Gestão do SUS — o que fazer?
Mesmo levando em
consideração a conquista histórica que significa o Sistema Único de Saúde (SUS)
do nosso país, devemos ter muito claro as enormes dificuldades que significam a
sua implementação dado a nossa história de tratamento do Estado com relações de
fisiologismo, clientelismo, patrimonialismo, loteamento e privatização por
grupos e corporações organizadas, como também de um financiamento insuficiente
e equivocado e um modelo de atenção distorcido.
Assim, se por um lado
temos um sistema com significativos avanços e que tem sido de uma importância
incomensurável para toda a população brasileira, de outro há ainda gargalos que
são produtos de toda essa nossa cultura e que necessitam de um tratamento correto
e sintonizado com os princípios da Reforma Sanitária.
Neste artigo, dividido
em três partes, faço considerações sobre aspectos estratégicos da gestão do
SUS, derivadas de análises e reflexões que venho compartilhando com
profissionais de saúde do SUS, em fóruns sindicais e espaços de elaboração
política, como conferências e conselhos de saúde, realizados em diferentes
regiões do Brasil. Nesta Parte 1, abordo o modelo de atenção e o financiamento
do nosso sistema universal de saúde, as relações público-privado na saúde, as
relações de trabalho no SUS. Na Parte 2 estarão contemplados temas relacionados
com as formas de organização que vêm sendo propostas para o SUS, como a
fundação “estatal” de direito privado, o serviço social autônomo e a empresa
pública, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Nessa
parte analisarei também o caso dos hospitais federais do Rio de Janeiro.
Concluo o artigo analisando, na Parte 3, os conflitos derivados do que propôs
historicamente o movimento da Reforma Sanitária, a realidade atual da gestão do
SUS e as alternativas legais e compatíveis com a Reforma Sanitária, para
recolocar o SUS no caminho de onde não deveria ter sido desviado.
• Modelo de atenção e financiamento
A nossa prática
corrente tem sido do tratamento da doença em detrimento de ações que
possibilitem a promoção efetiva da saúde. Quando analisamos o SUS, nos seus 34
anos, após a regulamentação pelas leis 8.080 e 8.142, percebemos que apesar de
importantes avanços pontuais e de relevância e impacto no contexto
socioepidemiológico, continuamos presos a uma lógica focada nos medicamentos,
nos leitos hospitalares, medicocêntrica e mais recentemente nos exames de alto
custo.
O descompromisso com
uma efetiva e agressiva prática de promoção da saúde inclusive com ações
intersetoriais perenes e coordenadas, tem significado a manutenção de um quadro
típico de países miseráveis com incidência de moléstias que há muito não mais
fazem parte do mundo civilizado, onde a dengue, tuberculose e outros são
exemplos clássicos. Ao mesmo tempo, isso tem gerado também uma demanda cada vez
mais crescente por tratamentos cada vez mais especializados e de custos cada
vez mais elevados, colocando em xeque não só a capacidade de financiamento, mas
o próprio sistema como um todo.
Não temos programas
que possibilitem diagnóstico precoce e um acompanhamento racional e integral de
diabetes, hipertensão, oftalmologia, saúde mental, assistência farmacêutica,
oncologia, saúde bucal e outros e somos obrigados, em consequência, a arcar com
os desumanos e insustentáveis tratamentos de hemodiálise, procedimentos
cirúrgicos, transplantes, intoxicações e câncer, só para citar alguns.
Em função disso é
também fundamental alterar a forma de financiamento global do sistema,
superando a contraproducente lógica verticalizada e de pagamentos por
procedimentos – que estimula a mercantilização e a corrupção – onde a tabela de
procedimentos é o símbolo maior, passando-se a definir a proposta orçamentária
de acordo com as necessidades de cada local referenciado, pactuando-se metas a
serem atingidas e definindo os correspondentes e permanentes processos de
acompanhamento e avaliação.
Para isso a extinção
das famigeradas emendas parlamentares, poderoso instrumento de coerção,
cooptação e clientelismo político eleitoreiro nunca sintonizadas com os Planos
de Saúde e as reais e imediatas necessidades do Sistema e da população, é
absolutamente fundamental.
Assim sendo, uma
agressiva política de prevenção de doenças e promoção da saúde, de ações
intersetoriais que contemplem as áreas de segurança, transporte, educação,
emprego e renda e violência em suas mais variadas faces são fundamentais
objetivando a construção de um novo modelo de saúde coerente e sintonizado com
os ditames conceituais do nosso Sistema.
