'Comi cascas de
batata do lixo e me cobri com cadáveres para não morrer', diz sobrevivente do
Holocausto
O uruguaio
Francisco Balkanyi leva no corpo a marca de uma das maiores tragédias da
humanidade.
Em seu antebraço
esquerdo, estão gravados os dígitos 186550, a identificação que lhe foi
designada pelos nazistas.
O tempo apagou
parte da tatuagem, mas os horrores do Holocausto - o genocídio de 6 milhões de
judeus durante a 2ª Guerra Mundial pela Alemanha nazista - permanecem vivos na
memória de Balkanyi.
"Éramos apenas
um número. Tive de comer cascas de batata do lixo e me cobrir com cadáveres
para não morrer", conta ele por telefone à BBC Brasil.
Balkanyi é um dos
poucos sobreviventes ainda vivos do massacre. Nesta sexta-feira, comemora-se o
Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, solenidade instituída
pela ONU em 2005.
Em um misto de
português e espanhol, ele relembra as privações e torturas pelas quais passou
com uma memória invejável, apesar da idade avançada.
Filho único de
judeus húngaros, Balkanyi nasceu no Uruguai em 3 de outubro de 1928, mas se
mudou para a Europa com os pais, quando tinha apenas um ano.
"Meus avós
paternos estavam com saudades do meu pai e insistiam que ele voltasse para a
Europa", diz.
De volta ao Velho
Continente, os Bakanyis se instalaram em Cakovec, uma cidade da antiga
Iugoslávia, hoje Croácia. Ali montaram uma livraria e uma gráfica - e o negócio
logo prosperou.
·
Prisão
Mas a ascensão de
regimes totalitários na Europa começou a preocupar a família, que tentou
revalidar a nacionalidade uruguaia, sem êxito. Foram impedidos pela ditadura de
Gabriel Terra (1931-1938), que então comandava o Uruguai.
Em 1940, a Hungria
se aliou ao Eixo e, em menos de um ano, invadiu o norte da Iuguslóvia com o
respaldo dos alemães. Os bens dos Balkanyis acabaram confiscados, conta ele.
A perseguição
aumentou gradativamente e, em 1944, com a Hungria dominada por completo pelas
forças nazistas, o destino dos Balkanyis foi fatalmente selado.
"Fomos feitos
prisioneiros e colocados em trens rumo aos campos de concentração",
recorda ele.
A família acabou
separada: pai e filho foram enviados para o campo de concentração de Auschwitz,
na Polônia, enquanto a mãe foi mantida em outro, em uma cidade próxima.
"Só soubemos
do paradeiro de minha mãe e que ela estava viva quando recebemos uma
correspondência dela", conta ele.
"Ela havia
conseguido subornar um guarda nazista dando-lhe as roupas de judeus que haviam
sido enviados às câmaras de gás", acrescenta.
As câmaras de gás,
aliás, foram o trágico destino de seus avós maternos. O vigor físico de
Balkanyi, então com 15 anos, o poupou do extermínio.
Mas embora a sua
saúde o tenha inicialmente salvado da morte, os cerca de 11 meses em que ficou
preso em campos de concentração - inicialmente em Auschwitz, na Polônia, e
posteriormente em Buchenwald, na Alemanha, cobraram o seu preço.
Inicialmente
forçado pelos alemães a trabalhar na construção de uma fábrica de produtos
químicos, chegou a carregar sacos de cimento de até 50 quilos. Até hoje, por
causa disso, sua mobilidade é reduzida.
"Não tinha o
que comer. À noite, quando os guardas nazistas iam dormir, eu e outros
companheiros íamos roubar as cascas de batata jogadas no lixo. Era delas que
nos alimentávamos", recorda.
·
Libertação
Em 1945, com o
avanço dos soviéticos e o prenúncio do fim da guerra, os nazistas começaram a
deixar as áreas ocupadas no leste europeu e retornar à Alemanha. Levaram
consigo os prisioneiros, no que ficou conhecido como a "Marcha da
Morte" - muitos deles não resistiram às jornadas quilômétricas feitas a pé
em meio ao inverno intenso, sob temperaturas negativas.
Enquanto o seu pai
permaneceu em Auschwitz, por causa da saúde debilitada ("Eles diziam que
iam matá-lo"), Balkanyi foi posto em um trem de transporte de carvão com
destino ao campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha.
Os vagões eram
abertos e, sem proteção, teve de desafiar a morte mais uma vez.
"Tive de me
cobrir com cadáveres de outros prisioneiros para aguentar o frio. Das 200
pessoas que estavam a bordo, acho que só 20 sobreviveram", estima.
Em 11 de abril de
1945, Balkanyi foi finalmente libertado pelos americanos.
