Um programa
democrático para as Forças Armadas (parte 3)
Tribunais
de Justiça: A história de nosso país registra que, no período imperial,
paisanos foram julgados e incriminados por servidores fardados, decorrente de
participação em ações contestatórias e atos de rebelião. Nos primórdios da
República aconteceram perseguições aos correligionários da falecida monarquia.
Na década de 30, houve a ação do Tribunal de Segurança Nacional sobre os
comunistas de então. Durante o período ditatorial, a Justiça Militar perseguiu
civis acusados de crimes contra a segurança nacional e a ordem econômica. Desde
a redemocratização do país, os processos se baseiam no Código Penal Militar e
no Código de Processo Penal Militar. Atualmente, os fardados alegam que a retirada
da competência da Justiça Militar poderá provocar a descriminalização de
qualquer conduta cometida por civil contra as instituições militares e seus
membros.
O
STF estabeleceu que a submissão do civil, em tempo de paz, à Justiça Militar é
excepcional, que só se legitima quando a conduta delituosa ofender bens
jurídicos tipicamente associados às funções das Forças Armadas. Atente-se que,
nos últimos anos houve mais de uma centena de processos contra paisanos
acusados de crimes militares. No entanto, informações divulgadas apontam que a
Justiça castrense revela condescendência ao julgar os fardados. Segundo consta,
neste período, dos 29 processos criminais envolvendo militares, dez resultaram
na suspensão da pena e em mais de 30 casos de homicídios praticados por eles
não houve nenhuma condenação.
O
julgamento de civis por militares é um procedimento que acontece em alguns
países do mundo. Nos Estados Unidos, qualquer civil que ajude ou tente ajudar
pessoas consideradas como inimigos pode ser julgado por cortes marciais ou
comissão militar. Em Uganda, recentemente, o Tribunal Constitucional determinou
que as cortes militares não podem mais julgar civis. Em Israel, o comandante da
área ocupada tem um imenso poder legislador e autoridade judiciária sobre as instituições
e pessoas.
Nos
Estados Unidos, tal ocorrência reflete a expectativa majoritária da população.
As Forças Armadas estadunidenses recebem um carinho especial dos cidadãos, seu
prestígio perante a população é muito alto e os civis apreciam muito a adoção
de soluções militares para os problemas cotidianos. Ademais, essa nação,
consensualmente, se encontra bastante militarizada por causa dos acontecimentos
de setembro de 2001. Quanto a Israel, sabe-se que suas Forças Armadas são
consideradas as mais populares do mundo, e o país ocupa o primeiro lugar do
planeta no ranking da militarização consentida devido ao fato de estar cercado
de inimigos por todos os lados.
Observe-se,
entretanto, que em algumas nações inexiste o julgamento de civis por militares
e nem o julgamento de militares por militares, mas sim o contrário, isto é, o
julgamento de militares por civis. Tal é o caso da Holanda, que, a partir dos
anos 70 do século anterior, instituiu câmaras militares em tribunais civis com
juízes paisanos especializados ao lado da presença de um juiz fardado. Na
Alemanha, desde o fim de Segunda Guerra os atos criminosos cometidos por
soldados são julgados em tribunais criminais comuns por juízes civis e as
infrações menores se vinculam a tribunais administrativos. Tende a ser viável,
portanto, sugerir que nossos militares delituosos também venham a ser
sentenciados pelos tribunais da Justiça paisana. Para tanto é preciso que os
juízes indicados para examinar processos relativos aos fardados recebam uma
formação especializada. Se faz necessário também criar neles uma vara
apropriada e contar com a presença de um juiz militar ao lado dos juízes civis.
Liberdade
de Expressão: As Cartas Magnas dos países regidos pela democracia trazem em seu
bojo o imprescindível direito à liberdade de expressão, o qual é relativo
porque as ofensas verbalizadas por alguém contra outrem podem ser
judicializadas. Porém, ao mesmo tempo, é absoluto porquanto os indivíduos mesmo
tendo conhecimento das restrições legais e sabendo que podem sofrer impactos
por causa delas falam o que consideram que deva ser falado e arcam com as
consequências.
Tal
como já foi dito, em países europeus onde existe a figura do cidadão de
uniforme, todos os direitos atribuídos aos civis valem também para ele. Apenas
o direito de greve ainda não foi regulamentado para os fardados. No entanto a
Organização Europeia de Associações Militares e Sindicatos, desde há muito
tempo, se encontra seriamente empenhada em obter este direito. Como não poderia
deixar de ser o direito à liberdade de expressão já é garantido aos militares
que frequentemente fazem uso dele em suas reuniões sindicais, nos meios de
comunicação e em passeatas nas ruas destinadas a reivindicações e críticas,
porém em trajes civis, longe dos quartéis e fora do horário de expediente.
Nos
Estados Unidos, os militares também possuem o direito a essa exteriorização,
porém ela apresenta características próprias. A ocorrência mais notória diz
respeito à atitude da população. O elevado prestígio conferido pelos paisanos
aos fardados contribui bastante para a construção da ideia de que eles exibem
uma conduta apolítica mesmo quando exteriorizam um comportamento político.
Auxilia muito também o notório uso do mecanismo da autocontenção por parte dos
militares na área política.