Concomitante e
paralelamente, a estruturação da Atenção Básica em todos os municípios do país
com a equipe multiprofissional plenamente valorizada, serviços de referência
para atender a demanda por ações especializadas e uma rede pública
regionalizada e hierarquizada propiciará as condições necessárias para alcançar
a universalidade, integralidade e resolutividade desejadas.
• Relação público/ privado e principal x
complementar
O Estado brasileiro
sempre teve a prática recorrente de disponibilizar o serviço de saúde ao
cliente através da contratação de terceiros, ao invés de estruturar a sua
própria rede de serviços. Esse processo, que torna a saúde a exploração de um
dos maiores negócios econômicos do país e que movimenta anualmente bilhões de
reais, foi largamente intensificado durante o período de implantação do SUS.
Isso se deveu ou porque a lógica de financiamento estabelecida via pagamento
por procedimentos comprados tornava essa opção politicamente mais rentável e
rápida, ou porque o gestor mantinha alguma relação direta com prestadores de
serviços do setor privado, uma situação que sabemos bastante comum no Sistema.
Na medida em que o
Poder Público desestruturava seus serviços especializados, criados no início do
SUS, substituindo-os por serviços privados contratados, produzia o caldo de
cultura e as condições necessárias para o estabelecimento e desenvolvimento da saúde
suplementar que tem crescido em níveis bem acima do crescimento geral do país,
beneficiada também pelo incremento da população.
Ao mesmo tempo e num
processo de autoflagelação, o SUS estimula e drena seus recursos e
profissionais especialistas para esse mesmo setor privado que se alavanca às
suas custas, seja diretamente através do seu financiamento ou indiretamente por
meio do estímulo a estruturação de serviços e da imunidade ou isenção
tributária.
Esses trabalhadores
especializados passaram então a dispor de um leque bem mais ampliado e variado
de opções para seu exercício profissional e a terem outra rotina de trabalho
baseada numa remuneração diferenciada, individualizada, mercantilizada e por procedimento
realizado, e não mais na atividade laboral em jornadas com expedientes e
plantões predeterminados.
Por essa razão esses
profissionais têm ignorado, e a continuar a atual lógica continuarão sempre a
ignorar o SUS, que será por eles utilizado exclusivamente como instrumento de
formação e afirmação profissional e de rápido retorno financeiro. Por isso têm
deixado refém o SUS e a população brasileira, se negando em muitos casos a
prestar serviços de maneira formal e de acordo com as regras estabelecidas para
a força de trabalho do Sistema.
Profissionais que
deveriam se formar para servirem a população, optam por servirem-se dela.
Preferem se organizar por meio de instrumentos de intermediação de mão de obra
ou como Pessoa Jurídica para, através deles, auferirem remuneração bastante
diferenciada e com frequência acima dos valores praticados pelo mercado. Um
mercado diga-se, que o próprio SUS fomenta, estimula e alimenta.
Dessa forma,
dramaticamente, o SUS retroalimenta diretamente a carência de determinados
profissionais na sua rede própria, enquanto se dispõe a financiar a remuneração
de forma bastante diferenciada desses mesmos profissionais através dos serviços
por eles prestados na rede privada contratada e conveniada.
Essa opção
político/econômica/ideológica tornou a população brasileira dependente e em
muitos casos totalmente refém do setor privado/contratado, principalmente nos
serviços de referência e especializados.
Isso significa na
prática o gestor admitir uma prestação de serviços que tem como norma o
estabelecimento de um limite de procedimentos a ser disponibilizado pelo
prestador, que por sua vez tem relação direta com a cada vez mais limitada
capacidade de financiamento público. Numa lógica de mercado, portanto de um
interminável debate de valores a serem praticados e honrados pelo ente público,
e de um subfinanciamento que é a regra, a população é submetida a uma crise
praticamente ininterrupta, traduzida no não-atendimento da demanda
crescentemente reprimida (em função da conjunção perversa da falta de prevenção
com os limites e tetos financeiros estabelecidos) e das constantes interrupções
nos atendimentos, motivadas pela disputa de valores e de poder.
Portanto cumpre-nos e
é lícito afirmar, que o crescimento do setor privado da saúde além dos limites
da complementariedade estabelecidos pela Constituição Federal, é incompatível
com a plena afirmação e consolidação do SUS. É impossível termos determinados
profissionais à disposição do Sistema uma vez que eles preferirão sempre a
relação mais cômoda e mercantilizada com o setor privado, bem como também
jamais teremos orçamento suficiente para financiar a compra de serviços na
insustentável lógica de mercado.