"Durante o
tempo em que estive preso, passei de 80 para 42 quilos. Era só pele e osso. Se
os americanos tivessem demorado mais 15 dias, teria morrido", diz.
Livre, ele voltou a
Cakovec, onde, miraculosamente, reencontrou o pai e a mãe - a família, uma das
poucas a ter sobrevivido ao Holocausto, havia combinado de voltar à cidade se
escapasse com vida do genocídio.
Sem dinheiro e com
a Europa devastada pelo conflito, os três conseguiram voltar ao Uruguai em 1948
com a ajuda de um parente.
Em Montevidéu,
Balkanyi conheceria a futura mulher, Rita, com quem teve três filhos. Ali
dedicou-se ao comércio e teve duas fábricas de roupas.
·
Mudança
para o Brasil
Tudo corria bem,
quando em meados dos anos 60, decidiu se mudar com toda a família para o
Brasil, preocupado com o totalitarismo que avançava no Uruguai.
"Tinha um
amigo que morava aqui (São Paulo) e me convidou para vir. Não queria passar
novamente pelo que passei", recorda.
Hoje com seis netos
e quatro bisnetos, Balkanyi diz estar preocupado com a ascensão do neonazismo
no Brasil.
Uma reportagem
recente da BBC Brasil mostrou que a polícia civil vem detectando uma maior
movimentação de grupos de caráter neonazista em São Paulo nos últimos meses.
Segundo
especialistas e policiais, entre as possíveis causas para essa tendência estão
o cenário político no Brasil, o fortalecimento de partidos conservadores e de
extrema-direita no exterior e a situação de desemprego e instabilidade
econômica.
"Tenho 88 anos
e não vou viver para sempre. Por isso, é muito importante continuarmos a contar
essa história para que o mundo nunca se esqueça do que aconteceu", diz
Balkanyi, que tem material suficiente, entre memórias e anotações, para escrever
"um ou dois livros, mas me falta a habilidade dos grandes
escritores".
¨ 'Colhíamos grama para minha mãe fritar com gordura',
diz sobrevivente do Holocausto radicado no Brasil
Em outubro de 1941,
tropas aliadas aos nazistas chegaram à cidade de Moinești, na Romênia, onde
ele, seus pais e seis irmãos ─ todos judeus ─ viviam.
Em poucas horas, a
família foi despojada de todos os seus bens.
"Até então,
tinha uma infância feliz e tranquila. Estudávamos, íamos à sinagoga e
brincávamos como todas as crianças. O convívio com os católicos era
pacífico", recorda ele, atualmente com 85 anos, em entrevista por telefone
à BBC Brasil.
"Mas o nazismo
ganhava força na Europa e, quando as tropas chegaram à cidade, não tardou para
perdemos tudo", acrescenta.
Radicado em São
Paulo desde a década de 1950, Strul é sobrevivente do Holocausto, como ficou
conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como homossexuais,
ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a 2ª Guerra Mundial, a
partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado pelo partido
nazista.
Foi o maior
genocídio do século 20 - uma ferida aberta que o tempo ainda não curou. Isso
talvez explique a riqueza de detalhes com que Strul ainda relata sua
experiência, pontuada por um sotaque ainda carregado, apesar da idade avançada.
"Meu pai tinha
uma loja de cereais. Perdemos tudo. Nos tiraram o comércio e a nossa casa.
Minha família, assim como todos os judeus da cidade, foi levada a uma cidade
próxima, Bacău, onde nos confinaram em um gueto", diz.
<><> Fome
Ali todos os judeus
viviam em barracas de madeira - cobertas com folhas de zinco. Privados de sua
liberdade, eram obrigados a ostentar uma estrela amarela nas roupas como
identificação.
"No verão, era
insuportavelmente quente. No inverno, um frio glacial", conta.
A fome também era
uma constante.
"A migalha de
pão significava a vida ou a morte. Colhíamos grama para minha mãe fritar com
gordura de ganso. Foi assim que sobrevivemos", diz.
"Meu irmão
caçula, no entanto, não conseguiu enfrentar as condições adversas e morreu aos
dois anos."
<><> 'Providência
divina'
Por uma
"providência divina", como recorda Strul, a família não foi deportada
para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, um dos principais locais
de extermínio de judeus durante a guerra.
Em 1944, a Romênia
foi libertada por tropas soviéticas, mas o pesadelo ainda não tinha terminado.
"Voltamos à
nossa cidade-natal e nossa casa estava completamente depenada. Tudo nos foi
roubado", lamenta.
Com muito esforço,
a família reconstruiu pouco a pouco a vida que tinha antes da guerra.
Mas em 1947 os
comunistas chegaram ao poder na Romênia. Propriedades particulares foram
nacionalizadas e, de patrão, o pai de Strul se tornou empregado.
