quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Trump, o homem da providência e os (inquietantes) silêncios da igreja estadunidense

Pode dormir sonos tranquilos, de fato abençoados, Donald Trump. Por um lado, durante a campanha, por ocasião do atentado de Butler, “o Senhor me salvou para tornar a América grande novamente”, lembrou o próprio magnata em seu discurso de posse no Capitólio. Por outro lado, uma vez de volta à Casa Branca, ele encontrou o poderoso episcopado estadunidense disposto a não criar obstáculos em seu caminho rumo à prometida era de ouro para os EUA. Desde os primeiros passos, o novo presidente, que se autodenominou o Homem da Providência - há um século, até mesmo um professor de escola primária da Romagna se celebrizou nesses termos -, pôde exibir imperturbado sua retórica agressiva, acompanhado por uma saraivada de ordens executivas que custam a se conciliar com os ditames da Bíblia sobre a qual Trump também jurou, como todo novo presidente de uma democracia estadunidense de reflexos teocráticos. Desafiando o “Não matarás” do Decálogo, restabeleceu a pena de morte federal; apesar da Sagrada Família ser a imagem imorredoura do drama dos migrantes, deu a largada às batidas direcionadas contra os imigrantes ilegais. Ontem Chicago, amanhã Los Angeles. Até mesmo escolas e igrejas não serão mais portos seguros.

E, mais ainda, insistindo na mesma tecla, The Donald cancelou o ius soli sancionado na Constituição antes que um juiz federal de Seattle bloqueasse sua ação de limpeza. Para os pobres de todos os lugares, ele depois suspendeu os bilhões de dólares em ajudas destinados ao exterior por 90 dias, surdo ao Sermão da Montanha pronunciado pelo Crucificado dos Crucificados. Por fim, a decisão de impor o binarismo sexual a todos, inclusive aos hermafroditas, mesmo que o próprio Deus, como nos lembrou um papa em 1978, João Paulo I, seja pai e mãe.

Nesse contexto bombástico de declarações e ações, no qual ao magnata deve ser creditada uma coerência bíblica, a princípio a liderança da USCCB (Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos) não foi além de um genérico lembrete de que “Cuidar de imigrantes, refugiados e pobres faz parte do próprio ensinamento da Igreja, que nos pede que protejamos os mais vulneráveis, especialmente as crianças não nascidas, os idosos e os doentes”. Nada mais, enquanto há quatro anos, quando o democrata Joe Biden entrou na Casa Branca, a mesma conferência episcopal imediatamente soltou fogos e chamas. “As políticas do novo presidente”, a estocada do então chefe dos bispos dos EUA, o arcebispo Jose Gomez, poucas horas após a posse do Comandante em Chefe, “promoverão o mal moral e ameaçarão a vida e a dignidade humana, mais gravemente em matéria de aborto, contracepção, casamento e gênero”.

No entanto, o Papa Francisco, do púlpito do programa de Fabio Fazio, Che tempo che fa - veremos se isso se repetirá no domingo, no Angelus, da janela do Palácio Apostólico – tinha apontado o caminho para o líder da USCCB, o Arcebispo Timothy Broglio. Trump ainda não havia prestado juramento (sobre a Bíblia) e Bergoglio chegou a dizer que “seria uma desgraça se ele mandasse os migrantes embora”. Dito e feito, mas a seguir firmemente o Papa em sua condenação foram (apenas) os mesmos de sempre do progressismo católico dos EUA, bem pouco relevantes nas dinâmicas internas do episcopado conservador EUA, do cardeal de Chicago Blase Cupich ao bispo dos migrantes, Mark Seitz. Até mesmo o recém-nomeado Arcebispo de Washington, Cardeal Robert Walter McElroy, em quem os cada vez mais marginalizados liberais dos EUA estão depositando suas esperanças, permaneceu em silêncio. Por sua vez, foi somente com o passar das horas que Broglio ajustou um pouco seu tom em relação às ordens executivas referentes aos migrantes e à pena de morte, definindo-os de “profundamente preocupantes”, apenas para rapidamente acrescentar que outras medidas “podem ser vistas sob uma luz mais positiva, como o reconhecimento da verdade sobre cada pessoa humana como homem ou mulher”. Um ato de equilíbrio perfeito, para dizer o mínimo. “Em comparação com quatro anos atrás, a presidência da USCCB adotou tons mais suaves em relação ao governo em exercício, Trump”, é a análise do historiador Massimo Faggioli, professor do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University, na Filadélfia, ‘foi flagrantemente ignorado que estamos diante de uma mudança no estado de direito e do sistema democrático. Há uma satisfação declarada pela revogação das políticas sobre o gênero, mas cabe se perguntar se não haveria também uma simpatia pelo tom e pelas maneiras autoritárias do novo presidente”.

