Chris
Hedges: O jeito ocidental de praticar genocídio em Gaza
Gaza é
um deserto de 50 milhões de toneladas de escombros e destroços. Ratos e cães
vasculham as ruínas e as poças fétidas de esgoto bruto. O fedor pútrido e a
contaminação de corpos em decomposição emergem das montanhas de concreto
destroçado. Não há água potável. Há pouca comida. Uma grave escassez de
serviços médicos e quase nenhum abrigo habitável. Os palestinos correm o risco
de morte por explosivos não detonados, deixados após mais de 15 meses de
ataques aéreos, bombardeios de artilharia, ataques com mísseis e explosões de
projéteis de tanques, além de uma variedade de substâncias tóxicas, incluindo
poças de esgoto bruto e amianto.
A
hepatite A, causada pela ingestão de água contaminada, está disseminada, assim
como de doenças respiratórias, sarna, desnutrição, fome e a náusea generalizada
e vômito provocados pelo consumo de alimentos estragados. Os mais vulneráveis,
incluindo bebês e idosos, junto com os doentes, enfrentam uma sentença de
morte. Cerca de 1,9 milhão de pessoas foram deslocadas, o que equivale a 90% da
população. Elas vivem em barracas improvisadas, montadas entre blocos de
concreto ou ao ar livre. Muitos foram forçados a se mudar mais de uma dúzia de
vezes. Nove em cada dez casas foram destruídas ou danificadas. Blocos de
apartamentos, escolas, hospitais, padarias, mesquitas, universidades — Israel
explodiu a Universidade Israa na Cidade de Gaza em uma demolição controlada —
cemitérios, lojas e escritórios foram obliterados. A taxa de desemprego é de
80% e o produto interno bruto foi reduzido em quase 85%, segundo um relatório
de outubro de 2024 divulgado pela Organização Internacional do Trabalho.
A
proibição imposta por Israel à Agência das Nações Unidas de Assistência aos
Refugiados da Palestina no Oriente Próximo — que estima que levará 15 anos para
limpar os escombros em Gaza — garante que os palestinos na Faixa jamais terão
acesso a suprimentos humanitários básicos, alimentos adequados e serviços
essenciais.
O
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento estima que serão necessários
entre 40 e 50 bilhões de dólares para reconstruir Gaza e que, se os fundos
forem disponibilizados, a reconstrução levará até 2040. Seria o maior esforço
de reconstrução pós-guerra desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Israel,
abastecido com bilhões de dólares em armas dos EUA, da Alemanha, da Itália e do
Reino Unido, criou este inferno. E pretende mantê-lo. Gaza continuará sob
cerco. Após um breve aumento na entrega de ajuda no início do cessar-fogo,
Israel mais uma vez reduziu drasticamente a assistência transportada por
caminhões. A infraestrutura de Gaza não será restaurada. Seus serviços básicos,
incluindo estações de tratamento de água, eletricidade e redes de esgoto, não
serão reparados. Suas estradas, pontes e fazendas destruídas não serão
reconstruídas. Palestinos desesperados terão que escolher entre viver como
homens das cavernas, acampados entre pedaços de concreto, morrendo de doenças,
fome, bombas e balas, ou o exílio permanente. Essas são as únicas opções que
Israel oferece.
Israel
acredita, provavelmente com razão, que, ao final, a vida na Faixa se tornará
tão insuportável e difícil, especialmente conforme Israel encontra desculpas
para violar o cessar-fogo e retomar os ataques armados contra a população
palestina, que um êxodo em massa será inevitável. Mesmo com o cessar-fogo em
vigor, Israel recusou-se a permitir a entrada da imprensa estrangeira em Gaza,
uma proibição projetada para minimizar a cobertura do sofrimento e da morte
horrendos.
A
segunda fase do genocídio de Israel e da expansão do "Grande Israel"
— que inclui a tomada de mais territórios sírios nas Colinas de Golã (bem como
chamados para expansão até Damasco), o sul do Líbano, em Gaza e a na
Cisjordânia ocupada — está sendo consolidada. Organizações israelenses,
incluindo o grupo extremista Nachala, realizaram conferências para planejar a
colonização judaica de Gaza assim que os palestinos forem etnicamente limpos.
Colônias exclusivamente judaicas existiram em Gaza por 38 anos, até serem
desmontadas em 2005.
Washington
e seus aliados na Europa nada fazem para impedir o massacre transmitido ao
vivo. Eles nada farão para impedir que os palestinos em Gaza morram de fome e
doenças e sejam eventualmente expulsos. Eles são cúmplices desse genocídio.
Permanecerão cúmplices até que o genocídio chegue a sua sombria conclusão.
