Trump, o homem da
providência e os (inquietantes) silêncios da igreja estadunidense
Pode dormir sonos
tranquilos, de fato abençoados, Donald Trump. Por um lado,
durante a campanha, por ocasião do atentado de Butler, “o Senhor me
salvou para tornar a América grande novamente”, lembrou o próprio
magnata em seu discurso de posse no Capitólio. Por outro lado, uma vez de
volta à Casa Branca, ele encontrou o poderoso episcopado estadunidense disposto
a não criar obstáculos em seu caminho rumo à prometida era de ouro para os
EUA.
Desde os primeiros passos, o novo presidente, que se autodenominou o Homem
da Providência - há um século, até mesmo um professor de escola primária
da Romagna se celebrizou nesses termos -, pôde exibir imperturbado sua retórica
agressiva, acompanhado por uma saraivada de ordens executivas que custam a se
conciliar com os ditames da Bíblia sobre a qual Trump também jurou, como todo
novo presidente de uma democracia estadunidense de reflexos teocráticos.
Desafiando o “Não matarás” do Decálogo, restabeleceu a pena de morte federal;
apesar da Sagrada Família ser a imagem imorredoura do drama dos migrantes, deu
a largada às batidas direcionadas contra os imigrantes ilegais.
Ontem Chicago, amanhã Los Angeles. Até mesmo escolas e
igrejas não serão mais portos seguros.
E, mais ainda,
insistindo na mesma tecla, The Donald cancelou o ius soli sancionado na
Constituição antes que um juiz federal de Seattle bloqueasse sua ação de
limpeza. Para os pobres de todos os lugares, ele depois suspendeu os bilhões de
dólares em ajudas destinados ao exterior por 90 dias, surdo ao Sermão da
Montanha pronunciado pelo Crucificado dos Crucificados. Por fim, a decisão de
impor o binarismo sexual a todos, inclusive aos hermafroditas, mesmo
que o próprio Deus, como nos lembrou um papa em 1978, João Paulo I, seja pai e mãe.
Nesse contexto
bombástico de declarações e ações, no qual ao magnata deve ser creditada uma
coerência bíblica, a princípio a liderança da USCCB (Conferência dos
Bispos Católicos dos Estados Unidos) não foi além de um genérico lembrete de
que “Cuidar de imigrantes, refugiados e pobres faz parte do próprio ensinamento
da Igreja, que nos pede que protejamos os mais vulneráveis, especialmente
as crianças não nascidas, os idosos e os doentes”. Nada mais, enquanto há
quatro anos, quando o democrata Joe Biden entrou na
Casa Branca, a mesma conferência episcopal imediatamente soltou fogos e chamas.
“As políticas do novo presidente”, a estocada do então chefe dos bispos dos
EUA, o arcebispo Jose Gomez, poucas horas após
a posse do Comandante em Chefe, “promoverão o mal moral e ameaçarão a vida e a
dignidade humana, mais gravemente em matéria de aborto, contracepção, casamento
e gênero”.
No entanto, o Papa Francisco, do púlpito do
programa de Fabio Fazio, Che tempo che fa - veremos se isso se
repetirá no domingo, no Angelus, da janela do Palácio Apostólico – tinha
apontado o caminho para o líder da USCCB, o Arcebispo Timothy Broglio. Trump ainda não
havia prestado juramento (sobre a Bíblia) e Bergoglio chegou a dizer que “seria
uma desgraça se ele mandasse os migrantes embora”. Dito e feito, mas a seguir
firmemente o Papa em sua condenação foram (apenas) os mesmos de sempre do progressismo
católico dos EUA,
bem pouco relevantes nas dinâmicas internas do episcopado conservador EUA, do
cardeal de Chicago Blase Cupich ao bispo dos
migrantes, Mark Seitz. Até mesmo o
recém-nomeado Arcebispo de Washington, Cardeal Robert Walter
McElroy,
em quem os cada vez mais marginalizados liberais dos EUA estão depositando suas
esperanças, permaneceu em silêncio. Por sua vez, foi somente com o passar das
horas que Broglio ajustou um pouco seu tom em relação às ordens executivas
referentes aos migrantes e à pena de morte, definindo-os de “profundamente
preocupantes”, apenas para rapidamente acrescentar que outras medidas “podem
ser vistas sob uma luz mais positiva, como o reconhecimento da verdade sobre
cada pessoa humana como homem ou mulher”. Um ato de equilíbrio perfeito, para
dizer o mínimo. “Em comparação com quatro anos atrás, a presidência da USCCB adotou
tons mais suaves em relação ao governo em exercício, Trump”, é a análise
do historiador Massimo Faggioli, professor do
Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University, na
Filadélfia, ‘foi flagrantemente ignorado que estamos diante de uma mudança no
estado de direito e do sistema democrático. Há uma satisfação declarada pela
revogação das políticas sobre o gênero, mas cabe se perguntar se não haveria
também uma simpatia pelo tom e pelas maneiras autoritárias do novo presidente”.