Um questionamento assustador - já que se trata de homens de fé - que a Conferência Episcopal Italiana tentou dissipar até certo ponto, por seu secretário-geral, o arcebispo Giuseppe Baturi (“Trump e os migrantes? Falar assim sobre os homens é ruim”). Mas a Itália está longe, a CEI não tem competência sobre as almas além oceano. Nos Estados Unidos, a única pessoa a levantar a voz contra as políticas e os tons trumpianos, justamente em Washington, na frente do presidente dos EUA, foi uma mulher, uma bispa episcopal. Mariann Budde pediu misericórdia para gays e imigrantes. Na Rede, ela se tornou um ícone com uma auréola. Ela botou sua cara e talvez tenha salvado a cara do cristianismo estadunidense

 

¨      O desafio de Trump para a Igreja Católica durante seu segundo mandato. Por Massimo Faggioli

A nova era de Trump começou. No seu discurso de posse, um ponto que me chamou muita atenção é a afirmação dele sobre “engenharia social” ou “experimento social”: “Esta semana, vou também acabar com a política governamental de tentar fazer uma engenharia social da raça e do gênero em todos os aspectos da vida pública e privada.  Vamos forjar uma sociedade que seja daltônica e baseada no mérito. A partir de hoje, será doravante a política oficial do governo dos Estados Unidos que só existem dois gêneros: masculino e feminino. [...] E assinarei uma ordem para impedir que os nossos guerreiros sejam sujeitos a teorias políticas radicais e experiências sociais durante o serviço”.

Com certeza, muitos lutaram e colocaram muito dinheiro para que ele fosse eleito exatamente para terminar aquilo que ele chamou de engenharia ou experimento social com respeito ao tema da raça, gênero e a força policial-militar. Para os defensores de programas de inclusão social (racial e de programas sociais em favor dos pobres), do reconhecimento de relações de gênero não-binários e o controle da força bruta dos policiais e dos militares em guerra são avanços no campo de direitos humanos.

Assim, estamos diante de uma luta ou guerra que Weber chamou de “deuses”, isto é, a guerra entre duas concepções conflitantes e opostas de ser humano, de cultura, civilização e do “progresso”. Para Trump e os seus aliados pelo mundo inteiro, tudo o que significa o avanço de direitos humanos universais, – isto é, para toda a humanidade e o reconhecimento da igualdade fundamental de todos seres humanos – é engenharia social que nos levará ao desastre e o fim da civilização humana.

Esse argumento é a base do pensamento de Hayek, o principal pensador do neoliberalismo. Para ele, a intervenção do mercado, que ele chamou de “ordem espontânea”, pelo Estado de Bem Estar Social para diminuir os problemas econômico-sociais, especialmente dos pobres, seria “O caminho da servidão”, o título do livro mais famoso (1944). Uma característica do neoliberalismo contra o pensamento liberal moderno é a crítica à “pretensão do conhecimento” (o título do discurso dele no recebimento do Nobel, 1974) de resolver os problemas sociais. Isso seria a origem do mal na economia da década de 1970; isto é, o “pecado original” da sociedade moderna.