"Quando
tentávamos recomeçar do zero, mais uma vez nos tiraram tudo."
Em 1950, a família
decidiu fazer as malas para um Estado recém-fundado, Israel, já que um dos
irmãos de Strul havia emigrado para o país quatro anos antes e lutado na guerra
de independência.
<><> Mudança
para o Brasil
Mas o futuro
parecia mais promissor fora do Oriente Médio.
Por meio de um
conhecido da família, que já havia se estabelecido no Brasil, os Strul
embarcaram em um navio rumo a uma terra então totalmente desconhecida.
"Foi uma
viagem longa, na 3ª classe do navio, porque a 4ª não existia", brinca
Strul. "Chegamos com uma mão na frente e outras atrás, não falávamos a
língua e conhecíamos muito poucas pessoas."
O recomeço foi
difícil. Sem educação formal, Strul começou a trabalhar como ambulante,
vendendo roupas porta em porta.
Anos depois, já
estabelecido, abriu sua loja de móveis na Zona Norte de São Paulo, de onde
tirou o sustento para criar seus quatro filhos ("todos com formação
acadêmica", destaca). Strul também tem dez netos.
Hoje aposentado,
vive com a esposa Manuela, de 74 anos (o casal se conheceu em um baile de
Carnaval no Rio de Janeiro em 1969), vai à sinagoga pela manhã e dedica-se a
manter viva a lembrança do Holocausto por meio de palestras em escolas e
eventos.
"Quero muito
agradecer ao povo brasileiro por nos ter acolhido. Devo tudo a esse país. Amo
este lugar."
Strul também diz
ter tentado, por diversas maneiras, reaver a propriedade da família na Romênia,
ainda sem sucesso.
"Há 20 anos,
tento receber uma indenização, mas não consigo. Tenho até hoje a escritura da
minha casa, mas minha casa continua confiscada".
¨ 'Sua mãe está morta; se gritar, morremos todos': a fuga
de uma sobrevivente do Holocausto
Ariella Pardo Segre
tinha apenas três anos quando foi carregada nas costas por um contrabandista de
cigarros, que tinha sido pago com um anel de noivado pelo serviço. Era setembro
de 1943, o Sol já havia se posto e fazia muito frio. Ao seu lado, em um grupo
de refugiados judeus, caminhavam sua mãe, seu pai e seu irmão de sete anos. A
jornada da família judia italiana atravessando os Alpes rumo à Suíça por causa
da perseguição nazista começava.
A estrada era
estreita e todos seguiam em fila indiana em absoluto silêncio. Foi quando, de
repente, sua mãe, Iris, escorregou e desapareceu em meio à escuridão. Ariella
gritou. Um grito agudo rapidamente abafado pelas mãos de um desconhecido, que
lhe tapou a boca. Ariella perdeu os sentidos e desmaiou. O grupo decidiu
continuar o percurso.
"Era muito
pequena. Mas essa lembrança nunca se apagou da minha memória. Me reanimaram e
quando abri os olhos, vi uma porção de gente em volta de mim. Me disseram 'cala
a boca, sua mãe está morta; se você gritar, morremos todos", conta por
telefone Ariella, hoje com 78 anos, à BBC News Brasil. Naturalizada brasileira,
ela é sobrevivente do Holocausto, como ficou conhecido o assassinato em massa
de milhões de judeus, bem como cidadãos de etnia polonesa, soviéticos,
homossexuais, ciganos e prisioneiros de guerra de várias nacionalidades, além
de Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a Segunda Guerra Mundial, a
partir de um programa de extermínio sistemático executado pelo Partido Nazista.
"Por muito
tempo, tive muita dificuldade de falar sobre isso."
A travessia
terminou com a família reunida. A mãe de Ariella fora encontrada viva e levada
por outro grupo de refugiados até a fronteira com a Suíça. Naquele país, os
Pardo estabeleceriam moradia até o fim da Segunda Guerra Mundial.
A fuga foi o
estopim de um tormento que teve início anos antes, em 1938, quando as chamadas
"leis raciais" foram promulgadas na Itália. O governo fascista,
comandado por Benito Mussolini (1883-1945), instituiu um regime de segregação.
Judeus eram considerados "perigosos", e muitos foram obrigados a
viver sob restrito controle policial. Os pais de Ariella, ambos professores,
perderam o emprego público.
Ainda assim, por
mais difíceis que fossem as condições, a maioria não corria perigo de vida,
pois Mussolini não acatou a exigência de Hitler de dar início às deportações.
Mas tudo mudou
radicalmente em setembro de 1943, quando a Itália se rendeu aos Aliados.
