quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Vito Mancuso: Esse abuso do nome de Deus que causa retrocesso na história

"É assim desde sempre que as dominações se formam, desde aquelas de uma tribo sobre outra tribo, até reinos e impérios. É algo muito primitivo, muito ancestral, radicado na pré-história do homo sapiens que, onde quer que chegasse, subjugava outros hominídeos e outros animais até levar muitos deles à extinção. É a mais total e descarada vontade de poder. É a gasolina da história, o combustível dos vencedores", escreve Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado

<><> Eis o artigo.

Certamente Trump está autorizado pela Bíblia a acreditar que tem Deus do seu lado. Netanyahu também está, até mesmo Ben-Gvir, o político israelense de extrema direita que se demitiu do cargo de ministro da segurança nacional em protesto contra a frágil paz em Gaza, porque queria continuar o massacre. Putin e o Patriarca Kirill de toda a Rússia também estão convencidos de que estão do lado de Deus, e eles também têm convictas fundamentações bíblicas e teológicas para acreditar nisso. Até mesmo Narendra Modi, na Índia, sente-se protegido e guiado por seu panteão totalmente hindu de Brahma, Shiva e Vishnu. E, é claro, no que diz respeito à fé, os vários islamitas não ficam atrás, do Hamas ao Hezbollah e aos aiatolás iranianos que citam de cor as Suras do Alcorão para armar seus homens e enviá-los para matar sem piedade.

A falta de piedade, da “pietas” virgiliana, para retomar o antigo conceito latino, é uma característica que define esses senhores da história, esses aspirantes ou vencedores de fato, que, voltando a Trump em seu discurso, querem ser os primeiros e, assim, despertar a inveja nos outros povos: “Seremos a inveja de todas as nações do mundo”. Querem ser os primeiros, esmagar, tornar todos vassalos: “Colocarei os Estados Unidos em primeiro lugar”. Almejam e querem alcançar “uma nova e empolgante era de sucesso nacional”, onde fica claro que o sucesso de alguns, na história, é necessariamente o insucesso e a subjugação de outros.

É assim desde sempre que as dominações se formam, desde aquelas de uma tribo sobre outra tribo, até reinos e impérios. É algo muito primitivo, muito ancestral, radicado na pré-história do homo sapiens que, onde quer que chegasse, subjugava outros hominídeos e outros animais até levar muitos deles à extinção. É a mais total e descarada vontade de poder. É a gasolina da história, o combustível dos vencedores. O homem branco sempre encheu disso o tanque para fincar sua bandeira vitoriosa em tudo e em todos. E a Bíblia desde sempre foi um poço de petróleo fecundo para extrair esse combustível. E continua sendo. Afinal, todos sabem que por trás de Trump estão a direita evangélica, toda Bíblia, petróleo e indústrias de armas.

Como um grande aspirante a desempenhar o papel messiânico de invencível Ungido do Senhor, depois de lembrar que escapou do atentado que feriu sua orelha, Trump continuou: “Sentia na época, e acredito ainda mais agora, que minha vida foi salva por uma razão”. Qual?

Impossível duvidar de qual seria a resposta: “Fui salvo por Deus para tornar a América grande novamente”. O Deus bíblico salvou sua vida para confiar a ele a missão de fazer sua pátria triunfar. E Deus e pátria, como se sabe, são a dupla vencedora da Bíblia e da sua religião nacional, concebida e desenhada sob medida para o “povo escolhido” que triunfa, liderado pelo “Deus dos exércitos”, sobre as outras populações.

Um pouco mais adiante, Trump declarou: “Não nos esqueceremos de nosso Deus”. Não, é claro, não podem esquecê-lo, porque o Deus deles é o Eu deles, o Nós deles, “Gott mit uns”, “Deus conosco”, como estava escrito nas fivelas dos cintos dos soldados do Terceiro Reich e, antes disso, naquelas dos monges teutônicos durante a Idade Média, e como o salmo bíblico havia declarado antes disso: “O Senhor dos Exércitos está conosco” (Salmo 46,8, tradução da Bíblia hebraica pelo rabino Dario Disegni).