Um questionamento
assustador - já que se trata de homens de fé - que a Conferência Episcopal
Italiana tentou dissipar até certo ponto, por seu secretário-geral, o
arcebispo Giuseppe Baturi (“Trump e os migrantes? Falar assim sobre
os homens é ruim”). Mas a Itália está longe, a CEI não tem
competência sobre as almas além oceano. Nos Estados Unidos, a única pessoa a
levantar a voz contra as políticas e os tons trumpianos, justamente em
Washington, na frente do presidente dos EUA, foi uma mulher, uma bispa
episcopal. Mariann Budde pediu
misericórdia para gays e imigrantes. Na Rede, ela se tornou um ícone com uma
auréola. Ela botou sua cara e talvez tenha salvado a cara do cristianismo
estadunidense.
¨ O desafio de Trump para a Igreja Católica durante seu segundo mandato.
Por Massimo Faggioli
A nova era de Trump começou. No
seu discurso de posse, um ponto que me
chamou muita atenção é a afirmação dele sobre “engenharia social” ou
“experimento social”: “Esta semana, vou também acabar com a política
governamental de tentar fazer uma engenharia social da raça e do gênero em
todos os aspectos da vida pública e privada. Vamos forjar uma sociedade
que seja daltônica e baseada no mérito. A partir de hoje, será doravante a
política oficial do governo dos Estados Unidos que só
existem dois gêneros: masculino e feminino. [...] E assinarei uma ordem para
impedir que os nossos guerreiros sejam sujeitos a teorias políticas radicais e
experiências sociais durante o serviço”.
Com certeza, muitos
lutaram e colocaram muito dinheiro para que ele fosse eleito exatamente para
terminar aquilo que ele chamou de engenharia ou experimento social com
respeito ao tema da raça, gênero e a força policial-militar. Para os defensores
de programas de inclusão social (racial e de
programas sociais em favor dos pobres), do reconhecimento de relações de gênero
não-binários e o controle da força bruta dos policiais e dos militares em
guerra são avanços no campo de direitos humanos.
Assim, estamos
diante de uma luta ou guerra que Weber chamou de
“deuses”, isto é, a guerra entre duas concepções conflitantes e opostas de ser
humano, de cultura, civilização e do “progresso”. Para Trump e os
seus aliados pelo mundo inteiro, tudo o que significa o avanço de direitos
humanos universais, – isto é, para toda a humanidade e o reconhecimento da
igualdade fundamental de todos seres humanos – é engenharia social que nos
levará ao desastre e o fim da civilização humana.
Esse argumento é a
base do pensamento de Hayek, o principal
pensador do neoliberalismo. Para ele, a
intervenção do mercado, que ele chamou de “ordem espontânea”, pelo Estado
de Bem Estar Social para diminuir os problemas econômico-sociais,
especialmente dos pobres, seria “O caminho da servidão”, o título do livro mais
famoso (1944). Uma característica do neoliberalismo contra o pensamento liberal
moderno é a crítica à “pretensão do conhecimento” (o título do discurso dele no
recebimento do Nobel, 1974) de resolver os problemas sociais. Isso seria a
origem do mal na economia da década de 1970; isto é, o “pecado original” da
sociedade moderna.