• Relações de trabalho
Com o processo de
municipalização deflagrado a partir da década de 90, os estados da Federação e
o Governo Federal praticaram uma política de absoluta desresponsabilização com
a contratação e valorização dos trabalhadores para a rede SUS. Ao mesmo tempo,
a “Reestruturação Produtiva” estimulou a precarização nas relações de trabalho
através dos baixos salários, da multiplicação de gratificações e do culto à
mercantilização e da múltipla militância, ou seja, o exercício do trabalho em
vários locais e instituições, gerando a desvinculação profissional com o
serviço.
Os municípios ficaram
sobrecarregados com a tarefa de contratação dos trabalhadores e submetidos em
consequência, a situações insustentáveis. Com as limitações financeiras e a
lógica prevalente no plano federal, passaram a estabelecer relações de trabalho
totalmente precarizadas como contratos temporários, cooperativas, código 7,
terceirizados, Pessoa Jurídica e outros.
Em consequência do
processo de mercantilização estabelecido, os gestores passaram a instituir
remunerações diferenciadas para os trabalhadores em geral, num processo que
promoveu desestímulo e falta de compromisso bastante razoável de parte
considerável do corpo de profissionais.
Ainda em consonância
com a mercantilização instituída e com a demanda crescente pela especialização,
os municípios ou foram obrigados ou simplesmente passaram a se submeter às
exigências de corporações fortemente organizadas, principalmente em cooperativas.
Premidos pela Lei de
Responsabilidade Fiscal – no nosso entendimento flagrantemente inconstitucional
em relação à saúde – ou mesmo por opção político/ideológica, como muitas vezes
ficou evidenciado, gestores realizaram um vigoroso processo de terceirização na
contratação dos trabalhadores.
Por fim, também por
opção político/ideológica e ferindo frontalmente os dispositivos
constitucionais, foi deflagrado em todo o país o processo de privatização da
Gestão e da Gerência dos serviços SUS, através das Organizações Sociais,
OSCIPS, Fundações de Direito Privado, “Parceiros privados”, Serviços Sociais
Autônomos, EBSERH e outras, que exercem seu papel com a mais ampla liberdade à
revelia dos limites estabelecidos pela legislação da gestão direta bem como dos
princípios do SUS.
Ressalte-se que a
contratação de mão de obra através de “cooperativas” bem como a entrega de
serviços públicos a administração de empresas privadas como Organizações
Sociais, OSCIPS e outros “parceiros”, são apresentadas como formas legais de
cumprimento da legislação do SUS no quesito referente à complementariedade
privada.
Na verdade, o que
acontece, se não for por má fé, é uma equivocada interpretação do Art. 24 da
lei 8.080/90 que de forma absolutamente clara estabelece que “Quando as suas
disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à
população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá
recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”.
É impossível
entendermos a intermediação de mão de obra e a terceirização da administração
dos serviços do próprio SUS, que dentre outras coisas burlam violentamente o
dispositivo constitucional do concurso o público como única forma de acesso ao
serviço público, como efetivos serviços assistenciais complementares.
De maneira
insofismável, cooperativa de trabalhador é mão de obra, força de trabalho que
deve ser contratado via concurso público, seleção pública provisória ou
contratos temporários com prazo pré-determinado como manda a legislação.
Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros privados” como administradores
de bens públicos, são gerentes/gestores que precarizam a força de trabalho e
não serviços assistenciais de saúde complementares disponibilizados no
atendimento da população, disso não há dúvidas.
Sob esse aspecto, a
mesma lei 8.080/90 estabelece nos seus artigos 17 e 18 a competência das
direções estaduais e municipais do SUS de gerirem os serviços que estão sob sua
esfera administrativa. Portanto, e é a lei orgânica do SUS que afirma isso, a
gerência dos seus serviços não pode ser delegada a terceiros.
Temos então a
conclusão de que, através de um processo pensado, coordenado e elaborado
politicamente, o SUS foi paulatinamente desconstruído, sua legislação
fartamente solapada e seus princípios violentamente desrespeitados, sempre com
o discurso fácil e oportunista da necessidade de vencer a burocracia e de dar
respostas rápidas e imediatas a população que diziam e dizem, “não pode
esperar”.
Na verdade, o que
aconteceu de fato como sempre afirmamos e hoje constatamos com sobras, é que
foi colocado em prática um projeto de transferência dos recursos financeiros e
do patrimônio do SUS para grupos políticos e econômicos e corporações privadas,
de acordo com a nossa cultura e a nossa história. Como resultado prático, e de
concreto, temos o fato da quase totalidade dos casos de corrupção denunciados,
apurados e comprovados no SUS acontecer exatamente nos contratos de
terceirização com Organizações Sociais, OSCIPs e os ditos “parceiros privados”
em geral.