Em si, não é de todo errado sentir que Deus está com você; pelo contrário, esse sentimento profundo e calmo de confiança é o sentido genuíno da verdadeira religiosidade, aquela que é experimentada quando um ser humano percebe que não está sozinho, que não está nas mãos do acaso, que não veio do nada para voltar ao nada, mas que é sustentado por uma realidade muito mais brilhante e que faz parte de uma Santa Inteligência que, do caos informe da escuridão cósmica, sabe como despertar a vida, a inteligência e o amor. Mas é claro até demais que aqueles que vivem autenticamente essa experiência espiritual estão longe de considerar Deus como seu Deus pessoal, ou pior, Deus nacional, como um poder ao seu lado para dominar e esmagar os outros povos, despertando neles a inveja por seu próprio sucesso.

É claro que a Bíblia também dá amplo testemunho dessa religiosidade genuína, como, por exemplo, no belíssimo Salmo 131, que diz: “o meu coração não é orgulhoso e os meus olhos não são arrogantes. Não me envolvo com coisas grandiosas demais para mim”. Não é exatamente o retrato de Donald Trump. O salmo continua: “De fato, acalmei e tranquilizei a minha alma. Sou como uma criança”. Aqui não se busca a grandeza, mas se almeja a mansidão. A Bíblia é ambígua, assim como a vida é ambígua. Ela mesma afirma: “Uma vez Deus falou, duas vezes eu ouvi, que o poder pertence a Deus. Contigo também, Senhor, está a fidelidade” (Salmo 62,11-12). Há aqueles que juram sobre a Bíblia e dizem que creem em Deus porque seu Deus é a força. E há aqueles que, talvez não jurando nada, como Jesus ensinou no Sermão da Montanha (“Eu, porém, vos digo que não jureis... que a vossa palavra seja sim, sim, não, não”), e talvez não professando nenhuma fé, cultivam o sumo ideal do bem e da justiça e, portanto, estão automaticamente do lado do Deus da bondade.

A realidade, entretanto, é que o cristianismo sempre foi muito útil para os governantes. O primeiro imperador a entender isso no Ocidente foi Constantino, o último Donald Trump. Mas poderia ser de outra forma? Ou será que para governar efetivamente esse navio de loucos que é a história da humanidade é preciso exatamente ter o livro sagrado em uma mão para seduzir a mente e a espada na outra para manter sob controle os corpos, como diz o salmo? Aqui estão suas terríveis palavras: “Altos louvores estejam em seus lábios e uma espada de dois gumes em suas mãos, para imporem vingança às nações e trazerem castigo aos povos” (Salmo 149,6-7). Donald Trump, jurando sobre a Bíblia de Lincoln e sobre aquela de sua família, depois de assistir à missa de manhã cedo, com seu discurso de posse só reiterou qual é o seu Deus: o Deus da força e do poder que se impõe para se vingar dos outros povos (inclusive a geografia, mudando o nome do Golfo do México). Algo, como eu disse, muito primitivo. A história, é um pouco assustador constatar isso, de fato retrocedeu.

 

¨      A religião exibida como mercadoria política. Por Marco Follini

"A distinção entre política e religião, entre o sagrado e o profano, em suma, faz parte da civilização democrática há muitos anos. E dá um sentido, até mesmo geopolítico, às muitas controvérsias que enfrenta em todo o mundo. Na maioria das vezes, Deus é solicitado a desempenhar um papel que deveria caber a seus filhos", escreve Marco Follini, Ex-Vice-presidente do Conselho de Ministros da Itália.

<><> Eis o artigo.

