Como desmorona um sistema de saúde
Desde o início da
guerra civil no Sudão, o povo sudanês enfrenta grandes desafios para receber
cuidados adequados. “A saúde pública já estava fragilizada desde 1979, quando o
então presidente Jaafar Nimeiri adotou as orientações do Fundo Monetário Internacional
(FMI), que diziam que o governo devia abrir mão de oferecer serviços de Saúde e
Educação para melhorar as contas”, explica Ihssane Fagiri, que atua em seu país
no Sindicato dos Médicos, na Iniciativa de Combate à Opressão das Mulheres, na
União de Mulheres Sudanesas e na Seção de Médicos do Partido Comunista local.
As considerações de
Fagiri foram feitas em uma coletiva de imprensa sobre a guerra civil do Sudão
de uma perspectiva crítica, promovida pela Assembleia Internacional dos Povos
(AIP), o People’s Dispatch e a revista sudanesa Madaar. Ativistas de organizações
do próprio Sudão, que estão na linha de frente das dificuldades, foram
convidados a falar no evento.
“De acordo com as
instruções do FMI, os hospitais deveriam ser administrados pelas autoridades
locais. Como as cidades do Sudão eram muito pobres, o processo de “devolução”,
como foi chamado, resultou na deterioração do sistema de saúde”, avaliou a
médica.
Fagiri culpa os
movimentos religiosos radicais [que estiveram no poder durante os trinta anos
da presidência de Omar al-Bashir, de 1989 a 2019], que teriam implementado o
que ela chama de “capitalismo parasita”, pela destruição do país e da saúde
pública, particularmente por terem acelerado a implementação dos planos do FMI.
Quando o conflito
irrompeu, as condições dos equipamentos de saúde ficaram piores do que nunca.
Nas primeiras semanas de combate, hospitais, clínicas e postos de saúde se
tornaram alvo da milícia Janjaweed [que se opõe ao governo na guerra civil] e
das Forças Armadas Sudanesas. Como resultado, 70% dos equipamentos deixaram de
funcionar, e a maioria dos sudaneses que sofriam de problemas renais graves
faleceram. Outros muitos foram obrigados a se deslocar para outras regiões do
país em busca de cuidados, que estão seriamente afetados em pelo menos nove
estados.
A vacinação foi
interrompida, porque os centros voltados para essa finalidade foram
bombardeados. Os pacientes oncológicos, renais e hematológicos foram os mais
afetados, particularmente nos estados de Al Jazeera e Madani. A invasão do
estado de Al Jazeera desencadeou a maior catástrofe de saúde dos últimos tempos
no Sudão.
A guerra também causou
problemas sanitários e ambientais, visto que os corpos dos mortos estão sendo
jogados nas ruas em grande quantidade – e sendo atacados por cachorros. O
cenário resulta na disseminação de doenças: 9 mil pessoas já foram diagnosticadas
com cólera, das quais 300 morreram.
A fome afeta
principalmente as crianças. De acordo com dados da ONU e da OMS, a desnutrição
infantil no Sudão está em níveis de emergência. Em áreas como o campo de
refugiados ZamZam, mais de 30% das crianças de até 5 anos sofrem de desnutrição
aguda. Segundo o Programa Alimentar Mundial, 25,6 milhões de sudaneses
enfrentam uma insegurança alimentar grave.
Além disso, o
alastramento de casos de violência sexual também tem afetado duramente a saúde
psicológica e mental das vítimas e seus familiares. A médica Fagiri relatou o
trauma profundo de muitas mulheres que testemunharam suas filhas serem mortas
nas ruas após serem sujeitas a estupros. Um dos grandes obstáculos que a saúde
pública enfrentará será o trauma psicológico. “Isso não será possível sem o fim
da guerra”, ela diz.
Em termos dos impactos
físicos da violência sexual, em alguns casos se pôde oferecer tratamento de HIV
às vítimas. Contudo, não foi possível fazer o mesmo outras condições crônicas
de saúde que podem se desenvolver após o estupro.
A proibição da entrada
de ajuda humanitária também significou a impossibilidade de garantir tratamento
para várias doenças crônicas no país. Ainda que muitos médicos estejam prontos
para oferecer cuidados de saúde e apoio psiquiátrico para os refugiados nos
campos, não há clínicas e equipamentos para tornar isso possível.
Ainda que o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tenha estabelecido
campos para os deslocados, suas instalações não conseguem atender às
necessidades diárias mais básicas das pessoas, como sanitários, água potável,
camas e lençois. Não há nem mesmo absorvente para as mulheres.
A médica Ihssane
Fagiri defende que um apelo propondo o estabelecimento de novas clínicas no
Sudão deve ser enviado às organizações humanitárias com o apoio dos veículos de
mídia internacionais. Ela também pediu o estabelecimentos de campos de
refugiados que respeitem a dignidade humana do povo sudanês, que está vivendo
em tendas em meio a condições climáticas duras, sem água potável e nem abrigo
para protegê-los dos elementos naturais.
Fonte: Pelo People’s
Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda, em Outra Saúde
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