A indústria farmacêutica e a precificação
da vida
O Jardineiro Fiel,
filme dirigido por Fernando Meirelles baseado no romance homônimo de John Le
Carré, retrata os abusos de uma multinacional farmacêutica que utiliza
populações africanas como cobaias para testar novos medicamentos contra a
tuberculose. Os efeitos colaterais, muitas vezes, eram fatais, e a trama do
filme denuncia a falta de transparência, a ganância e a irresponsabilidade de
complexos industriais que atentam contra a vida e a saúde de populações
historicamente vulnerabilizadas, utilizando práticas nefastas para obter lucros
milionários.
Semelhantemente à
ficção, o alto preço de medicamentos, no Brasil e no mundo, constitui-se
atualmente como uma barreira de acesso para consumidores individuais e grandes
compradores, como sistemas públicos e prestadores de serviços de saúde. O
monopólio de patentes e pesquisas clínicas complexas são fatores que contribuem
para essa situação.
Médicos Sem Fronteiras
(MSF), organização humanitária que fornece assistência em saúde a pessoas em
situação de vulnerabilidade, tem dificuldades para garantir tratamento adequado
para pacientes atendidos em seus projetos em mais de 70 países. Em 1999, MSF
criou a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, cujo objetivo foi
melhorar a acessibilidade a fármacos, métodos de diagnóstico e vacinas, além de
estimular o desenvolvimento de ferramentas inovadoras para tratar doenças que
afetam países pobres.
Durante décadas, MSF
testemunhou a opacidade no fornecimento e compra de medicamentos e no processo
de pesquisa e desenvolvimento (P&D) clínico. A falta de acesso à informação
tornou-se uma barreira ao acesso equitativo aos produtos médicos, e aprimorar a
transparência é um passo primordial para salvar vidas.
A Campanha de Acesso a
Medicamentos de MSF, com vistas a aumentar a conscientização sobre problemas
causados pela falta de transparência, publicou um relatório recente intitulado
Secrets Cost Lives: Transparency and Access to Medical Products1. O relatório
aponta recomendações aos governos, instituições de saúde globais, organizações
da sociedade civil e outros intervenientes para promover maior transparência,
garantir acesso equitativo aos produtos de saúde e salvar vidas. Exemplos da
falta de transparência na área farmacêutica são a não divulgação dos custos de
produção, quanto foi investido em pesquisa pelo setor privado e qual o
percentual realizado com apoio de recursos públicos, além dos preços pelos
quais está sendo ofertado o mesmo tratamento em diferentes países.
A transparência acerca
dos preços de venda de medicamentos pode contribuir para prevenir práticas
abusivas pela indústria farmacêutica. Um relatório técnico da Organização
Mundial de Saúde (OMS)2, ao analisar os medicamentos para câncer, apontou que
“empresas farmacêuticas definem os preços de acordo com as metas comerciais e
com o foco de extrair o máximo de recursos que o comprador está disposto a
pagar pelo medicamento. Essa abordagem de precificação torna os medicamentos
para câncer inacessíveis, impedindo que o benefício completo desses
medicamentos seja concretizado”. O mesmo
ocorre para tratamentos de outras doenças, levando os países membros da OMS,
entre os quais o Brasil, a adotarem uma resolução na qual se comprometem a
melhorar a transparência no setor farmacêutico2.
O elevado custo da
P&D é um argumento frequentemente utilizado como justificativa ao alto
preço dos medicamentos, apesar de estudos demonstrarem que não existe ligação
entre os altos preços dos fármacos e os gastos com P&D3. Estimativas
apontam os custos para desenvolver um novo medicamento, variando de US$ 250
milhões (dados da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas – DNDi) a
até US$ 4,2 bilhões (dados da PricewaterhouseCoopers), segundo o Relatório do
Painel de Alto Nível da Organização das Nações Unidas sobre Acesso a
Medicamentos4.