Prezado editor, é possível que o presidente Trump realmente pense que foi Deus, em primeira pessoa, que desviou a bala que foi disparada contra ele na Pensilvânia; e que ele fez isso justamente para lhe possibilitar tornar a América ainda maior. Mas o número de vezes que o assunto foi utilizado - mais recentemente em seu discurso de posse - deixa em dúvida, no mínimo em dúvida, que sua intenção fosse mais a de sinalizar para o povo estadunidense e para o mundo que o Senhor tem um cuidado muito especial por seu destino e por sua sorte política. Algo sobre que, nós, italianos, talvez não tenhamos o direito de nos escandalizar tanto assim. Considerando que, em nossa casa, vimos recentemente líderes políticos proeminentes ostentarem sua fé e símbolos religiosos sem demasiado pudor, apresentando-se na televisão e nas mídias sociais como filhos devotos da Santa Madre Igreja. E azar, se todas essas ostentações e exibições aconteceram quase ao lado de comunicações bem mais laicas e mundanas. Quase como se as imagens de Nossa senhora e do Padre Pio fossem chamadas para fazer companhia às representações contemporâneas e muito vistosas de salames ou burrata.

O fato é que o recrutamento de Deus sob nossas bandeiras políticas, embora nobres, quase parece querer tirar algo do carisma divino. Mas, paradoxalmente, acaba tirando algo da política também. Como se ela só pudesse ser reconhecida e enobrecida por uma presença celestial. Destituída de toda virtude e induzida, quando muito, a se refugiar na celebração de uma confusão imprópria entre a cidade de Deus e a cidade terrena.

Vão dizer que é assim que gira o mundo. E que essa espécie de publicidade que a política oferece à fé faz parte, em certo sentido, da nossa modernidade um tanto barulhenta e vaidosa. Onde justamente tudo vale em função de sua ostentação, e tudo o que, em vez disso, permanece implícito ou recitado sem o fervor altissonante e comprazido mencionado acima parece quase como um ramo menor da frondosa árvore de nossos valores políticos e civis.

E, no entanto, é precisamente nessa repetição constante de que estamos com Deus e que Deus tem um cuidado muito especial conosco – justamente nós, nós mais do que os outros - que ressoam palavras de ordem antigas, muito antigas, que remontam ao tempo em que se pretendia dispor da divindade sob suas próprias bandeiras, ou quando os detentores terrenos dessa divindade pediam aos exércitos seculares que garantissem seus destinos. Dessa confusão, emergimos por mérito mútuo. E seria um grande salto para trás se voltássemos a mergulhar nessa confusão.

Ora, não quero bancar o nostálgico democrata cristão, já que em minhas paragens havia exemplos nobres dessa distinção e também exemplos menos nobres de alguma confusão no assunto. Mas o fato é que quando, na Assembleia Constituinte, um grande deputado da DC, Giorgio La Pira, propôs uma emenda pela qual a lei fundamental seria promulgada “em nome de Deus”, foram seus colegas de partido, todos ou quase todos, que rejeitaram sua intenção. Explicando a ele, não sem uma pitada de perfídia, que Deus não poderia ser posto em votação. Ainda mais nas votações de uma assembleia em que os democratas-cristãos não tinham maioria.

A distinção entre política e religião, entre o sagrado e o profano, em suma, faz parte da civilização democrática há muitos anos. E dá um sentido, até mesmo geopolítico, às muitas controvérsias que enfrenta em todo o mundo. Na maioria das vezes, Deus é solicitado a desempenhar um papel que deveria caber a seus filhos.

Nosso credo e nossa história nos dizem, ao contrário, que Deus nos inspira, mas não nos governa. E que, se algum dia ele se envolver na política, podemos ter certeza de que o faria de maneira tão discreta que ninguém poderia se gabar disso. 

 

¨      Doutrina Social da Igreja: outro mundo possível. Por  Eliseu Wisniewski

"A obra é também um lembrete. Lembra-nos que temos uma oportunidade única de realizar contribuições nobres, belas e verdadeiras para a humanidade", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em resenha do livro Doutrina Social da Igreja: outro mundo possível (Paulus, 2024).

Eis a resenha.

Se a relação entre fé cristã e compromisso social é intrínseca à revelação bíblica, antes de tudo, é preciso insistir na dimensão social da fé e da evangelizadora, fortalecendo e dinamizando, na lógica do Evangelho de Jesus Cristo, o compromisso dos cristãos e do conjunto da Igreja como os processos de transformação da sociedade. A Doutrina Social da Igreja como sabemos propõe uma reflexão sobre as demandas sociais da fé cristã, com particular referência ao magistério dos pontífices.

