apenas um “bravateiro, “caíram do cavalo”. Ou melhor, caíram dos asnos que os carregavam.

Procuraram racionalidade, bom senso e civilidade em quem se alimenta de ódio, brutalidade, preconceitos e mentiras delirantes.

Não leram o Projeto 2025 da Heritage Foundation e não entenderam que este segundo mandato de Trump se desenvolverá em circunstâncias políticas bem diferentes do primeiro. 

Além de ter maioria no Legislativo, no Judiciário e entre governadores, Trump está aparelhando a própria máquina estatal para assegurar um projeto da extrema-direita estadunidense e mundial. 

Tem também o apoio das Big Techs, que dominam a produção e disseminação de informações, em nível mundial. Em seu último mandato, tem pressa e não tem a nada perder.  Quem tem tudo a perder é a democracia, ou o que restou dela. 

Trump tem de ser levado a sério como a ameaça que verdadeiramente é.

Pois bem, a partir de terça começam a vigorar as tarifas que Trump Impôs aos três principais parceiros comerciais dos EUA: México, Canadá e China. Os três são responsáveis por quase 42 % do que aquele país importa.

Combinados, eles exportam mais de US$ 1 trilhão por ano ao mercado estadunidense. Apenas em produtos manufaturados provenientes desses países, US$ 2 bilhões passam pela fronteira dos EUA todos os dias.  

Para se ter uma ideia da importância desse fluxo, quase 100% dos aparelhos celulares vendidos no EUA são importados e 65% deles provêm da China e do México. Há apenas uma empresa que fabrica celulares realmente “made in Usa”, a Purism, que tem um faturamento ridículo de cerca de US$ 9 milhões por ano. O mesmo se aplica a produtos eletrônicos em geral e a várias outras áreas muito relevantes para os consumidores e empresas estadunidenses.

Assim, o impacto desse “tarifaço” será imenso. Deve-se salientar, que no caso do Canadá e do México, a maioria das tarifas está praticamente “zerada”, por força da área de livre comércio criada, em 1992, pelo antigo Nafta, substituído pelo USMCA, que fora renegociado por Trump, com regras mais estritas de origem e trabalhistas para proteger a economia estadunidense.

Um tarifaço de 25% é, portanto, colossal. Mesmo a adição de 10% às importações da China é muito significativa, dada à integração ainda existente entre as duas maiores economias do mundo. 

É óbvio que os outros países, Canadá, México e China, reagirão e também imporão tarifas ou outras medidas protecionistas, iniciando uma guerra comercial de graves proporções. O Canadá já anunciou suas medidas retaliatórias, que também são duras.

Em alguns casos, como na indústria automobilística, as tarifas deverão ser cumulativas.

Algumas peças de automóveis cruzam a fronteira oito vezes antes de serem colocadas no veículo final. Por exemplo, uma peça de aço básico pode ser enviada do México para os EUA, onde é moldada em uma peça de carburador, e então essa peça é enviada para o Canadá, onde o carburador é finalizado, antes de ser enviado para o México para ser instalado durante a montagem final, após a qual o carro é finalmente vendido nos EUA.

 Observe-se que, no caso do México, muitas das importações estadunidenses são de produtos norte-americanos apenas montados ou “maquilados” naquele país.

E isso será apenas o começo. Trump já divulgou que depois assestará suas baterias protecionistas contra a União Europeia, “que comete atrocidades contra os EUA”, e outros países.

Poderá acontecer, dessa maneira, algo semelhante ao acontecido na grande recessão dos anos 1930.

Naquela época, as respostas iniciais à crise nos Estados Unidos foram também marcadas pela tentativa de superar as dificuldades internas apelando para o nacionalismo protecionista, saída aparentemente fácil e de forte apelo popular.  

A lei Smoot-Hawley, adotada em 1930, que quadruplicou, para alguns produtos, as já elevadas tarifas norte-americanas, teve, sem dúvida, um papel decisivo no agravamento do quadro recessivo. As retaliações em cadeia a que deu origem levaram a uma contração de quase 70% nos fluxos de comércio mundial, durante seu período de vigência (1930/33), com as consequências conhecidas sobre a evolução das economias norte-americana e mundial.

É claro que tarifas altas e políticas protecionistas tiveram um papel muito relevante para o desenvolvimento de indústrias nascentes, inclusive nos EUA.  Mas esses processos de construção de indústrias demoraram décadas e se deram, de forma concomitante, com massivos investimentos em infraestrutura, educação e ciência e tecnologia.

Achar que uma súbita e brutal guerra tarifária e protecionista vai reindustrializar os EUA da noite para o dia é um simples delírio.

O efeito econômico mais imediato, certo e severo será, na realidade, o aumento da inflação e da carestia de muitos produtos, o qual deverá ser seguido por  um incremento proporcional na taxas de juros dos EUA. 

Nesse quadro, toda a economia mundial, enfraquecida pela pandemia e por diversos conflitos, será invariavelmente afetada. Por conseguinte, mesmo os países que não forem objeto direto da fúria protecionista de Trump serão também negativamente afetados. 

O pior são as justificações ridículas da fúria tarifária do America First, como a imigração irregular e o tráfico de drogas. No caso do Canadá, menos de 1% dos migrantes irregulares e das drogas ilícitas que entram nos EUA provém daquele país.

Quanto à chamada epidemia dos opioides nos EUA, que inclui mais recentemente o fentanil, ela foi criada pelas próprias indústrias farmacêuticas estadunidenses, que passaram a pressionar pela venda de medicamentos perigosos e viciantes como a oxicodona, por exemplo.

Entre 2017 e 2021, 86% dos traficantes de fentanil eram estadunidenses. 

Trump mente continuamente para justificar sua truculência econômica e política.

Em relação à União Europeia, ele argumenta que os EUA têm um déficit comercial gigantesco com aquele bloco (mais de US$ 300 bilhões) e que os europeus não compram nada dos EUA. 

Mas, segundo dados do serviço estatístico europeu, Eurostat, as exportações de bens da UE para os EUA atingiram, em 2023, 502,3 bilhões de euros e as importações 346,5 bilhões de euros, com um excedente de 155,8 bilhões para o bloco europeu.

E, no que diz respeito às trocas comerciais de serviços, a UE importou 396,4 bilhões  de euros e exportou para os EUA 292,4 bilhões de euros, em 2023, o que representa um excedente de 104 bilhões de euros para os Estados Unidos. Desse modo, a balança comercial geral é relativamente equilibrada.

Trump tem ideia fixa de que os EUA “financiam” o mundo. 

Ora, é justamente o oposto. É o mundo que financia os EUA. Graças à hegemonia do dólar, países, empresas e indivíduos do planeta inteiro investem nos títulos do tesouro norte-americano para amealhar reservas de valor internacionais. São trilhões de dólares que o mundo todo investe na economia e no governo dos EUA. Por isso, os déficits comerciais dos EUA, provocados, em boa parte, pelos interesses das próprias companhias estadunidenses, sempre em busca de custos mais baixos de produção, não constituem, em si, um problema sério.

O problema sério está na concorrência tecnológica da China e na perspectiva, de médio e longo prazo, de erosão cumulativa da hegemonia do dólar. No momento em que o “Dollar First” deixar de existir; aí sim as coisas vão se complicar, mesmo.

Mas fazer guerra comercial indiscriminada, especialmente contra aliados, só vai piorar a situação e acelerar esse processo.

O mundo tem de se preparar para conter Trump. E essa resposta política e econômica tem de ser concertada, calculada e equilibrada.

Deixado livre, sem oposição, interna e externa, Trump fara as piores coisas possíveis. Parece um psicótico sem controle.

Vai até tentar reaver o Canal do Panamá e se apossar, como puder, da Groenlândia. Com ele, temos um grau de imprevisibilidade insustentável.

Mais: se puder, Trump vai destruir democracias e as regras internacionais.   

A guerra contra Trump não é apenas uma guerra comercial e econômica. É, sobretudo, a guerra da civilização contra a barbárie. 

 

¨      Criptofacismo planetário. Por Raniero La Valle

Caros amigos, o Ocidente que não foi a Washington para a posse de Trump passou a segunda-feira, 20 de janeiro, um dia de consternação e pesadelo. O discurso de posse de Trump foi além de todas as piores expectativas. O que se perfilou diante dos olhos foi o fantasma de um criptofascismo planetário com o qual teremos que acertar as contas nos próximos anos. A democracia, como valor sagrado do Ocidente, está em crise e até mesmo, como mostraram os primeiros desconsolados comentários após a festa no Capitólio, teria acabado. Não por destino, entretanto, mas pela responsabilidade e escolha das próprias pessoas que hoje a lamentam. O que acabou foi, na realidade, a democracia reduzida a puro exercício eleitoral, não por acaso abandonado pela maioria, sem tudo o que tínhamos colocado em nossa Constituição, o que deveria servir de modelo para a Itália, bem longe de Salvini.

Os Estados Unidos pagam a conta, e nos fazem pagá-la, pelas escolhas erradas que fizeram após a queda do Muro de Berlim e o ataque às duas torres em Nova York. Perseguindo, como sempre fez, o mito da “America first”, acreditaram que sua segurança e destino estavam no domínio do mundo, em ter um exército como nunca antes visto na Terra e até mesmo em se dispor à guerra preventiva, porque “a melhor defesa é um bom ataque”. Esse era o diáfano Biden, não surpreendentemente o alvo da rejeição eleitoral. Ele dava como acabada a Rússia e por isso jogou contra ela a pobre Ucrânia, e proclamava urbi et orbi (nos documentos sobre a estratégia nacional estadunidense) a competição estratégica e o desafio final com a China, o único adversário que tinha “tanto a intenção de remodelar a ordem internacional quanto o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para fazê-lo”.

Assim, a Casa Branca e o Pentágono investem 800 bilhões de dólares por ano em despesas militares, enquanto a Rússia investe 80 bilhões, retirando centenas de bilhões de dólares por ano do bem-estar do povo estadunidense. Devemos a isso, como disse Bernie Sanders, o eterno candidato presidencial da esquerda estadunidense, o fato de “não ter nenhuma razão racional para termos uma enorme e crescente desigualdade de renda e riqueza, nenhuma razão racional para sermos o único grande país que não garante serviços de saúde para todos, nenhuma razão racional por 800.000 estadunidenses estarem sem casa e milhões de outros gastarem mais da metade de sua renda para ter um teto sobre a cabeça, nenhuma razão racional para que 25% dos idosos nos Estados Unidos tentarem sobreviver com 15.000 dólares por ano ou menos, por termos a maior taxa de pobreza infantil de quase todas as nações ricas, por termos jovens saindo da universidade profundamente endividados ou por termos assistência à infância inacessível para milhões de famílias”.

Isso explica os eventos de hoje, como passamos do Ocidente “alargado” até o Indo-Pacífico, ao Japão e à Austrália de Biden para o criptofascismo global de Trump, acompanhado por autarquia (tarifas), sanções, ordens executivas aos cântaros, confusão de poderes, justiça de regime, pena de morte, imunidade fiscal dos super-ricos e a pretensão de decidir quando começar ou terminar essas guerras “ridículas”, mas sempre trágicas.

Entretanto, o pior que se materializou nos Estados Unidos nessa segunda-feira negra de 20 de janeiro, poderia não vir a contagiar o mundo inteiro. Poderá causar grandes danos, servir de escola especialmente para as maiorias silenciosas, mas poderia ficar confinado ao que foi visto entre o Capitólio e a Capital One Arena, um banho de multidão embevecida e subjugada, fechado, porém, numa bolha que são os Estados Unidos e não o mundo. Não existe um único globo terrestre, o mundo não está pronto para o fascismo planetário, tem outros pensamentos, outra vocação. É claro que depende de nós, mas agora a alternativa é clara: ou nos rendemos a essa queda da história, ou resistimos e construímos uma verdadeira comunidade internacional de direito com uma humanidade indivisa.

