Relatórios sigilosos da era Bolsonaro
mostram pouco apoio contra invasão de terra Yanomami
Um conjunto de quatro relatórios
sigilosos produzidos durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) revela
como os órgãos públicos encarregados da tarefa de coibir o garimpo ilegal na
Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, não contavam com a estrutura
suficiente para agir em 2021 e 2022.
Os relatórios foram
obtidos pela Agência Pública por meio da Lei de Acesso à Informação
(LAI). Eles foram produzidos de 2021 a 2022 pela antiga Secretaria de Operações
Integradas (Seopi), atual Diretoria de Operações Integradas e Inteligência (Diopi),
do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Na época, o ministério era
ocupado pelo delegado da Polícia Federal Anderson Torres. De um modo geral, os
relatórios da inteligência não atacam diretamente o governo Bolsonaro pelas
deficiências; pelo contrário, enaltecem os feitos do governo. Porém, os
documentos deixaram expressas as deficiências de apoio aéreo e de pessoal.
Os registros explicam
que as ações na terra Yanomami foram desencadeadas durante o governo Bolsonaro
após duas ordens judiciais: uma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª
Região, em 2021, e outra da Justiça Federal em Roraima, no bojo de uma ação
civil pública, em 2022. Ambos os processos foram ajuizados pelo Ministério
Público Federal (MPF) em Roraima a fim de obrigar a União a tomar providências
para extinguir o garimpo na terra indígena.
<<< Por que
isso importa?
- Documentos do Ministério da Justiça só agora revelados
mostram que faltou ação do governo e das Forças Armadas, mas que isso só
foi registrado oficialmente pela pasta no fim do governo Bolsonaro e sem
atribuir responsabilidade à gestão
Em 2021, as operações
foram divididas pelo governo Bolsonaro em “três ciclos”. O relatório final de
inteligência produzido pelo Ministério da Justiça diz que o primeiro ciclo
durou apenas 13 dias, de 31 de agosto a 12 de setembro de 2021. O documento
narra os problemas que os órgãos públicos enfrentaram desde o início na hora de
executar a tarefa.
“No 1º ciclo, dada a
escassez de recursos e o grande número de operações sendo realizadas em todo o
território nacional, não foi possível o emprego de aeronaves da PF e do MD
[Ministério da Defesa], de forma que os esforços foram voltados para as atividades
administrativas dos seus servidores na Delegacia, para que no momento que
recebesse as autuações dos órgãos no modal terrestre, pudesse prestar todo
apoio necessário, seja ele nos registros cartoriais quanto in loco com a
perícia. Assim, no 1º ciclo, houve emprego de 14 servidores, com apoio de 02
viaturas”, diz trecho do relatório.
Qualquer trabalho de
combate ao garimpo na TI Yanomami, a maior em extensão no Brasil, é prejudicado
sem um forte apoio aéreo, com aviões ou helicópteros, dadas as grandes
distâncias e as dificuldades de deslocamento por terra e rio.
Os documentos explicam
que toda a fase inicial da operação, em 2021, contava apenas com “uma
aeronave”, a do Ibama, instituto vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. “No
1º ciclo, a atuação [da] autarquia se deu em grande parte do período na área de
garimpo, com utilização de sua aeronave, a única que estava no local e assim,
não se tornou inerte.”
Contudo, no segundo
ciclo das operações – que durou também apenas 12 dias, de 16 a 28 de outubro do
mesmo ano –, o Ibama compareceu com apenas “dois servidores e uma viatura”.
“A participação do
Ibama se deu ao final do 2º ciclo, considerando o pouco efetivo (2 servidores e
01 viatura) e as demandas urgentes em outras terras indígenas, mas com impacto
expressivo, sendo destruídos 15 motores, 350 litros de combustíveis, uma barraca
barracão de lona, três veículos”, narra o relatório.
O terceiro ciclo
também demorou apenas 12 dias, de 1º a 13 de dezembro daquele ano. “A aeronave
Black Hawk, disponibilizada pela FAB [Força Aérea Brasileira], foi remanejada a
partir do dia 09/12/2021 para operar na ação de distribuição de cestas básicas
na região da TI Yanomami, por solicitação da Funai, como atividade prioritária,
conforme determinação referenciada na ADPF nº 709. Dessa forma, as ações subsequentes não foram executadas
em sua plenitude, dadas as restrições de voo da aeronave Pantera, do EB
[Exército Brasileiro].”
A falta de apoio aéreo
comprometeu também as atividades da Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel), que deveria identificar o uso de radiofrequências por garimpeiros.
“No 1º ciclo houve alguns óbices iniciais de deslocamento para região de
garimpo, o que fez com que as ações de monitoramento e acompanhamento e algumas
intervenções se concentrassem no Aeroporto Internacional de Boa Vista”, diz o
relatório do Ministério da Justiça.
Só em janeiro de 2023
o governo Lula denunciou a crise humanitária na região Yanomami, com dezenas de
mortes por causas evitáveis atreladas ao garimpo, como a desnutrição. Isso
levou o governo a lançar um grande plano de expulsão dos garimpeiros e a decretar
situação de emergência sanitária de atendimento à saúde indígena. A operação
segue em andamento e o governo afirma ter expulsado mais de 90% dos garimpeiros
ilegais.
·
Combate ao garimpo foi prejudicado durante
governo Bolsonaro
As ações do governo
Bolsonaro contra crimes na terra Yanomami foram pontuais ao longo de todo o
governo e não abalaram a estrutura do garimpo ilegal. As lideranças dos
indígenas denunciaram que a invasão envolvia mais de 20 mil garimpeiros no
final de 2022. Após os três “ciclos” de 2021, o governo Bolsonaro só
retomou ações no território em julho de 2022, novamente após decisão judicial.
Mais problemas foram
relatados pela inteligência do Ministério da Justiça. Primeiro, “intensas
chuvas” até “impediram o acesso por via terrestre das equipes em locais na área
de interesse operacional”. Os agentes não teriam conseguido progredir devido “às
condições da ponte de acesso”. O relatório não esclarece por que essas equipes
não contavam com apoio aéreo.
Depois, uma “aeronave”
da PF – não especificada – teve problemas mecânicos, segundo narra o documento.
“Destacamos que os ataques realizados pela policial federal [sic], mais
especificamente, nos dias 31/07/2022 e 03/08/2022, foram sobrestados em razão de
pane da aeronave e da incursão à localidade da aeronave caída para busca de
pilotos venezuelanos, respectivamente.”
O relatório descreve
como uma equipe da PF apenas ficou olhando helicópteros usados por garimpeiros.
A perseguição aérea só seria possível com apoio da FAB. “Enquanto a equipe
policial estava no ataque, dois helicópteros se aproximaram da região, mas, ao
identificarem a equipe policial, foram embora, onde foi possível a
identificação do prefixo de um deles.”
Uma “segunda fase
operacional” novamente foi curta para as necessidades na terra Yanomami, de 19
de setembro a 3 de outubro de 2022. Mais uma vez o relatório do Ministério da
Justiça confirma que havia apenas uma “aeronave” em atividade, a do Ibama. O
documento nada explica sobre o papel das Forças Armadas.
“As ações supracitadas
da 2ª fase tiveram a capacidade operacional reduzida, em razão da falta de
aeronave de grande porte, pois apenas o Ibama participou com aeronave e, com
sua capacidade limitada, não teve condições de atingir os locais de extração ilegal
de minério, ou seja, especificamente dentro da Terra Indígena.”
O relatório diz que os
órgãos do governo federal não realizaram “‘ataques’ dentro da região da terra
indígena”. Sobre um relato da Funai de que houve “disparos de arma de fogo em
direção aos servidores que fazem bloqueio fluvial”, não houve descrição de qualquer
reação. O documento descreve, sem narrar qualquer resposta a essas atividades
ilegais, que os servidores da Funai observaram “deslocamento de aeronaves nas
regiões do entorno das BAPEs [bases da Funai] Wallo Pali e Serra da Estrutura,
que podem indicar atividade de garimpo”.
·
Forças Armadas e a missão (fracassada) de
proteger os Yanomami
A “terceira fase
operacional” das ações realizadas no território Yanomami em 2022 durou poucos
dias, de 22 de novembro a 6 de dezembro. Pela primeira vez, um relatório da
inteligência do Ministério da Justiça traz mais detalhes sobre o papel dos
militares nas operações.
“Assim como ocorreu na
2ª fase, as ações se concentraram a partir do município de Boa Vista, capital
do estado de Roraima, uma vez que não houve participação das aeronaves ou
demais meios logísticos das Forças Armadas.”
Um dos relatórios faz
um alerta expresso sobre a necessidade de um apoio aéreo mais expressivo, muito
embora não indique de onde ele deve vir. Era o último mês do governo Bolsonaro
e Lula já havia sido eleito presidente.
“Durante esta fase, os
voos foram realizados dentro da autonomia das aeronaves do Ibama e, em alguns
momentos, reforçados com o envio do caminhão-tanque de QAV [querosene de
aviação] para aumentar o lastro de atuação integrada dos órgãos, [isso] mostra
mais uma vez que, para este tipo de operações e sua eficácia, é necessário que
[o voo] seja realizado com aeronaves de grande porte.”
No documento sobre o
“terceiro ciclo”, também pela primeira vez, a Seopi fez menção à existência de
indígenas desnutridos na região. Nos demais três relatórios, a situação da
saúde da população Yanomami sequer foi mencionada. Como a Pública revelou em março de 2023, desde dezembro de 2021 o setor de inteligência do então
ministro Anderson Torres já sabia que desnutrição infantil, mortalidade
infantil e malária atingiam oito regiões, com 22 aldeias, na terra Yanomami.
O relatório sobre o
terceiro ciclo trata do polo-base Kataroa: “No período de reabertura desta
comunidade houve muitos atendimentos, principalmente em crianças menores de
cinco anos, devido ao grande percentual de desnutrição nesta comunidade. Foi
necessária a remoção de dois pacientes que foi autorizada pelo dr. Benedito
Alejandro.”
O relatório não
menciona apoios de deslocamento para um melhor tratamento das crianças com
desnutrição, por exemplo, em hospitais de Boa Vista. Após a posse do governo
Lula, em janeiro de 2023, o governo federal divulgou que 570 crianças
morreram por causas evitáveis na terra Yanomami durante os quatro anos do
governo Bolsonaro.
O número de mortes por
causas evitáveis continuou alto durante o primeiro ano do governo Lula,
chegando a 363 vítimas. A operação no território Yanomami recebeu incremento de
mais de R$ 1 bilhão em créditos extraordinários e continua na região.
Fonte: Por Caio de
Freitas Paes e Rubens Valente, da Agencia Pública
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