Contaminação por glifosato atinge
municípios a quilômetros de distância das lavouras
O Brasil é um dos
maiores produtores de soja do mundo. Uma potência agrícola movida a toneladas e
mais toneladas de agrotóxicos, que colocam o Brasil no topo do ranking mundial
de consumos de pesticidas. Quase um terço desse consumo se concentra em apenas
uma substância: o glifosato, um herbicida usado para matar as outras plantas
que insistem em crescer junto aos pés da oleaginosa.
Em 2015, a Organização
Mundial de Saúde concluiu que o glifosato era “provavelmente cancerígeno” para
humanos. Mesmo assim, quatro anos depois, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) reavaliou para baixo o nível de toxicidade do pesticida, até
então classificado como “extremamente tóxico”.
À época, a agência
justificou que “o glifosato apresenta maior risco para os trabalhadores que
atuam em lavouras e para as pessoas que vivem próximas a estas áreas”,
sugerindo que medidas de proteção na hora da aplicação seriam suficientes para
garantir o uso seguro do pesticida. Afirmação reforçada pelos produtores do
agrotóxico, que afirmam que o produto é rapidamente absorvido no ambiente,
limitando sua dispersão.
Cada vez mais estudos, no entanto, mostram que
os efeitos do herbicida podem ser sentidos a dezenas de quilômetros dos locais
de aplicação. Pesquisadores já detectaram a presença do agrotóxico em rios do
Brasil, Argentina e Estados Unidos, os três maiores produtores de soja do
mundo. Na Argentina, a substância foi encontrada mesmo em locais distantes das
plantações, enquanto nos Estados Unidos um estudo encontrou a substância em 74%
das amostras analisadas.
“O glifosato impacta
toda a região, porque, além de contaminar a água superficial, contamina o
lençol freático, o ar e a chuva”, afirma Wanderlei Pignati, médico e professor
do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Uma nova evidência vem
de um artigo publicado no final do ano passado na Review of Economic Studies,
que analisou as taxas de mortalidade infantil em municípios que não
necessariamente produzem soja, mas que são abastecidos por rios vindos de áreas
com uso intensivo de glifosato.
“Vimos que, a partir
do momento em que algumas regiões a montante utilizam o produto, a mortalidade
infantil aumenta rio abaixo. Esse estudo sugere que esse efeito é carregado
através de corpos d’água”, afirma Rudi Rocha, professor da Escola de Administração
de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), e autor do
estudo ao lado de Mateus Dias e Rodrigo Soares.
A conclusão é que a
contaminação pelo agrotóxico levou a um aumento de 5% nas taxas de mortalidade
infantil, o equivalente a 503 bebês mortos por ano. A pesquisa reforça estudos
anteriores que apontaram para a contaminação pelo glifosato de células da placenta
e do embrião, impactando o desenvolvimento do bebê ainda na barriga da mãe, e
também através do leite materno.
Segundo Rocha, o
glifosato pode ser carregado pelas águas dos rios por até 100 quilômetros, e a
contaminação aumenta em períodos de muita chuva ou em regiões com maior erosão
do solo. “Todas as hipóteses foram sendo testadas e concluímos que, de fato, o uso
maior do glifosato afeta a saúde infantil de populações que estão rio abaixo.”
Lobby fala mais alto
Rocha e seus colegas analisaram as taxas de
mortalidade de bebês de até um ano de idade em 1.119 municípios das regiões Sul
e Centro-Oeste do país entre os anos de 2000 e 2010. No meio deste período, em
2004, o Brasil aprovou o uso de uma semente de soja transgênica resistente ao
glifosato.
A tecnologia permitiu
a aplicação do veneno não apenas antes, mas também durante o cultivo — com a
semente anterior, os pés de soja teriam morrido junto com as plantas
indesejadas. A produtividade no campo explodiu, assim como o consumo do
glifosato. Segundo algumas estimativas, o uso do produto em todo o mundo
aumentou em 15 vezes após a disseminação da semente transgênica.
“A adoção de novas
tecnologias pode ser capaz de gerar ganhos enormes de produtividade, renda,
crescimento econômico, mas é muito difícil medir as consequências disso”,
afirma Rocha, que defende uma análise mais criteriosa das substâncias
utilizadas no Brasil. “Tem um custo que é relativamente alto, e estamos falando
da saúde da população”.
O que se tem visto no
país, no entanto, é um afrouxamento da regulação do uso de agrotóxicos. Após o
libera-geral do governo de Jair Bolsonaro, que aprovou 2.182 pesticidas em
quatro anos, em 2023 o Congresso brasileiro aprovou o chamado PL do Veneno, projeto
de lei que limita o papel da Anvisa e do Ibama no registro de novos
agrotóxicos.
Os pontos mais
polêmicos do PL chegaram a ser vetados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, mas os vetos foram derrubados pelos parlamentares. “Tem um Congresso
dominado pelo agro e que está aprovando estas leis”, lamenta Pignati. “O agro
não quer saber se está contaminando água, matando gente, causando má formação,
câncer. O agro quer lucro.”
Acoplada à bancada
ruralista, a indústria dos agrotóxicos tem um dos lobbies mais fortes de
Brasília. Segundo um levantamento da Fiquem Sabendo em parceria com O Joio e O
Trigo, representantes do governo federal tiveram 752 encontros com empresas,
associações e lobistas do setor entre outubro de 2022 e julho de 2024, o
equivalente a um encontro a cada 4 horas e 48 minutos.
Em meados de agosto,
um grupo de ONGs, partidos políticos e sindicatos protocolou uma ação no
Supremo Tribunal Federal pedindo a derrubada do PL do Veneno.
Fonte: Mongabay
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