Nesse sentido, podemos dizer que a era Trump não rompe com os fundamentos filosóficos do neoliberalismo, mas é uma continuidade de uma tradição filosófico-política que começa com Nietsche e afirma que o sentido último da história e do desenvolvimento da civilização e do ser humano é a “vontade de poder”. Isto é, ser movido pelo que Paulo apóstolo chama de carne, o “espírito” animal, instintivo, de posse e domínio.

Estamos em uma luta em que a solidariedade e o reconhecimento dos direitos dos “outros” está em declínio e a da “vontade de poder”, claramente expressa em Trump e, por exemplo, em Elon Musk com seus apoios a partidos extremistas, autoritários e neofascistas.

A diferença entre os neoliberais do Wall Street e Trump é que esse tem coragem de dizer o que pensa em público. E outros bilionários que estavam na posse de Trump também estão assumindo essa postura. Afinal, para que ganhar e acumular bilhões e bilhões de dólares se não puder “tomar” o poder no mundo. O problema é que o “poder” não é uma substância, uma coisa, que a gente toma e guarda, mas é uma relação. E a única forma de sentir-se como tendo poder é agir e oprimir os subalternos e trata-los com inferiores. Só se sente com poder e “grande de novo” na medida em que oprime o pequeno. E, de novo um problema lógico, o reconhecimento do “oprimido/escravo” (Hegel) não satisfaz o poderoso porque é reconhecimento de um fraco. Daí, precisa entrar em guerra de novo, uma guerra sem fim. Até que se destrua a civilização ou o seu império seja destruído por dentro.

Em termos religioso-teológico, a guerra que vemos hoje é uma guerra entre um Deus da Guerra, ou da Onipotência e Domínio, e um Deus que reconhecer; uma guerra entre os que creem que a espiritualidade humanizadora é superar o instinto egoístico e de posse, e outros que creem que a vontade de poder sobre outros é a sua humanização.

 

¨      Massimo Faggioli: O Messias de um deus nacionalista e exclusivista”

Durante a campanha eleitoral, o aborto parecia ter se tornado um ponto fraco para Donald Trump: com o risco de afastar o eleitorado evangélico, ele se distanciou da eventualidade de apoiar uma proibição federal. Agora, no entanto, voltou ao ataque: revogou as medidas do governo Biden de proteção ao procedimento, enviando uma mensagem triunfante à Marcha pela Vida, e o Departamento de Justiça indica que limitará a perseguição àqueles que obstruem o acesso às clínicas de aborto. Paralelamente, hoje saiu a notícia de que a Suprema Corte ouvirá um caso em que os juízes poderiam decidir a legitimidade dos financiamentos públicos para as escolas religiosas, o ponto culminante de um projeto que a Corte de John Roberts parece estar engendrando há bastante tempo. Falamos sobre a “aliança” entre o fundamentalismo cristão e o governo Trump com Massimo Faggioli, professor de teologia da Villanova University, na Pensilvânia, e autor de Da Dio a Trump. Crisi cattolica e politica estadunidense (Morcelliana).

<><> Eis a entrevista.

·        Como você considera que a direita religiosa e contra o aborto exercerá sua influência no segundo mandato de Trump?

O argumento pró-vida sempre será um argumento de propaganda, e Trump prestigiará esse eleitorado, mas a verdadeira direita religiosa se converteu ao trumpismo e não tem o poder de barganha que tinha antes. Os novos oligarcas estadunidenses têm bem pouco interesse em questões relacionadas à vida. Os próprios intelectuais do movimento contra o aborto falam sobre a necessidade de recomeçar porque, culturalmente, perderam a batalha. É uma cultura pró-vida cheia de contradições gritantes. Apenas um exemplo: poucas horas depois de fazer seu discurso na Marcha pela Vida, no qual prometia defender as mulheres diante da “cultura dominante”, o vice-presidente JD Vance, católico, como presidente do Senado, deu seu voto decisivo para a confirmação de Pete Hegseth, que foi acusado por algumas mulheres (inclusive de sua família) de violências sexuais.

·        Nos últimos anos, vimos o surgimento de um cristianismo fundamentalista nos EUA, cuja “cruzada” não se limita aos direitos reprodutivos, mas também tem como alvo a comunidade LGBTQ, os direitos políticos das mulheres e a separação entre Igreja e Estado.

