Adição: é hora de enxergar o contexto
social
Por muito tempo, a
adição tem sido amplamente considerada como uma doença crônica do cérebro – uma
visão que moldou tanto a compreensão médica quanto algumas das políticas
públicas voltadas ao tratamento de usuários de drogas. Essa descoberta
científica foi, de fato, um avanço, pois ajudou a diminuir o estigma de pessoas
com problemas com essas substâncias.
Mas, segundo uma
instigante reportagem publicada no jornal estadunidense New York Times, é
preciso olhar para o tema por outros ângulos, se quisermos tratar dos males das
drogas de forma mais efetiva. Os fatores sociais e ambientais, além da
genética, são decisivos para definir o futuro da pessoa que começa a usar
drogas. Uma mudança de paradigmas pode trazer transformações importantes –
inclusive para a realidade brasileira, cheia de desigualdades estruturais que
aumentam a vulnerabilidade ao uso de substâncias.
A visão científica
mais tradicional, que define a adição como doença crônica no cérebro, ganhou
força a partir dos anos 1990. Segundo as descobertas dessa época, o uso
repetido de drogas altera permanentemente o funcionamento cerebral, levando a
um estado de compulsão e recaída. Essa teoria ajudou a desestigmatizar a imagem
dos usuários de drogas, ao promover a ideia de que essas pessoas não eram
simplesmente “fracas’ ou “imorais” – estavam, na verdade, lidando com uma
doença de longo prazo.
Mas ao mesmo tempo em
que essa abordagem trouxe avanços, como a ampliação do acesso a tratamentos
baseados em evidências científicas, ela também reduziu a complexidade do
fenômeno da adição, ignorando fatores fundamentais como ambiente familiar,
condições de vida e saúde mental. Foi por isso que pesquisadores começaram a
defender que o uso de drogas deve ser entendido de maneira mais integrada.
Ao invés de ver a
adição exclusivamente como um “problema do cérebro”, novas pesquisas sugerem
que é preciso considerar as razões que levam as pessoas a usar drogas. Em
muitos casos, o uso de substâncias surge como uma tentativa de lidar com
situações insustentáveis: abuso doméstico, transtornos mentais não
diagnosticados, solidão e a falta de oportunidades sociais e econômicas. Em
comunidades marginalizadas, onde as opções de emprego e educação são limitadas,
as drogas muitas vezes surgem como uma forma de escape, o que torna o ambiente
social um fator determinante.
Para além do ambiente,
a genética e as circunstâncias familiares também influenciam a predisposição de
uma pessoa para o uso de drogas. Famílias com histórico de dependência aumentam
significativamente as chances de que seus membros recorram ao uso de substâncias.
A crítica ao modelo de
adição como doença crônica também aponta para uma questão crucial: rotular as
pessoas como “doentes” pode ter efeitos contraproducentes. A mensagem implícita
de que a adição é um estado fixo, do qual os indivíduos nunca se recuperarão
por completo, pode minar o otimismo e a crença na recuperação.
• Brasil: entre o punitivismo e a reforma
psiquiátrica
A epidemia de opioides
nos Estados Unidos, marcada pela alta letalidade do fentanil, trouxe à tona a
ineficácia de uma abordagem centrada exclusivamente na penalização. Embora o
Brasil enfrente desafios diferentes em termos de substâncias mais comumente usadas,
como o crack, são claras as semelhanças entre as populações afetadas –
frequentemente de baixa renda e com acesso limitado a recursos de saúde,
moradia e lazer.
Mas há outra
particularidade importante no Brasil: aqui, a saúde mental é (ou deveria ser)
regida pelos princípios da Reforma Psiquiátrica. Ou seja, pessoas com problemas
com drogas deveriam receber tratamento em liberdade, atenção integral e
comunitária, com suporte social, familiar e intersetorial. O que os
pesquisadores norte-americanos defendem já é posto em prática por aqui – e
defendido há ao menos quatro décadas.
No entanto, com o
subfinanciamento crônico do SUS, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) não é
capaz de atender a todos os brasileiros de forma desejável. O modelo
punitivista e a falida guerra às drogas permanece, em muitos lugares, como
única maneira de enfrentar esse problema de muitas faces. Espalham-se pelas
grandes cidades as chamadas “cracolândias”, em que dezenas ou até centenas de
usuários em vulnerabilidade extrema se aglomeram – em uma crise que parece não
ter fim.
À reportagem do NY
Times, o psicólogo e professor de psiquiatria da Harvard Medical School, John
F. Kelly, sustenta: as pessoas só vão deixar de usar drogas “quando há
esperança e otimismo que a mudança é possível, provável e sustentável”. Em
alguns contextos, as drogas são mais acessíveis que opções saudáveis e
recompensadoras, como educação e emprego. Nesse sentido, o Brasil se aproxima
bastante da realidade norte-americana.
Fonte: Por Gabriela
Leite, em Outra Saúde
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