A vasta gama de
estimativas demonstra que há um problema não resolvido. De fato, enquanto
discutem-se outras formas de incentivar a P&D de medicamentos, pode-se
argumentar que é necessário que o investimento seja recuperado através da venda
do produto desenvolvido. No entanto, são produtos que salvam vidas e, como tal,
devem estar disponíveis a todos que necessitam. Como é possível estabelecer um
preço justo se não há informação sobre os custos envolvidos?
Países negociam preços
de “olhos vendados”, levando a grandes disparidades de acesso. Isto significa
que, na prática, a aquisição de medicamentos pelo Estado ou pelo consumidor
ocorre sem nenhum parâmetro do custo de seu desenvolvimento, ainda que estimado,
e, portanto, sem nenhum elemento para basilar a compreensão do seu preço
razoável de comercialização, reforça Francisco Viegas, Assessor de Política e
Inovação em Saúde da Campanha de Acesso de MSF.
Os medicamentos não
são “bens” que podemos optar por não consumir, pois são essenciais para o gozo
de uma saúde plena, principalmente em contextos de pobreza e vulnerabilidade
social. Isso faz com que o indivíduo e/ou o sistema de saúde estejam dispostos
a pagar os preços impostos pela indústria farmacêutica, ainda que não sejam
razoáveis. Outro ponto que deve ser ressaltado é que frequentemente os custos
de P&D não podem ser atribuídos apenas ao desenvolvedor final do produto.
Muitos recursos públicos contribuem para o desenvolvimento de um novo
medicamento, desde a realização de pesquisa básica por instituições públicas
até subsídios para a realização dos estágios finais de desenvolvimento.
Visando contribuir
para o aumento da transparência sobre custos de P&D de produtos médicos,
MSF publicou5 recentemente os custos detalhados de um ensaio clínico para o
desenvolvimento de esquema terapêutico para o tratamento de tuberculose. Os
custos necessários para o desenvolvimento desse esquema foram inferiores quando
comparados com as estimativas defendidas pela indústria farmacêutica.
Adicionalmente, visando facilitar a publicação de custos de ensaios clínicos,
MSF desenvolveu e lançou a ferramenta Transparency CORE como uma proposta
metodológica de sistematizar e padronizar essa divulgação6.
Vários países estão
adotando medidas para aprimorar a transparência dos custos dos ensaios
clínicos, como o recente regulamento na Itália, projetos de lei em tramitação
nos Estados Unidos e França e na União Europeia. O Brasil, por sua vez, se
encontra na vanguarda desse tema por meio da tramitação no Senado Federal do PL
5591/2020, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT/ES), que trata de temas
relacionados à transparência no preço de medicamentos, entre os quais a
obrigação de fornecer informações sobre os custos de pesquisas clínicas e
pré-clínicas de novos medicamentos, incluindo a discriminação de financiamento
público e privado, no ato de solicitação do registro do medicamento no país.
Recentemente, o Brasil
aprovou uma nova lei sobre pesquisas clínicas (Lei nº 14.874/2024), que
infelizmente é omissa na questão de transparência dos custos envolvidos. MSF
contribuiu para uma consulta pública aberta pela ANVISA para regulamentação
dessa lei ressaltando, entre outros pontos, que os pesquisadores e
patrocinadores de pesquisas clínicas sejam obrigados a fornecer informações
sobre os custos e subsídios públicos recebidos, visando diminuir essa lacuna na
regulação sobre o tema no país.
Existem elementos que
necessitam de reforma legislativa urgente para garantir maior transparência das
práticas das indústrias farmacêuticas, visando preços mais justos e maior
acesso a medicamentos. A aprovação de marco normativo sobre transparência dos custos
de ensaios clínicos é uma oportunidade ímpar de garantir maior vigilância para
coibir práticas de preços abusivos por parte da indústria farmacêutica. É
urgente que passemos de um sistema de P&D biomédico cujo status quo é o
sigilo para um sistema baseado no compartilhamento aberto de informação. A
transparência é crucial para combater a precificação da vida e para salvar
contingentes populacionais que não possuem acesso a tratamento.
Fonte: Por Roger Flores Ceccon, para Le Monde
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