Tudo ocorreu diga-se,
sob um assustador, constrangedor, vergonhoso e comprometedor silêncio daqueles
que tinham dentre outras, a tarefa de fiscalizar e acompanhar o sistema,
zelando pelo respeito à legislação e às normas, particularmente o Ministério da
Saúde, Ministério Público e o Poder Judiciário.
A contratação de
Organizações Sociais, OSCIPs e congêneres, assim como das “cooperativas”
violentam os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e
impessoalidade, solapam o instrumento jurídico do concurso público como única
forma de acesso ao serviço público, destratam as leis de licitação e de
Responsabilidade Fiscal dentre outras e, mesmo assim, têm tido a conivência de
vários Tribunais de Justiça pelo país a fora.
Em 1988 o Partido dos Trabalhadores e o
Partido Democrático Trabalhista entraram no Supremo Tribunal Federal com uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a Lei 9.673/1998 — das
Organizações Sociais – e o inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/1993 — Lei das
Licitações. Apresentando como relator Ayres Britto, teve sua tramitação
iniciada em 1998 e foi suspensa em 19 de maio de 2011, em razão de um pedido de
vistas de Marco Aurélio Mello.
Durante esse período de 13 longos anos, o
processo de desconstrução do SUS e de consolidação das OS avançou em todo o
país em governos dos mais variados matizes ideológicos. Afinal, diziam os
gestores públicos, enquanto o Supremo Tribunal Federal não se manifestava em
contrário, não poderiam ser acusados de estarem cometendo ilicitudes.
Por outro lado, o
Ministério da Saúde financiava diretamente ano após ano, a contratação de
serviços privados em substituição à rede pública – invertendo o ditame
constitucional da complementariedade privada e, portanto, descumprindo a lei –
bem como a entrega de serviços públicos para a administração por empresas
privadas.
Esse movimento pode
ser interpretado como opção política, o que significou um grande equívoco
tático e estratégico e desrespeito às decisões soberanas das Conferências e dos
Conselhos de Saúde, e graves omissão e conivência com a ilegalidade.
A referida ADI só veio
a ter seu desenlace definitivo em 2015, com o STF declarando as Organizações
Sociais “parcialmente constitucionais”, desconsiderando todas as violências
legais que encerram seus contratos, particularmente o acesso de servidores no serviço
público sem concurso público e a desobrigando do cumprimento da lei das
licitações quando da aquisição de bens e insumos.
Importante frisar que
entre 1998, quando protocolou a ADI, e 2015 quando o STF se manifestou
definitivamente, o Partido dos Trabalhadores mudou de posição, todos os seus
governos aderiram ao processo de desconstrução conceitual do SUS e o governo
Dilma se empenhou através do Advogado Geral da União para que as Organizações
Sociais fossem declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.
A verdade é que o SUS
foi transformado no maior balcão de negócios envolvendo a coisa pública no
nosso país, negócios privilegiados, com financiamento garantido e sem qualquer
risco como são os casos dos contratos com Organizações Sociais, OSCIP, terceirizações
em geral e outros “parceiros privados”. A cada novo prefeito ou governante que
se elege, uma total e absurda rotatividade dos trabalhadores tem sido a regra
de acordo com os interesses econômicos e políticos dos atores envolvidos.
Os milhares de pessoas
que hoje sofrem nas filas de espera por um procedimento que nem sempre é tão
especializado assim, são vítimas desse irresponsável e ilegal processo de
privatização do sistema que, está provado, é estatística, matemática e
economicamente, absolutamente impossível de ser financiado em sua plenitude.
Aliás, e exatamente em
função da inviabilidade de submeter a saúde à lógica de mercado, é que nos
últimos anos e em consequência da demanda que cresceu significativamente, mesmo
os Planos de Saúde, que diferentemente do SUS, sabemos bem, não se pautam pela
universalidade nem pela integralidade no atendimento, estão enfrentando grandes
dificuldades em arcar com as suas responsabilidades, aumentando em consequência
cada vez mais os valores cobrados pelas mensalidades sempre acima dos índices
de inflação e as exigências feitas aos seus segurados. De outro lado, com o
crescimento da demanda, do SUS na lógica de mercado e da saúde privada, a saúde
representa hoje o terceiro mais poderoso setor da economia sendo superada
apenas pelo ramo da energia e pelo sistema financeiro. Ou seja, com o SUS na
lógica de mercado a saúde se tornou uma das maiores áreas de negócios no
Brasil.
Óbvio que num quadro
como esse, o Sistema Único de Saúde fica mortalmente ferido em pilares
fundamentais, seu financiamento, sua força de trabalho e sua gestão,
necessitando, portanto, de alterações que promovam a devida correção de rota.
Fonte: Por Francisco
Batista Júnior, em A Terra é Redonda
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