quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sobrevivendo ao Holocausto: memórias angustiantes que não podem ser esquecidas

É uma manhã fria de agosto da cidade de São Paulo, mas o clima no terceiro andar do prédio do Memorial da Imigração Judaica, no bairro do Bom Retiro, é de inquietação. Ali, como ocorre praticamente todos os dias da semana, estudantes de escolas públicas paulistanas participam de visitas guiadas às instalações do Memorial do Holocausto e surpreendem-se com os relatos de como o regime nazista alemão exterminou sistematicamente seis milhões de judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1930 e 1945.

Localizado no prédio da antiga sinagoga do Bom Retiro, a primeira de São Paulo, de 1912, o Memorial do Holocausto foi inaugurado em 2017 e é uma das várias iniciativas promovidas por brasileiros que visam manter vivas as memórias de um dos períodos mais brutais e dolorosos da história da humanidade. Além do memorial, existem no Brasil livros, documentários e um banco de dados que compila relatos dos sobreviventes do Holocausto.

Com um acervo interativo e audiovisual, repleto de fotografias, vídeos e instalações, o memorial traz de forma didática a história do Holocausto e do antissemitismo, e as escolas podem agendar visitas gratuitamente. O museu fica no terceiro andar do Memorial da Imigração Judaica, entidade que traz ao público um amplo acervo documental que ajuda a traçar a identidade dos judeus estabelecidos no Brasil.

Curador do Memorial do Holocausto, o pesquisador e fotógrafo Luiz Rampazzo acredita em um desconhecimento geral por parte da sociedade brasileira do que foi o genocídio dos judeus na Europa nazista. “Precisamos disseminar didaticamente os horrores do Holocausto. Não temos o objetivo de aterrorizar os visitantes, mas, sim, de tocá-los”, diz ele. “Ainda existem pessoas que negam o Holocausto, e o Memorial traz dados históricos e estudos de centenas de pesquisadores para mostrar o contrário.”

<><> Retratos, palavras e memórias

Além de ser curador do memorial, Luiz Rampazzo retratou 17 judeus que residem no Brasil no livro Sobreviventes (Maayanot, 2018), cujos depoimentos foram colhidos pelo palestrante Marcio Pitliuk. Atualmente, Rampazzo e Pitliuk trabalham na produção de um documentário sobre a história de vida desses sobreviventes. A dupla estima que existam cerca de 100 sobreviventes do Holocausto vivos no Brasil, mas não é possível precisar o número exato.

“Sobrevivente é todo mundo que escapou do Holocausto, não precisa ter necessariamente ido para campos de concentração”, explica Marcio Pitliuk, judeu e importante estudioso do Holocausto. Pitliuk também produziu, em parceria com o cineasta Caio Cobra, um dos documentários mais impressionantes e sensíveis sobre o tema: Sobrevivi ao Holocausto, de 2014.

No longa-metragem, os dois diretores narram a trajetória do judeu polonês Julio Gartner, sobrevivente de cinco campos de concentração, dentre eles Auschwitz, Mauthausen e Ebensee. Julio tinha 15 anos de idade quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, em 1º de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial. Em Sobrevivi ao Holocausto, os diretores levam-no de volta a alguns dos lugares onde viveu momentos de terror. “Apesar de ter sofrido tanto, ele não se mostrava amargurado, era uma das pessoas mais positivas que eu conheci”, conta Caio Cobra. Julian Gartner mudou-se para o Brasil depois da guerra, em 1947, e morreu em 2018, aos 94 anos.

“Essas pessoas são testemunhas do que aconteceu, mas estão morrendo”, comenta Marcio Pitliuk, dizendo que tornou-se sua missão disseminar o Holocausto. “Podem até negar que isso ocorreu, mas esses sobreviventes estão aqui, são uma evidência do terror, e essa memória tem de ser preservada.”

