SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO, ANALISADO
E RASTREADO
Em um dos trechos mais
movimentados da Avenida Faria Lima, em São Paulo, um consultor de segurança
grava um vídeo promocional para as redes sociais da empresa CoSecurity. “Se
você está andando na calçada e visualiza um poste [com câmeras de vigilância],
e você é uma pessoa de bem, se sente mais protegido. Assim como um
mal-intencionado vai se sentir monitorado.”
Logo atrás dele,
fincado num canteiro, está um exemplar do item de segurança privada da vez nas
grandes cidades: os totens de monitoramento. Trata-se de um poste cilíndrico
metálico que às vezes bate nos 3 metros de altura, com um conjunto de
duas a quatro câmeras no topo, em muitos casos com uma auréola de led acima de
tudo.
Na capital paulista, o
totem vem se multiplicando rapidamente desde o ano passado. Em regiões mais
ricas, como os Jardins, há quarteirões com mais de meia dúzia deles. É um item
que traz novidades, algumas delas um tanto controversas, quando não irregulares.
O pragmatismo de quem deseja espantar o crime de sua rua, porém, tem falado
mais alto, em uma cidade que teve 439 651 registros de roubos e furtos no ano
passado, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública.
A piauí identificou
nove empresas que oferecem o equipamento na capital paulista. O local da
instalação é o primeiro ponto polêmico: fica muitas vezes logo em frente ao
muro dos prédios, mas também há casos de instalação na outra ponta da calçada,
onde usualmente estão postes de luz.
“Hoje tem muita
empresa que faz coisa errada e instala o poste fora de recuo. Isso é uma coisa
que prejudica o produto. É preciso respeitar a lei da cidade”, diz Luciano
Caruso, cofundador da CoSecurity, empresa do Grupo Haganá que alega ser a
pioneira no produto.
No vídeo promocional
da sua empresa, porém, um dos postes aparece no meio de um canteiro na
calçada. A Prefeitura de São Paulo diz que “quando instalados em espaços
públicos, como calçadas e praças, esses equipamentos precisam ter aprovação da
CPPU [Comissão de Proteção à Paisagem Urbana]”. A aprovação é caso a
caso e, ainda de acordo com a gestão municipal, nenhum pedido do tipo foi
recebido.
A instalação em frente
aos muros é objeto de questionamento. A prefeitura informou à piauí, em um
primeiro momento, que a situação era regular por entender que os postes fazem
parte do “mobiliário urbano”, regulamentado pelo decreto 59 671. Bianca Tavolari,
professora de direito da FGV e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (Cebrap), contestou: “O mobiliário urbano tem alguma dimensão
pública, como um banco ou um relógio. Nesse caso, a função é inteiramente
privada. É o prédio que vai se valer das câmeras. Se acontece alguma coisa na
rua, o prédio até pode ceder as gravações, mas a câmera não é pública”, diz.
Após novo
questionamento, a prefeitura disse que “não há regulamentação específica para
instalação desse tipo de equipamento como mobiliário urbano”.
Além disso,
praticamente todos os modelos de poste estampam a logomarca de uma das empresas
(com cores vibrantes), sem respeitar os ritos legais exigidos pela Lei Cidade
Limpa. Segundo a prefeitura, a autorização para a exposição desse tipo de
publicidade não foi solicitada por qualquer uma das empresas à Comissão de
Proteção à Paisagem Urbana: “A CPPU informa que não há um regramento específico
na Lei Cidade Limpa para esse tipo de equipamento. Interessados devem
apresentar à Comissão projetos de comunicação visual para que seja avaliada a
pertinência de edição de uma resolução sobre o tema.”
Para a pesquisadora
Tavolari, a exposição da marca das empresas nos postes é um anúncio
publicitário e, portanto, fere a lei. Ainda que haja algum caso pontual que
poderia ser enquadrado como exceção, todas as empresas atuam de forma
irregular, já que não houve solicitação à prefeitura. “Há exceções para a
exposição de nomes, símbolos, ou logotipos, definidas pelo artigo 2º da Lei
Cidade Limpa, desde que sejam aprovadas pela Comissão de Proteção à Paisagem
Urbana. Não é automático, a Comissão tem que analisar caso a caso”, diz
Tavolari.
A instalação do poste
nem sempre é cobrada e a mensalidade costuma girar entre 299 e 800
reais.