Existe um neotradicionalismo e um neofundamentalismo na política estadunidense desde os anos 1970-1980, mas a partir de 2000 essa onda também atingiu o catolicismo. O trumpismo beneficiou e contribuiu para uma mudança fundamental: do neoconservadorismo católico moderado durante os anos de João Paulo II e Bento XVI para algo diferente, que flerta com o radicalismo de direita e é um movimento subversivo antissistema (subversivo tanto do estado quanto da igreja). A Suprema Corte de John Roberts já havia começado, durante a presidência de Obama, a desmantelar determinadas proteções fruto dos anos do movimento dos direitos civis. Há sonhos de teocracia e de um integralismo católico a que a Suprema Corte poderia fazer concessões. O modelo declarado é a Hungria de Orban. O que desmoronou é a ideia novecentista de estado governo e instituições, diante da qual até mesmo o catolicismo liberal e progressista teve muitas hesitações.

·        De acordo com a especialista em Suprema Corte Linda Greenhouse, a peculiaridade de quase todos os seis juízes conservadores serem católicos pode ser explicada pelo fato de que, no longo ataque a Roe v. Wade (a decisão que garantia o direito ao aborto, ndr), quando os presidentes do Partido Republicano estavam sabatinado os juízes elegíveis para integrar a Suprema Corte, “o catolicismo se tornou um ‘substituto’ para a resposta que os indicados não podiam dar à pergunta que um presidente não podia fazer”: se eles estavam dispostos a revogar Roe. O que pensa a respeito?

O catolicismo era historicamente minoritário, mas não é mais - hoje é a maior igreja do país. A conquista da Suprema Corte pela cultura católica de direita por meio das nomeações dos presidentes republicanos faz parte de um movimento cultural mais amplo para reconquistar o país, diante do qual o catolicismo liberal e progressista parece não apenas derrotado, mas também desarmado.

O crescimento do “movimento conservador legal” nos Estados Unidos é um dos “sucessos” do catolicismo de direita.

Em seu discurso de posse, Trump se apresenta como o escolhido de Deus para implementar seu plano nos Estados Unidos.

Isso não é de todo uma novidade, mas agora Trump é o messias de um deus nacionalista e exclusivista, o que faz com que até mesmo uma determinada ideia de Deus seja subjugada a um projeto político de uma forma mais perigosa do que no passado. O discurso religioso na política estadunidense era, por definição, inclusivo (talvez de maneira hipócrita), também entre os republicanos, pelo menos até G.W. Bush. Não é mais assim. E é um exclusivismo não doutrinal ou confessional, mas racista e nacionalista. É um país diferente e uma religião estadunidense diferente. O problema é que mesmo o catolicismo liberal e progressista não pode desmentir o “sonho americano”. Por exemplo, muitos católicos latinos de imigração recente votaram em Trump, mais do que se esperava.

·        Trump diz estar pronto para ir pegar e prender os imigrantes “ilegais” até dentro das igrejas. Uma contradição com esse papel messiânico?

Não apenas uma contradição, mas também uma violação de uma tradição e de uma prática jurídica muito antiga, aquela de considerar as igrejas como invioláveis. Obviamente, a questão da relação entre moral religiosa e política é complexa. Mas o que chama a atenção, além do conteúdo das políticas anti-imigrantes em si, é a linguagem violenta e as imagens usadas para propagá-las.

·        Nos últimos dias, com o sermão da bispa Mariann Budde, também se tornou visível a outra igreja, solidária e atenta aos direitos. Como avalia o apelo à “piedade”?

Observo que, durante a semana inicial do segundo mandato, a linguagem mais bergogliana para abordar pessoalmente a presidência Trump, a linguagem da misericórdia, foi usada por uma bispa protestante, e não por aqueles que representavam a Igreja Católica.  

 

Fonte: Por Giovanni Panettiere, em QN /Il Manifesto- tradução  de Luisa Rabolini.

 

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