Nesse sentido,
podemos dizer que a era Trump não rompe com os fundamentos filosóficos
do neoliberalismo, mas é uma continuidade de uma tradição filosófico-política
que começa com Nietsche e afirma que
o sentido último da história e do desenvolvimento da civilização e do ser
humano é a “vontade de poder”. Isto é, ser movido pelo que Paulo apóstolo chama
de carne, o “espírito” animal, instintivo, de posse e domínio.
Estamos em uma luta
em que a solidariedade e o reconhecimento dos direitos dos “outros” está em
declínio e a da “vontade de poder”, claramente expressa em Trump e,
por exemplo, em Elon Musk com seus
apoios a partidos extremistas, autoritários e neofascistas.
A diferença entre
os neoliberais do Wall Street e Trump é que esse tem coragem de dizer
o que pensa em público. E outros bilionários que estavam na posse de Trump
também estão assumindo essa postura. Afinal, para que ganhar e acumular bilhões
e bilhões de dólares se não puder “tomar” o poder no mundo. O problema é que o
“poder” não é uma substância, uma coisa, que a gente toma e guarda, mas é uma
relação. E a única forma de sentir-se como tendo poder é agir e oprimir os
subalternos e trata-los com inferiores. Só se sente com poder e “grande de
novo” na medida em que oprime o pequeno. E, de novo um problema lógico, o
reconhecimento do “oprimido/escravo” (Hegel) não satisfaz o
poderoso porque é reconhecimento de um fraco. Daí, precisa entrar em guerra de
novo, uma guerra sem fim. Até que se destrua a civilização ou o seu império
seja destruído por dentro.
Em termos
religioso-teológico, a guerra que vemos hoje é uma guerra entre um Deus da
Guerra, ou da Onipotência e Domínio, e um Deus que reconhecer; uma guerra
entre os que creem que a espiritualidade humanizadora é superar o instinto
egoístico e de posse, e outros que creem que a vontade de poder sobre outros é
a sua humanização.
¨ Massimo Faggioli: O Messias de um deus nacionalista e
exclusivista”
Durante a campanha
eleitoral, o aborto parecia ter
se tornado um ponto fraco para Donald Trump: com o risco de
afastar o eleitorado evangélico, ele se distanciou da eventualidade de apoiar
uma proibição federal. Agora, no entanto, voltou ao ataque: revogou as medidas
do governo Biden de proteção ao procedimento, enviando uma mensagem
triunfante à Marcha pela Vida, e o Departamento de Justiça indica que
limitará a perseguição àqueles que obstruem o acesso às clínicas
de aborto.
Paralelamente, hoje saiu a notícia de que a Suprema Corte ouvirá um caso em que
os juízes poderiam decidir a legitimidade dos financiamentos públicos para as
escolas religiosas, o ponto culminante de um projeto que a Corte de John
Roberts parece estar engendrando há bastante tempo. Falamos sobre a
“aliança” entre o fundamentalismo cristão e o governo Trump com Massimo Faggioli, professor de
teologia da Villanova University, na Pensilvânia, e autor de Da Dio a
Trump. Crisi cattolica e politica estadunidense (Morcelliana).
<><> Eis
a entrevista.
·
Como
você considera que a direita religiosa e contra o aborto exercerá sua
influência no segundo mandato de Trump?
O argumento pró-vida sempre
será um argumento de propaganda, e Trump prestigiará esse eleitorado,
mas a verdadeira direita religiosa se converteu ao trumpismo e não tem o
poder de barganha que tinha antes. Os novos oligarcas estadunidenses têm bem
pouco interesse em questões relacionadas à vida. Os próprios intelectuais do
movimento contra o aborto falam sobre a necessidade de recomeçar porque,
culturalmente, perderam a batalha. É uma cultura pró-vida cheia de contradições
gritantes. Apenas um exemplo: poucas horas depois de fazer seu discurso
na Marcha pela Vida, no qual prometia defender as mulheres diante da
“cultura dominante”, o vice-presidente JD Vance, católico, como
presidente do Senado, deu seu voto decisivo para a confirmação de Pete
Hegseth, que foi acusado por algumas mulheres (inclusive de sua família)
de violências sexuais.
·
Nos
últimos anos, vimos o surgimento de um cristianismo fundamentalista nos EUA,
cuja “cruzada” não se limita aos direitos reprodutivos, mas também tem como
alvo a comunidade LGBTQ, os direitos políticos das mulheres e a separação entre
Igreja e Estado.