Os totens ampliam
também as discussões entre os limites da segurança privada. Por lei, as imagens
sob custódia das empresas só poderiam ser compartilhadas após um ofício emitido
pela delegacia que investiga um crime. A constituição garante, em seu artigo
5º, o direito à privacidade de imagem das pessoas, exceto quando se tratar de
uma investigação criminal, daí a necessidade de ofício emitido por um delegado.
Também pela lei, essas investigações são atribuições exclusivas das forças
públicas de segurança, conforme definido pelo artigo 144 da Constituição.
Em seu discurso de
venda, empresas como a CoSecurity deixam claro que ultrapassam esses limites.
“Assim que alertada, nossa equipe acessa as câmeras e inicia seu trabalho de
auxiliar a polícia na identificação e até na detenção dos transgressores,
levando a investigação para um outro patamar”, informa um vídeo
promocional. O cofundador Caruso afirma à piauí que as
investigações conduzidas internamente são um diferencial: “O que faz mais a
diferença é o trabalho que a gente faz na central. Ali a gente monta as
ocorrências, com o compilado da cena do crime e entrega esse compilado para o
delegado, o investigador ou pro batalhão da polícia militar. A gente tem esse
trabalho, vamos dizer, proativo.”
Para Maíra Zapater,
professora de direito penal da Universidade Federal de São Paulo, uma
investigação conduzida por uma empresa privada, sem que os ritos legais sejam
respeitados, pode até resultar em uma prisão injusta. “Fazer uma investigação
nesse formato pode violar o direito à privacidade, o direito à intimidade e
pode dar origem a provas ilícitas. É preciso que se assegurem os direitos e
garantias de quem está sendo investigado, e não tem como haver controle em uma
esfera privada”, diz.
Outra que adotou
processos questionáveis de compartilhamento de imagens é a Gabriel,
com mais de 5 500 câmeras espalhadas por São Paulo e pelo
Rio. Uma reportagem do Intercept mostrou
que a startup mantinha uma rede de troca de informações pelo WhatsApp com
forças policiais. “Quando a polícia pedia as imagens do local A, a gente,
proativamente, checava a imagem de todas as câmeras no perímetro para enviar à
polícia o arquivo completo, com todas as outras câmeras que não tinham sido
oficiadas. Naturalmente, isso convergiu, em algum momento, para a criação de um
grupo de WhatsApp ou Telegram”, disse Otávio Miranda, sócio da empresa,
à piauí.
Para botar ordem na
casa, os grupos com a polícia, diz Miranda, foram deletados e a empresa criou
uma plataforma para que autoridades possam solicitar imagens. Agora, para
acessar alguma gravação, é preciso preencher um formulário com a identificação
profissional (cargo e delegacia em que trabalha, por exemplo) que fica
disponível no site da Gabriel. Ainda segundo Miranda, depois disso, é preciso
anexar o Boletim de Ocorrência ao sistema para, enfim, ter acesso ao
vídeo. “Foram pouco mais de 300 prisões que a polícia conseguiu realizar
com base nas imagens da Grabriel e inocentamos, até agora, oito pessoas. Me
orgulho muito de ter colaborado com a soltura de inocentes – não por
coincidência, pessoas pretas e pobres”, diz.
Para Cleber Lopes,
professor do departamento de ciências sociais e coordenador do Laboratório de
Estudos sobre Governança da Segurança da Universidade Estadual de Londrina, o
compartilhamento irrestrito de imagens pode acarretar em perseguições sem base legal.
“Esse ‘só’ fornecimento de imagens tem um problema enorme. Isso pode gerar um
Estado com um poder gigantesco para tornar uma pessoa suspeita e a gente não
sabe como essa troca de informação está sendo feita”, avalia.
É comum que as
empresas do ramo tenham policiais ou ex-policiais. No quadro de sócios da
Vektran, empresa do setor que informa aos clientes ter 2 mil câmeras, há um
policial civil da ativa. Alberto Cunio é, atualmente, escrivão do Setor de
Homicídios da Delegacia Seccional de Polícia de Osasco, na região metropolitana
de São Paulo.
A Lei Orgânica da
Polícias do Estado de São Paulo, de 1979, proíbe a atividade comercial para
agentes da ativa, exceto quando ela se restringe à participação societária,
como no caso de Cunio. O artigo 63 da lei diz: “São transgressões disciplinares
exercer comércio (…) ou participar de sociedade comercial salvo como acionista,
cotista ou comanditário.”