Mas o
genocídio em Gaza é apenas o começo. O mundo está se desintegrando sob o
impacto da crise climática, que desencadeia migrações em massa, estados falidos
e incêndios florestais, furacões, tempestades, inundações e secas
catastróficas. À medida que a estabilidade global se desfaz, a aterrorizante
máquina de violência industrial, que está dizimando os palestinos, tornar-se-á
onipresente. Esses ataques serão cometidos, como ocorre em Gaza, em nome do
progresso, da civilização ocidental e de nossas supostas "virtudes",
para esmagar as aspirações daqueles que, em sua maioria pobres e não-brancos,
foram desumanizados e reduzidos a "animais humanos".
O
extermínio de Gaza por Israel marca o fim de uma ordem global guiada por leis e
regras internacionalmente acordadas — uma ordem frequentemente violada pelos
Estados Unidos em suas guerras imperiais no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão,
mas que pelo menos era reconhecida como uma visão utópica. Os EUA e seus
aliados ocidentais não apenas fornecem as armas que sustentam o genocídio, mas
também obstruem a exigência da maioria das nações pelo cumprimento do direito
humanitário.
A
mensagem que isso transmite é clara: Vocês, e as regras que pensavam que poderiam protegê-los, não importam.
Nós temos tudo. Se tentarem tirar algo de nós, nós os mataremos.
Os
drones militarizados, os helicópteros de ataque, os muros e barreiras, os
postos de controle, os rolos de arame farpado, as torres de vigilância, os centros
de detenção, as deportações, a brutalidade e a tortura, a negação de vistos de
entrada, a existência segregada imposta aos imigrantes sem documentos, a perda
de direitos individuais e a vigilância eletrônica são tão familiares aos
migrantes desesperados na fronteira do México ou aos que tentam entrar na
Europa quanto são para os palestinos.
Israel,
que, como Ronen Bergman observa em Rise and Kill First,
"assassinou mais pessoas do que qualquer outro país do mundo
ocidental", usa o Holocausto nazista para santificar a sua condição de
vítima hereditária e justificar o seu Estado colonialista, o seu apartheid, as
suas campanhas de assassinatos em massa e a sua versão sionista do Lebensraum (espaço
vital).
Primo
Levi, que sobreviveu a Auschwitz, via o Holocausto, por essa razão, como
"uma fonte inesgotável de mal", que "é perpetuado como ódio nos
sobreviventes e ressurge de mil maneiras, contra a vontade de todos, como sede
de vingança, como colapso moral, como negação, como cansaço, como resignação".
O
genocídio e o extermínio em massa não são um domínio exclusivo da Alemanha
nazista. Adolf Hitler, como escreve Aimé Césaire em Discurso sobre o
Colonialismo, foi considerado excepcionalmente cruel apenas porque presidiu
“a humilhação do homem branco”. Mas os nazistas, ele argumenta, simplesmente
aplicaram "procedimentos colonialistas que, até então, tinham sido
reservados exclusivamente para os árabes da Argélia, os coolies da
Índia e os negros da África".O massacre dos Herero e Namaqua pelos
alemães, o genocídio armênio, a fome de Bengala em 1943 — o então
primeiro-ministro britânico Winston Churchill descartou com desdém a morte de
três milhões de hindus na fome ao chamá-los de "um povo repugnante com uma
religião repugnante" — junto com o lançamento de bombas nucleares sobre os
alvos civis de Hiroshima e Nagasaki, ilustram algo fundamental sobre a
"civilização ocidental". Como Hannah Arendt compreendeu, o
antissemitismo sozinho não levou ao Holocausto. Foi necessária a potência
genocida inerente ao moderno Estado burocrático.
"Nos
EUA", disse o poeta Langston Hughes, "os negros não precisam que lhes
digam o que é o fascismo em ação. Nós sabemos. As suas teorias de supremacia
nórdica e supressão econômica há muito são realidades para nós".
Dominamos
o globo não por causa das nossas supostas virtudes superiores, mas porque somos
os assassinos mais eficientes do planeta. Milhões de vítimas dos projetos
imperialistas racistas em países como México, China, Índia, Congo, Quênia e
Vietnã são surdas às afirmações falaciosas dos judeus de que sua vitimização é
única. O mesmo acontece com negros, latinos e indígenas das Américas. Eles
também sofreram holocaustos, mas esses holocaustos permanecem minimizados ou
ignorados por seus perpetradores ocidentais.
"Esses
eventos, que ocorreram na memória viva, minaram o pressuposto básico tanto das
tradições religiosas quanto do Iluminismo secular: de que os seres humanos têm
uma natureza fundamentalmente 'moral'", escreve Pankaj Mishra em O
Mundo Depois de Gaza. "A suspeita corrosiva de que eles não a têm é
agora generalizada. Muito mais pessoas testemunharam de perto a morte e a
mutilação, sob regimes de indiferença, covardia e censura; elas reconhecem,
chocadas, que tudo é possível, que lembrar atrocidades passadas não é garantia contra
repeti-las no presente, e que os fundamentos do direito internacional e da
moralidade não são seguros de forma alguma".
O
massacre em massa é tão integral ao imperialismo ocidental quanto o Holocausto.