Existe um
neotradicionalismo e um neofundamentalismo na política estadunidense desde os
anos 1970-1980, mas a partir de 2000 essa onda também atingiu o catolicismo. O
trumpismo beneficiou e contribuiu para uma mudança fundamental: do neoconservadorismo
católico moderado
durante os anos de João Paulo II e Bento XVI para algo
diferente, que flerta com o radicalismo de direita e é um
movimento subversivo antissistema (subversivo tanto do estado quanto da
igreja). A Suprema Corte de John Roberts já havia começado, durante a
presidência de Obama, a desmantelar
determinadas proteções fruto dos anos do movimento dos direitos civis. Há
sonhos de teocracia e de um integralismo católico a que a Suprema Corte poderia
fazer concessões. O modelo declarado é a Hungria de Orban. O que desmoronou
é a ideia novecentista de estado governo e instituições, diante da qual até
mesmo o catolicismo liberal e progressista teve muitas hesitações.
·
De
acordo com a especialista em Suprema Corte Linda Greenhouse, a peculiaridade de
quase todos os seis juízes conservadores serem católicos pode ser explicada
pelo fato de que, no longo ataque a Roe v. Wade (a decisão que garantia o
direito ao aborto, ndr), quando os presidentes do Partido Republicano estavam
sabatinado os juízes elegíveis para integrar a Suprema Corte, “o catolicismo se
tornou um ‘substituto’ para a resposta que os indicados não podiam dar à
pergunta que um presidente não podia fazer”: se eles estavam dispostos a
revogar Roe. O que pensa a respeito?
O catolicismo era
historicamente minoritário, mas não é mais - hoje é a maior igreja do país. A
conquista da Suprema Corte pela cultura católica de
direita por
meio das nomeações dos presidentes republicanos faz parte de um movimento
cultural mais amplo para reconquistar o país, diante do qual o catolicismo
liberal e progressista parece não apenas derrotado, mas também desarmado.
O crescimento do
“movimento conservador legal” nos Estados Unidos é um dos “sucessos” do
catolicismo de direita.
Em seu discurso de
posse, Trump se apresenta
como o escolhido de Deus para implementar seu plano nos Estados Unidos.
Isso não é de todo
uma novidade, mas agora Trump é o messias de um deus nacionalista e
exclusivista, o que faz com que até mesmo uma determinada ideia de Deus seja
subjugada a um projeto político de uma forma mais perigosa do que no passado. O
discurso religioso na política estadunidense era, por definição, inclusivo
(talvez de maneira hipócrita), também entre os republicanos, pelo menos
até G.W. Bush. Não é mais assim. E é um exclusivismo não doutrinal ou
confessional, mas racista e nacionalista. É um país diferente e uma religião
estadunidense diferente. O problema é que mesmo o catolicismo liberal e
progressista não pode desmentir o “sonho americano”. Por exemplo,
muitos católicos latinos de imigração recente votaram em Trump, mais do que se
esperava.
·
Trump
diz estar pronto para ir pegar e prender os imigrantes “ilegais” até dentro das
igrejas. Uma contradição com esse papel messiânico?
Não apenas uma
contradição, mas também uma violação de uma tradição e de uma prática jurídica
muito antiga, aquela de considerar as igrejas como invioláveis. Obviamente, a
questão da relação entre moral
religiosa e política é
complexa. Mas o que chama a atenção, além do conteúdo das políticas
anti-imigrantes em
si, é a linguagem violenta e as imagens usadas para propagá-las.
·
Nos
últimos dias, com o sermão da bispa Mariann Budde, também se tornou visível a
outra igreja, solidária e atenta aos direitos. Como avalia o apelo à “piedade”?
Observo que,
durante a semana inicial do segundo mandato, a linguagem mais bergogliana para
abordar pessoalmente a presidência Trump, a linguagem da misericórdia, foi
usada por uma bispa protestante, e não por aqueles que representavam
a Igreja Católica.
Fonte: Por Giovanni
Panettiere, em QN /Il Manifesto- tradução de Luisa Rabolini.
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