O cineasta Caio Cobra prefere olhar para os sobreviventes não como judeus que resistiram ao Holocausto, mas como pessoas que sobreviveram. “A partir do momento que o outro não faz mais parte de você, e você quer segregar, o medo toma conta. O medo e a ignorância levam à raiva, e para a raiva se transformar em intolerância é muito fácil”, opina Cobra. “Quando se diz que a outra pessoa é responsável pelos seus problemas, isso pode virar uma onda de ódio muito rapidamente.”

<><> Testemunhos registrados

São Paulo abriga a única base de dados dedicada a registrar os testemunhos de sobreviventes do Holocausto e refugiados do nazismo radicados no Brasil. O Arquivo Virtual sobre o Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah) foi criado em 2006 pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e conta com milhares de documentos que narram a histórias dos judeus que resistiram a guetos, campos de extermínio e concentração, e se refugiaram no Brasil depois de 1933.

E temos uma dívida histórica com os judeus: segundo Tucci Carneiro, pelo menos 16 mil vistos foram negados pelo governo brasileiro aos judeus durante as administrações dos presidentes Getúlio Vargas (1930-1945) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). As chamadas circulares secretas antissemitas foram enviadas para as embaixadas brasileiras visando dificultar ou mesmo impedir a vinda de refugiados de origem judaica. Os documentos continuaram a ser emitidos mesmo após os governantes terem tomado conhecimento do Holocausto, e continuou no pós-guerra, até 1950.

O Arqshoah registrou, até 2018, mais de 350 testemunhos em áudio e vídeo, publicados em quatro volumes da coleção Vozes do Holocausto (Editora Maayanot), e cerca de 3 mil fotografias selecionadas dos arquivos pessoais do sobreviventes. “É de extrema importância preservarmos e divulgarmos os vestígios desse genocídio que criou levas de desenraizados que, ainda hoje, não conseguem lidar com sua história”, diz a historiadora.

Maria Luiza Tucci Carneiro defende que o registro dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto e dos refugiados do nazismo deve ser assumido como uma missão de memória por todas as nações ditas civilizadas. “A reconstituição das histórias de vida daqueles que vivenciaram os atos genocidas praticados pela Alemanha nazista e colaboradores servem de alerta para os perigos representados, neste século 21, pelos grupos de extrema-direita que, apesar do Holocausto, endossam versões revisionistas e negacionistas da história”, observa ela, por e-mail. “A ausência desses indícios pode gerar fissuras que favorecem os silêncios, a negação e a reabilitação de políticas antissemitas.”

Para Luiz Rampazzo, o ódio, a intolerância e o racismo, algumas das bases do antissemitismo, ainda existem na sociedade, talvez de forma mais velada. “Temos observado a expansão do ódio contra minorias em diversos países”, analisa ele. “O discurso de ‘respeitar o próximo’ não modificou o que as pessoas realmente sentem. Nosso trabalho não é apenas uma homenagem aos sobreviventes, mas um instrumento para modificar a mentalidade dos jovens e evitar que horrores como o Holocausto ocorram de novo.”

¨      Quantos sobreiventes do Holocausto ainda estão vivos e onde residem

Holocausto é um fato histórico fartamente registrado e definido pela Enciclopédia do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (USHMM) como “a perseguição e o assassinato sistemáticos de aproximadamente seis milhões de judeus europeus” por ordem do regime nazista alemão e por todos aqueles que colaboraram com ele a partir de 1933 e durante a Segunda Guerra Mundial.

  Para que os horrores vividos neste período nefasto da história, que começa com a ascensão do ditador Adolf Hitler ao poder, na Alemanha, jamais sejam esquecidos ou normalizados, o Dia Internacional de Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto é celebrado anualmente em 27 de janeiro. 

Criada através de uma resolução da da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em 2005, a efeméride busca "mobilizar a sociedade civil para a educação e a lembrança do Holocausto", a fim de evitar futuros genocídios.

<><> Quantas pessoas morreram no Holocausto? 

Dentre as mais de 6 milhões de pessoas mortas violentamente em campos de concentração, fuzilamentos, câmaras de gás, através de torturas e espancamentos, ou por falta de comida, ação do frio e de doenças – entre outras causas conhecidas – havia também uma uma parcela de não-judeus que foram “deslocados, perseguidos ou discriminadas devido às políticas raciais, religiosas, étnicas, sociais e políticas dos nazistas e seus colaboradores entre 1933 e 1945", explica o Museu Memorial do Holocausto. 

Apesar dos judeus serem o alvo prioritário do antissemitismo nazista, o total de perseguidos incluia ainda homens homossexuais ou bissexuais; civis acusados pelo governo nazista de “resistência” ao regime ou de “atividade partidária" distinta da que estava no poder; estrangeiros que viviam na Alemanha e passaram a ser considerados "criminosos profissionais"; pessoas negras: portadores de deficiência; prisioneiros de guerra de origem soviéticos; romanis (chamados de “ciganos”); além de Testemunhas de Jeová, detalha a Enciclopédia do Holocausto.

<><> Existem sobreviventes do Holocausto até hoje? Onde eles vivem?

Uma recente e vasta pesquisa publicada em 23 de janeiro de 2024 e realizada pela Conferência sobre Reivindicações Materiais Judaicas contra a Alemanha (ou Claims Conference, entidade judia sem fins lucrativos) indica que – até esta data – existiam 245 mil sobreviventes do Holocausto ainda vivos. 

A investigação é considerada a mais atualizada e completa sobre o assunto, segundo a rede de comunicação pública alemã Deutsche Welle em um artigo publicado online. Os dados também mostram que estas pessoas estão espalhadas por 90 países, sendo que quase metade (49%) vive em Israel. Outros 18% estão na Europa Ocidental (como na França, por exemplo, com 21.900 pessoas), 16% nos Estados Unidos e 12% em países da antiga União Soviética. 

 ”Na América do Sul e no Caribe vivem cerca de 700 sobreviventes, sendo 300 deles no Brasil e 200 na Argentina”, destaca a reportagem da DW. 

Como era de se esperar, a maioria daqueles que escaparam vivos do regime nazista já é bastante idosa e tem, em média, 86 anos de idade. Cerca de 20% dos sobreviventes já passaram dos 90 anos e o número de mulheres vivas (61%) é maior do que o de homens (39%).

O estudo também indicou que 96% destes sobreviventes eram crianças quando os horrores ordenados por Hitler estavam sendo impostos. "Quase toda a atual população de sobreviventes era criança na altura da perseguição nazista, tendo resistido a campos, guetos, fugas e vidas na clandestinidade", diz o estudo.

Antes disso, as estimativas de pessoas que escaparam do Holocausto ainda restantes no mundo variavam muito e dependiam de uma definição mais precisa do que seria um sobrevivente

Neste sentido, o Memorial do Holocausto delimita como sobreviventes “todas as pessoas, judias ou não judias, que foram deslocadas, perseguidas ou discriminadas devido às políticas raciais, religiosas, étnicas e políticas dos nazistas e seus aliados entre 1933 e 1945”. Também inclui ex-internos de campos de concentração, guetos e prisões, e aqueles que se refugiaram ou estiveram escondidos durante esse período.

 

¨      'Fugimos só com a roupa do corpo', lembra sobrevivente do nazismo radicada no Brasil

Era 9 de novembro de 1938 e Margot tinha apenas seis anos. Naquele dia, nazistas lançaram um violento ataque coordenado contra lojas, edifícios e sinagogas judaicas — a chamada 'Noite dos Cristais', como ficou conhecido o episódio devido aos pedaços de vidro partidos espalhados pelas ruas.

"Fomos dormir e, de repente, escutamos estrondos horríveis, mas não sabíamos o que estava acontecendo. No dia seguinte, nos demos conta da tragédia. Eles (os nazistas) queriam acabar com os judeus definitivamente", conta ela à BBC News Brasil por telefone.

Margot, que vive no Brasil desde a adolescência, fala pausadamente e não tem sotaque. Com uma memória impecável, ela é testemunha ocular dos horrores que culminariam no Holocausto — como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como homossexuais, ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a 2ª Guerra Mundial, a partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado pelo partido nazista de Adolf Hitler.

Ela e seus pais, todos judeus, conseguiram fugir da Alemanha rumo à América do Sul pouco antes da eclosão do conflito.