Mussolini é deposto pelo Grande Conselho Fascista por solicitação do rei
Vitorio Emanuel 3.º e detido. Tropas nazistas invadem, então, o país, dominando
rapidamente grande parte do norte e do centro. O ex-líder italiano é resgatado
da prisão em uma operação idealizada por Adolf Hitler (1889-1945). A região se
torna uma república neo-fascista, com um governo fantoche de Mussolini. Na
prática, eram os nazistas quem estavam no poder.
O pesadelo começava
para os judeus que viviam nas zonas ocupadas pelos alemães, pois os nazistas,
com a ajuda dos fascistas, começam a enclausurá-los e deportá-los. Dos 40 mil
judeus que viviam na Itália, em 1943, 8 mil foram assassinados pelos nazistas.
Os Pardo viviam em
Bolonha, no norte da Itália, o principal eixo ferroviário do país, de onde mais
tarde partiriam trens rumo a campos de concentração e extermínio nazistas.
Ainda que tivessem perdido o emprego e passado por privações, não temiam que
fossem obrigados a deixar para trás tudo o que haviam construído. Mas um
vizinho os alertou do que estava para acontecer.
"Um vizinho
nosso, Alfredo Giommi, nos avisou sobre a chegada dos nazistas. Fugimos com a
roupa do corpo e com dinheiro que tínhamos no bolso", conta Ariella.
·
Refugiados
na Suíça
Após o percurso
pelos Alpes, a família convenceu as autoridades suíças a permitir sua entrada.
Chegou a um campo de refugiados e acabou dividida. As crianças foram separadas
dos pais: Ariella passou a viver junto com outras meninas. O irmão dela, Lucio,
em outro acampamento.
"Havia
crianças de todas as nacionalidades, e eu não conseguia me comunicar com
ninguém. Todas as vezes que minha mãe vinha me visitar, eu chorava. Era como se
fosse muda. Só falava italiano e não entendia o que as outras meninas, em sua
maioria francesas, falavam", diz.
Os pais dela,
também separados, realizavam trabalhos braçais para sobreviver.
"Meu pai
trabalhava como marceneiro, cortando lenha, e minha mãe, como cozinheira.
Lembro-me do dia em que fui visitá-la e ela estava cortando batatas."
A vida dos Pardo no
campo de refugiados durou até o fim da Guerra, em 1945, quando a Itália foi
libertada e caminhões dos Aliados levaram os refugiados de volta a seus países
de origem.
Ariella tinha cinco
anos quando a família voltou à Bolonha. Mas o sufoco ainda não tinha terminado.
A casa onde viviam estava ocupada por novos moradores.
"Chegamos à
nossa casa e os novos moradores nos disseram que a tinham recebido do governo
italiano. E que não éramos mais bem-vindos ali. Lembro-me de que a biblioteca
do meu pai, um homem muito culto, havia sido completamente destruída",
diz.
A família foi,
então, morar novamente em um campo de refugiados, montado em uma praça de
Bolonha. Poucos dias depois, Giommi, o vizinho que os havia alertado sobre a
chegada dos nazistas dois anos antes, os levou para viver em seu apartamento.
Ali, eles passaram a morar em um quarto até conseguir voltar à sua antiga casa,
por meio de uma ordem judicial.
"Para quem
dormia no chão, dormir finalmente num quarto era uma maravilha. Ainda mais com
um beijo da minha mãe", diz.
"Giommi foi um
homem muito importante em nossas vidas. Não só nas nossas, mas nas de muita
gente", diz. Alfredo Giommi foi homenageado como 'Justo entre as Nações',
um reconhecimento a todos os não judeus que durante a Segunda Guerra Mundial
salvaram vidas de judeus perseguidos pelo regime nazista.
·
Mudança
para o Brasil
Os pais de Ariella
voltaram a dar aulas, e a família retomou aos poucos a vida interrompida por
causa da guerra.
Em 1958, de férias
nos Alpes, ela conheceu Marco Segre, um judeu italiano que havia fugido para o
Brasil com os pais em 1938, quando as leis raciais foram instituídas, e que
estava visitando parentes na Itália. Os dois se apaixonaram.
O casal mantém
correspondência por dois anos até Segre regressar à Itália para se casar com
Ariella. Os dois voltaram juntos ao Brasil e se estabeleceram em São Paulo,
onde Ariella passa a dar aulas de italiano. Tiveram quatro filhos, oito netos e
dois bisnetos. Marcos morreu há dois anos.
Aos 78 anos,
Ariella está aposentada das salas de aula, mas continua a trabalhar em uma
entidade judaica.
"Considero que
tenho uma obrigação moral de continuar contando essa história para que o mundo
nunca se esqueça dela", diz.
Fonte: BBC News
Brasil
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