No entanto, um fenômeno sintomático de nossos tempos tem sido o desconhecimento e o desinteresse pela Doutrina Social da Igreja e junto com isso a desconfiança irônica diante da caridade dos outros. O resultado não pode ser outro: católicos atacando a doutrina da Igreja baseados nos desconhecimento sobre ela.

Neste cenário recebemos a obra Doutrina Social da Igreja: outro mundo possível (Paulus, 2024,104 p.), escrita por Altiérez dos Santos e Luiz Alexandre Solano Rossi, ambos, doutores em Ciências da Religião. Os autores salientam que esta obra trata do fascinante amor de Deus pela humanidade, e de temas de grande relevância como a justa e responsável atuação da Igreja na sociedade, a pessoa humana, a família, o trabalho, a economia, a comunidade internacional, a ecologia, a violência, o socorro das multidões que vivem em situação de vulnerabilidade etc.

O texto está estruturado em quatorze reflexões temáticas e buscam das uma resposta as seguintes questões: 1) O que é Doutrina Social da Igreja? (p. 11-14); 2) Por que existe uma Doutrina Social da Igreja? (p. 15-16); 3) Qual o propósito da Doutrina Social da Igreja? (p. 17-19); 4) A Doutrina Social da Igreja é uma ideologia? (p. 21-23); 5) A Doutrina Social da Igreja é uma inovação teológica? (p. 25-27); 6) A Doutrina Social da Igreja causa alguma mudança real? (p. 29-45); 7) Como a Doutrina Social da Igreja se relaciona com a ética e a moral se relaciona com a ética e a moral? (p. 47-48); 8) O que a Doutrina Social da Igreja diz sobre o pecado? (p. 49-50); 9) O que é o personalismo? (p. 51-52); 10) Quais são os valores da Doutrina Social da Igreja? (p. 53); 11) Quais são os princípios da Doutrina Social da Igreja? (p. 55-68); 12) Quais são os temas da Doutrina Social da Igreja? (p. 69-78); 13) Outros temas da Doutrina Social (p. 79-88); 14) Os papas e a Doutrina Social da Igreja (p. 89-97).

O texto, portanto, foi pensado e apresentado em torno dos temas fundamentais da Doutrina Social da Igreja. Esse conjunto de ensinamentos, que parte das palavras de Jesus, passa pela reflexão de teólogos e teólogas e contempla o magistério dos Concílios e dos papas, é uma riqueza basicamente desconhecida. Daí uma primeira contribuição desta obra. Ajudará seus leitores a compreender que a Doutrina Social da Igreja trata do fascinante amor de Deus, da justa atuação da Igreja na sociedade, da pessoa humana, da família, do trabalho, da economia, da comunidade política, da comunidade internacional, da ecologia, da violência, entre outros temas que acarretam tantos e tantos debates.

A obra é também um lembrete. Lembra-nos que temos uma oportunidade única de realizar contribuições nobres, belas e verdadeiras para a humanidade. Frente a isso os autores pontuam que uma visão pessimista sobre o mundo, sobre as relações entre as pessoas e sobre temas como política, economia e riqueza atrapalha a capacidade de pensamento coletivo, ainda apegada a padrões ultrapassados e dualistas. Não se trata de otimismo ingênuo, mas de uma visão prospectiva. Poucos percebem que vivemos em um mundo em construção e que a Igreja nos dá a oportunidade de pensar a transformação e a restauração da criação de Deus, na qual nos incluímos.

Neste livro nos é oferecido um precioso contributo para a compreensão da Doutrina Social da Igreja. Permitirá fazer viagens sobre as suas temáticas. Cada uma delas permitirá vislumbrar horizontes novos afim de despertar em nós a consciência do que a Igreja ensina e vive no engajamento na sociedade, no cuidado, defesa e promoção da vida, de toda espécie de vida, em especial dos seres humanos, criados à imagem e semelhança” do Criador.

 

Fonte: La Stampa - tradução de Luisa Rabolini.

 

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