Além
disso, tais manifestações se encontram devidamente regradas pelo Departamento
de Defesa, o qual estabeleceu que o militar pode emitir opinião pessoal sobre
candidatos em eleições; fazer contribuição financeira a partidos políticos;
participar de reuniões políticas, comícios, debates como espectador e não
uniformizado; colar um adesivo político em um veículo particular; usar um
distintivo político em trajes civis; assinar petições para ações legislativas
específicas; encaminhar texto ao editor de um jornal expressando opiniões
pessoais sobre determinados problemas ou candidatos; solicitar ou arrecadar
fundos, quando não estiver uniformizado e fora da base, para uma causa política
partidária ou candidato; expor sua adesão a determinado partido político, cuja
maioria pende para o lado do republicano.
Em
Israel acontece algo parecido aos Estados Unidos, porquanto os militares também
podem fazer manifestações políticas. Entretanto, neste país o prestígio dos
militares se encontra muito elevado, sendo o maior do mundo. Militares e civis
praticamente não são vistos como personagens distintos porque a prestação do
serviço castrense é bem longa e no decorrer dos anos aqueles que já serviram às
Forças Armadas retornam periodicamente para a realização de treinamentos. Além
disso os fardados estão sempre presentes em vários locais, circulam pelas ruas
e praças, fazem exposições nas escolas, comemoram as datas cívicas junto com os
paisanos e prestam inúmeros serviços à população rural e urbana. Reina no interior
dos quartéis a norma da autocontenção que permeia a escala hierárquica e
encontra respaldo no Ruach Tzahal, o código de ética rigorosamente seguido por
eles, particularmente o tópico estabelecedor de que há que se tomar um especial
cuidado para não injetar opiniões pessoais sobre questões sujeitas a
controvérsia pública de natureza política, social e ideológica.
No
Brasil a situação é bem diferente. Os regulamentos militares congruentes com o
período ditatorial do passado não possibilitam aos fardados fazerem
manifestações de caráter político-partidário. Entretanto, nossa Constituição
estabelece a garantia da livre manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato. E o Supremo Tribunal Federal já asseverou que a liberdade de
expressão se constitui em direito fundamental do cidadão, envolvendo o
pensamento, a expressão dos fatos atuais ou históricos e a crítica. Ambas as
determinações não instauram a diferença entre fardados e paisanos. Isto
significa que tais regulamentos se mostram dissonantes ao regime democrático
atual e à legislação mais elevada, necessitando então serem alterados. Tal
ajuste deve prever uma normatização da liberdade de expressão e a inclusão do
princípio da autocontenção, porquanto a distinção entre civis e militares ainda
é muito forte e persistente.
Derradeiramente,
cabe acrescentar mais dois tópicos. Um deles refere-se à atuação direta do
parlamento sobre os militares o qual aparece como um procedimento bem adequado
de submissão dos fardados aos civis. O exemplo vem dos Estados Unidos, onde o
Congresso aprova anualmente a Lei de Autorização de Defesa, que determina o
número de militares que podem permanecer na ativa e confere ao Senado a tarefa
de referendar a promoção de oficiais generais. O outro diz respeito à ida de
militares para trabalhar em órgãos do governo. Nos países democráticos eles se
dirigem apenas aos setores onde cabe a presença deles. Na Argentina, por
exemplo, a participação dos mesmos diminuiu bastante porque o fim da ditadura
retirou deles a função de defesa interna. Em nosso país eles podem atuar no
Ministério da Defesa e no Gabinete de Segurança Institucional, porém é
necessário regulamentar o período de prestação do serviço. Quanto à promoção ao
generalato a confirmação pelo Senado se mostra adequada haja vista que os
cargos mais importantes da administração pública como o de ministro do Supremo
Tribunal Federal e o de Procurador Geral da República exigem o aval desta
instituição parlamentar. Diga-se de passagem, que é harmônica às práticas
anteriormente expostas a recente proposta do ministro Lewandowski de incluir
comandantes militares em processos de impeachment.
Enfim,
é necessário ressaltar que as proposituras aqui apresentadas não são exóticas e
mirabolantes, tampouco originais e inovadoras, porquanto constituem ocorrências
bem sucedidas que vêm se manifestando em países regidos pela democracia desde
há muito tempo. Apesar desses aspectos positivos, o emprego delas nas Forças
Armadas brasileiras é uma tarefa bastante difícil devido à provável atitude de
resistência de nossos militares e da conduta de desinteresse própria dos
governantes. Note-se que apenas o cargo de ministro civil para a pasta da
Defesa foi estabelecido pelo presidente eleito, que não pretende, em hipótese
alguma, criar turbulências na caserna e cujo indicado recebeu boa acolhida em
seu interior decorrente de suas qualidades e de seu perfil conciliador.
Ademais, sua prioridade máxima é garantir a governabilidade. Cabe expor também
que a tentativa de concretizar qualquer uma delas tem que ser pautada pelo
diálogo, pela negociação, pelo convencimento e pela anuência dos servidores
uniformizados, uma vez que nenhuma atitude impositiva vai conseguir alcançar o
efeito almejado.
Fonte:
Por Antônio Carlos Will Ludwig, na Conjur
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