Afinal, nem tudo o que Trump anunciou e ameaçou com seu olhar turvo se concretizará de fato; parece mais um blefe de Miles gloriosus do que um verdadeiro anúncio. Não haverá nenhum pouso e colonização em Marte até o final deste mandato presidencial. A ciência foi taxativa: neste ponto da evolução da espécie, a humanidade não está apta física e antropologicamente para empreender uma viagem àquele planeta distante. No mínimo pela duração da viagem, dois anos entre ida e volta, expostos às radiações cósmicas, sujeitos ao enfraquecimento muscular e esquelético que o corpo humano sofreria durante uma longa permanência no espaço, com os desequilíbrios associados do tônus muscular cardíaco. Teriam de ser construídas enormes naves espaciais giratórias, capazes de gerar uma força interna semelhante à gravidade terrestre, algo que só poderia ser feito diretamente no Espaço, aproveitando hipotéticas matérias-primas recolhidas lá em cima (de asteroides ou da Lua); sem falar na vida em Marte, até 126 graus abaixo de zero.

Isso significa que o mito da dupla Trump-Musk já caiu, e se o objetivo político mais simbólico de todas as promessas presidenciais se mostra impossível e falso, significa que o resto também não é tão garantido, a começar pela deportação, ou expulsão, de milhões de migrantes, tidos como criminosos internacionais e invasores: isso teria que ser feito com o exército posicionado na fronteira sul com o México, deixando “nossos guerreiros livres para derrotar nossos inimigos”, como diz Trump; mas com isso acaba o mito da fortaleza estadunidense, a ideia de que ninguém jamais poderá atravessar a fronteira dos EUA de forma ofensiva; eis que, segundo Trump, isso já teria acontecido por parte dos migrantes, tendo falhado a defesa das fronteiras, como se os Estados Unidos fossem Lampedusa, como na imaginação obsessiva de Salvini.

E quanto ao retorno incondicional ao petróleo, ao carvão, de modo a irradiá-lo ao som de dólares em todo o mundo, em que consiste o “America first”? Consiste no fato de que os Estados Unidos serão os primeiros a sofrer, juntamente com as ilhas que serão submersas pelo mar, e terá ciclones e tornados cada vez mais devastadores, e cidades em chamas, como o incêndio de Chicago ontem e o incêndio de Los Angeles hoje, onde até mesmo os ricos “perderam suas casas”.

E o que dizer dessa apresentação de Trump como o Messias que o próprio Deus teria protegido com seu escudo para cumprir sua missão nos EUA e no mundo? Para os Estados Unidos, isso não é novidade, havia o jovem Bush que, a caminho de destruir o Iraque, dizia que estava “chorando apoiado ao ombro de Deus”. E agora Trump usa a religião como um banquinho a seus pés e coloca Deus acima de si, como garantidor de seu poder. Exceto pelo fato que o Deus da tradição judaico-cristã, ao qual se refere o messianismo que chegou nos EUA por meio da Genebra de Calvino, não é um Deus que pode ser chamado para servir como escudeiro dos poderosos, mas é o Deus que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, o Deus que é todo misericórdia e nada vingança do Papa Francisco. E portanto, se religião deve ser e se chega a jurar sobre duas Bíblias no Capitólio, como se uma não fosse suficiente, a de Lincoln de 1861 e a que foi doada a Trump por sua mãe em 1955, é preciso começar a se perguntar novamente quem é esse Deus a quem se apela tão descaradamente.

Talvez, diante desses desafios, se precisaria repensar a má qualidade da secularização como a fizemos acriticamente no Ocidente: também por isso seria importante que a identidade espiritual e profética do judaísmo voltasse a resplendecer, não arrastada para os extermínios, não restrita a uma única etnia, não traída pelas políticas do Estado de Israel.

 

Fonte: Brasil 247/Prima Loro

 

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