Mas nem todos tiveram a mesma sorte. Grande parte de seus parentes próximos, incluindo os oito irmãos de seu pai, foi enviada a campos de concentração e assassinada.

<><> Infância

Apesar de ter deixado a Alemanha ainda muito pequena, Margot consegue se lembrar de muitos episódios marcantes.

Nascida em uma família de classe média, seu pai, polonês, era comerciante e sua mãe, alemã, dona de casa.

Ela vivia uma infância feliz, conta, mas tudo mudou quando os nazistas chegaram ao poder. A perseguição contra judeus e outras minorias ganhou força e seus direitos passaram a ser gradativamente suprimidos.

"Lembro-me de uma vez que meu pai me levou ao kindergarten (jardim de infância) e havia uma placa que dizia "Juden Verboten" ("Proibidos a Judeus")", conta.

Depois da Noite dos Cristais, os nazistas também começaram a perseguir e deter homens judeus.

"Uma amiga mais velha da minha mãe, cujo marido havia sido levado pelos nazistas, lhe avisou que meu pai tinha que fugir", diz.

"Eles bateram então na porta da minha casa. Minha mãe mentiu, dizendo que não sabia do paradeiro do meu pai. No dia seguinte, eles (nazistas) voltaram. Revistaram tudo e deixaram uma bagunça tremenda. Meu pai acabou se escondendo na casa da minha tia", acrescenta.

Cabia à pequena Margot, portanto, ser o elo de comunicação entre seus pais.

"Se meu pai fosse pego, ele seria preso. Eu andava por aquelas ruas tenebrosas com todos os vidros quebrados, fumaça… terrível. Minha mãe sempre me dizia para eu não falar com ninguém. Realmente, não falava", diz.

Com a vida na Alemanha se tornando insustentável para os Rotstein, o pai de Margot decidiu que era hora de deixar o país. E conseguiu vistos para o Paraguai, Bolívia e Brasil.

"Naquela época, ninguém conhecia a América do Sul", lembra.

<><> Fuga

Mas a jornada rumo à terra desconhecida seria repleta de desafios.

"Fomos à estação para pegar o trem à França e os nazistas nos tiraram todos os nossos pertences. Até uma bonequinha minha. Fugimos só com a roupa do corpo", conta.

"Na fronteira, agentes pararam o trem e obrigaram todos os homens a desembarcar. As mulheres com as crianças permaneceram. O trem já estava a ponto de partir e não havia sinal do meu pai. Foi quando os soldados franceses jogaram alguns de volta dentro do trem, incluindo meu pai. Ele se salvou. Mas muitas mulheres foram deixadas sozinhas com seus filhos", acrescenta.

Em Marselha, na França, a família embarcou em um navio "de terceira categoria", conta Margot, mas não sabia aonde iria.

"Foi uma viagem longa, de mais ou menos três meses. Homens e mulheres dormiam separados, em beliches", diz.

"Meu pai tinha um visto para o Brasil, para o Paraguai e para a Bolívia. Mas tanto o Brasil, de Getúlio Vargas, quanto o Paraguai impediram a entrada de judeus. O único país a nos deixar entrar foi a Bolívia e sou grata a eles até hoje", acrescenta.

Na Bolívia, os Rotstein ficaram até 1947. Foi quando decidiram mudar-se novamente, dessa vez para o Brasil.

"Mas era outra época e não tivemos problemas para emigrar".

No Brasil, Margot casou-se com Ignacio, já falecido, com quem teve três filhos. Hoje avó de quatro netos, ela dedica-se a preservar a memória do Holocausto.

"Sou muito empenhada nisso. É algo que não podemos esquecer. Quero que essa memória não desapareça. Hoje há muita desinformação, gente que diz que o Holocausto não existiu".

Em 1994, Margot viajou a Berlim com outros sobreviventes para ser homenageada e deve receber uma comenda do governo alemão nos próximos meses — a cerimônia foi postergada por causa da pandemia de covid-19.

 

Fonte: National Geographic Brasil/BBC News Brasil

 

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