Ambos são alimentados pela mesma doença da supremacia branca e pela convicção
de que um mundo melhor se constrói sobre a subjugação e a erradicação das
"raças inferiores".
Israel
representa o Estado etnonacionalista que a extrema direita nos EUA e na Europa
sonha em criar para si mesma — um Estado que rejeita o pluralismo político e
cultural, bem como as normas legais, diplomáticas e éticas. Israel é admirado
por esses protofascistas, incluindo os nacionalistas cristãos, porque abandonou
o direito humanitário e usa a força letal indiscriminada para "limpar"
a sua sociedade daqueles que considera contaminantes humanos.
Israel
e seus aliados ocidentais, como James Baldwin alertou, caminham para a
"terrível probabilidade" de que as nações dominantes, "lutando
para manter o que roubaram dos seus cativos e incapazes de encarar o seu
próprio reflexo no espelho, precipitarão um caos mundial que, se não levar ao
fim da vida no planeta, provocará uma guerra racial como o mundo jamais
viu".
O que
falta não é conhecimento — a nossa perfídia e a de Israel fazem parte do
registro histórico — mas é a coragem de nomear a nossa escuridão e de nos
arrependermos. Essa cegueira voluntária e essa amnésia histórica, essa recusa
em ser responsabilizado pelo Estado de Direito, essa crença de que temos o
direito de usar a violência industrial para impor a nossa vontade marcam o
início, e não o fim, das campanhas de massacre em massa do Norte Global contra
as legiões crescentes dos pobres e vulneráveis no mundo.
¨ O genocídio não parou na Palestina. Por
Luis Felipe Miguel
Centenas de milhares de mulheres, homens
e crianças, muitos deles descalços, marcharam para o norte de Gaza,
aproveitando a trégua, para encontrar as ruínas que um dia foram suas casas,
suas plantações, suas cidades. Como disse o embaixador palestino nas Nações
Unidas, Riyad Mansour, “Israel destruiu tudo, exceto o vínculo sagrado do povo
com sua terra”.
A trégua está permitindo a volta de
muitos palestinos e a troca de reféns do Hamas por reféns de Israel – que a
imprensa costuma chamar de “prisioneiros”, mas que não passaram por nenhum
processo legal, são detidos como retaliação à resistência palestina e muitas
vezes, até, são crianças.
Em suma: são reféns. Não de um grupo
terrorista, mas de um Estado terrorista. Evitar chamá-los pelo nome correto é
uma manobra, entre tantas, para esconder a real natureza do sionismo.
A trégua é importante, mas não significa
paz. Não significa o fim do genocídio.
Israel não cessou completamente as
agressões ao povo de Gaza, mesmo com o acordo. Também continua promovendo
ataques ao Sul do Líbano, violando outro cessar fogo, pactuado com o Hezbollah.
Tem intensificado as ações na Cisjordânia ocupada.
E, na semana passada, uma infame decisão
do parlamento baniu, de todo território controlado pelos israelenses, a agência
da ONU voltada ao atendimento aos refugiados palestinos, a UNRWA.
É uma agência humanitária, que tenta
garantir o acesso dos palestinos expulsos de suas casas, deslocados de seus
territórios, a condições mínimas de sobrevivência: um teto ou uma tenda, água,
comida, atendimento médico, escola para as crianças.
Sua mera existência – o fato de que as
Nações Unidas precisam de uma agência especializada para atender as vítimas de
Israel – já é uma denúncia dos crimes do sionismo. Por isso, a UNRWA sempre
esteve na mira do governo de Telavive.
E ao impedir a ajuda humanitária às
vítimas, boicotando-a na prática e agora proibindo-a também na lei, os
governantes israelenses desvelam seu verdadeiro propósito genocida.
Desde o início da atual fase do massacre
contra os palestinos, em outubro de 2023, Israel tem tentado destruir a
agência. Com base em acusações, que se mostraram infundadas, de que ela seria
um ninho de “terroristas”, pressionou seus aliados ocidentais a retirarem o
financiamento para suas atividades.
Mas a proibição das atividades de uma
agência das Nações Unidas no seu território é algo inédito. Segundo
especialistas, é a primeira vez na história em que um país toma uma atitude
assim.
A decisão foi condenada até mesmo pelas
chancelarias de países europeus que, no entanto, continuam prestando apoio aos
sionistas. Mas é claro que a condenação vale pouca coisa.
São países que não conseguem chamar o
genocídio pelo seu verdadeiro nome. E declarações cheias de belos sentimentos
humanitários não valem nada enquanto eles continuarem enviando armas e dinheiro
para que Israel mate mais palestinos.
Quanto ao Brasil, está na hora de dar
mais passos. Pode começar parando de vender petróleo para Israel – garantindo
que não estamos fornecendo combustível para transporte de tropas, para blindados,
para aviões que até agora já mataram, segundo números oficiais seguramente
subdimensionados, mais de 50 mil pessoas.
Fonte: Brasil 247/Amanhã
não Existe
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