Apesar da brecha
legal, André Zanetic, doutor em ciência política e membro do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, entende que há conflito de interesse: “Isso é um
pouco contraditório com o exercício da função pública. A gente já viu muitos
casos de policiais que usam o cargo para atrair clientes, ainda que ele não
exerça efetivamente funções de gestão e seja apenas um acionista”, diz. “É um
pouco nebulosa a figura do acionista.”
A piauí tentou
contato com Alberto Cunio, mas não obteve resposta. Marcelo Cortelazo, seu
sócio e primo, diz que não há conflito. “Ele é escrivão de homicídios, não tem
nada a ver com o que a gente faz. Hoje ele praticamente nem opera na empresa.
Então não tem nenhum conflito de interesses. E outro detalhe: nós não operamos
em Osasco. Meu forte é Jardins, não tem nada a ver com a região em que ele [Cunio]
trabalha.”
Já a Yellowcam faz
alarde da relação próxima que mantém com a Polícia Militar. No quadro de
funcionários há, ao menos, um ex-PM. Em um vídeo promocional de 2021, um
vigilante do “Pelotão More” (o nome usado para batizar a própria central de
monitoramento) explica como conseguiu o emprego: “Uma associação dos policiais
militares nos apresentou à empresa e agora eu tô dando continuidade no que eu
fazia. Eu era policial militar”, diz o homem, que não foi identificado no vídeo
“por questões de segurança.” Legalmente, não há restrição a policiais
aposentados. A empresa não respondeu aos questionamentos sobre esse
assunto.
Com ou sem poste, o
sistema que interliga as câmeras de monitoramento é o mesmo e opera de forma
mais ou menos parecida em todas as empresas: as imagens captadas são enviadas
em tempo real a uma central de monitoramento e ficam salvas de quinze a trinta dias,
a depender da política de armazenamento. Em caso de ocorrência, a central
recebe um alerta e avalia o que deve ser feito dali em diante (chamar a
polícia, por exemplo).
A tecnologia entra de
forma diferente em cada empresa. “A segurança baseada em inteligência
artificial é a nova fronteira da segurança condominial. Usando câmeras,
sensores e algoritmos, ela é capaz de detectar e prevenir ameaças de forma mais
eficaz do que os métodos tradicionais”, anunciava uma publicação no Instagram
da White Segurança.
No modelo, a
inteligência artificial é responsável por emitir o alerta de perigo à central
de monitoramento quando há identificação de uma “ação delituosa”, explica o
diretor executivo da White, Rodrigo Couto, à piauí. A empresa categoriza
seis tipos diferentes de delito, segundo seu próprio site: roubo, sequestro,
furto, invasão, vandalismo e “vadiagem”. “Categorizamos como vadiagem os
delitos cometidos por usuários de drogas que queiram fazer uso de entorpecentes
na área monitorada. O objetivo é evitar que o perímetro protegido seja
utilizado para qualquer fim ilícito”, diz Couto. Ele se baseia na Lei das
Contravenções Penais, de 1941, que tipifica a “vadiagem” como crime com pena de
quinze dias a três meses de prisão.
Renan Domingos,
superintendente de tecnologia da RS Vigia, outra empresa que anuncia o uso de
IA, afirma que é possível programar a máquina para parâmetros que garantam até
90% de precisão. O sistema é usado, por exemplo, para indicar que uma pessoa
está armada. “Eu consigo trabalhar o percentual de assertividade daquele
evento. A gente trabalha caso a caso, ambiente a ambiente”, explica.
Para alguns
concorrentes, o recurso de inteligência artificial é balela. “Isso não existe.
Não tem como, em uma via pública, você diferenciar uma pessoa que sacou uma
arma de uma que sacou um guarda-chuva”, afirma Otávio Miranda, da Gabriel.
Marcelo Cortelazo, da Vektran, diz algo semelhante: “Eles vendem uma coisa que
não está funcionando ainda”.
Caruso diz que a
Cosecurity trabalha com IA, mas vê limites na tecnologia: “A inteligência
artificial ainda não é um grande contribuidor para [esclarecer] as
ocorrências. São muitos alertas falsos para você caçar uma ocorrência
verdadeira.”
Outra tecnologia
bastante controversa, e potencialmente ilegal, é o reconhecimento
facial. Ele é usado por, pelo menos, duas empresas do setor: a RS Vigia e
a White Segurança. Para treinar o sistema, a RS Vigia usa o banco de dados
do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp)
do Ministério da Justiça e Segurança Pública para mapear rostos de
foragidos. “A gente pega as imagens do Sinesp Cidadão, insere pra dentro da
nossa plataforma e quando essa pessoa passar por algum totem nosso, o sistema
vai receber um alerta”, explicou Renan Domingos. O Ministério da Justiça e
Segurança Pública diz não saber que o banco de dados está sendo usado para essa
finalidade. Domingos diz que a RS Vigia tem dois postes com essa tecnologia
embutida em funcionamento.
A ideia da empresa é,
em um segundo momento, criar um banco de imagens próprio, com dados colhidos
pelas câmeras particulares: “O objetivo é que tenhamos uma block
list que nós criamos, a partir da imagem de pessoas que passaram pelo
nosso sistema e que tenham apresentando algum comportamento indevido, ou
praticado um ato ilícito. A partir daí, conseguimos emitir um sinal de alerta
quando a pessoa voltar a aparecer no sistema”, explica Domingos. Em outras
palavras, toda vez que uma pessoa catalogada como suspeita passar em frente a
uma câmera com reconhecimento facial, o sistema irá emitir um alerta para a
central de monitoramento.
Filipe Medon,
professor de Direito Civil e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade da
FGV do Rio de Janeiro, explica que o reconhecimento facial é uma área que
necessita de regulação específica. Ainda assim, ele entende que os planos da RS
Vigia violam a Lei Geral da Proteção de Dados, por se tratar de uma coleta
desenfreada de informações pessoais sem qualquer tipo de consentimento, ou
autorização: “Para tratar dados, você precisa de uma base legal. Isso pode ser
o consentimento da pessoa, pode ser eventualmente o cumprimento de uma
obrigação legal, ou até mesmo a realização de um estudo por órgão de pesquisa.
O titular dos dados tem direito a saber como seu dado é tratado. Isso está
previsto na legislação.”
Medon afirma que esse
tipo de coleta de informações pode abrir margem para abusos. “Você vai ter um
órgão privado realizando uma função de segurança pública, a partir de um mega
monitoramento e coleta de dados. Elas têm ali um acervo muito farto para produzir
dados. Você sabe para onde as pessoas se movimentam e consegue rastrear uma
pessoa.”
Enquanto não há uma
regulação mais específica, o próprio poder público se engaja nos novos
sistemas. No fim de agosto do ano passado, a Gabriel assinou um termo de
colaboração com a Polícia Civil do Rio de Janeiro, a fim de garantir acesso, de
forma gratuita, ao sistema de imagens da empresa. Em São Paulo, o programa
Muralha Paulista, criado em 2023 pelo governo estadual, firmou parcerias para
cessão de imagens com algumas empresas.
Uma delas é a RS
Vigia. “A integração acontece via sistemas. As empresas colocam as imagens
dentro do CICC [Centro Integrado de Comando e Controle, da Polícia Civil]
e elas são consultadas quando solicitadas. A força pública não fica
visualizando em tempo real. É até meio inviável, não tem efetivo para isso”,
conta Renan Domingos.
Procurada, a
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse que não poderia comentar o
caso até que um decreto, com detalhes sobre o funcionamento do programa, seja
publicado, o que ainda não tem previsão para ocorrer. “O compartilhamento de
imagens ainda não está funcionando”, disse a assessoria de imprensa da pasta
à piauí, por telefone. Domingos, no entanto, alega que a RS Vigia
compartilha imagens com o governo estadual por meio do programa Muralha
Paulista desde o ano passado. Luciano Caruso, da CoSecurity, também diz que a
empresa passou a compartilhar imagens no período.
A Prefeitura de São
Paulo também pretende integrar as câmeras da iniciativa privada ao seu sistema
de vigilância. O programa Smart Sampa foi lançado em 2023 com a previsão de
instalação de 20 mil câmeras próprias e integração com outras 20 mil câmeras particulares.
De acordo com a gestão municipal, um chamamento público será lançado para que
“empresas privadas, concessionárias e munícipes” manifestem interesse em
compartilhar suas imagens. “A integração tem propósito colaborativo e não há
custos para a gestão municipal e colaborador”, diz a prefeitura.
Fonte: Revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário