Os tristes recordes de El Salvador, o país
mais seguro da América
Desde 2022, o regime
do presidente Nayib Bukele, reeleito em 2024, tornou-se mais duro. A sua eficaz
repressão às gangues é sedutora. Mas a sua política de segurança despreza o
Estado de direito. Com a maior população carcerária do mundo, o país
centro-americano também jogou pessoas inocentes na prisão.
O enorme prédio,
cercado por um muro de 11 metros de altura, dividido em oito alas de 6.000 m2,
é recente, inaugurado em fevereiro de 2023. O Cecot, Centro de Confinamento do
Terrorismo, ou Penitenciária de Tecoluca, a 74 quilômetros de San Salvador, foi
projetado para acomodar 40 mil detentos: é a maior prisão da América. Aqui,
apesar do equipamento tecnológico mais recente, as condições de detenção são
consideradas deploráveis. Mesmo que a superlotação carcerária seja ainda maior
nos estabelecimentos mais antigos e degradados, de Mariona a Izalco.
Sem colchões, os
prisioneiros dormem em camas de metal. Eles não podem falar sem autorização e
as visitas de parentes são proibidas. Semelhantes a gaiolas, as celas de 100 m2
são projetadas para manter encerrados cerca de uma centena de presos, todos vestidos
de branco e com a cabeça raspada, que andam algemados e com as mãos na cabeça,
sob os golpes dos guardas.
• 265 mortes sob custódia desde março de
2022
Em julho de 2024,
Cristosal, uma organização salvadorenha de direitos humanos, publicou um
relatório relatando 79.211 prisioneiros e 265 mortes em detenção desde a
instauração do estado de emergência, em março de 2022. Um ano antes, a ONU já
havia pedido uma investigação sobre as mortes sob custódia. A Cristosal
denuncia a generalização das violações dos direitos humanos, das detenções
arbitrárias e dos tratamentos desumanos, das detenções sem mandado judicial,
baseadas em simples denúncias anônimas. Tortura, que se tornou “política de
Estado”.
Eleito em 2019, e
reconduzido com sucesso em fevereiro de 2024, desafiando a Constituição, que o
proibia de concorrer a um segundo mandato, o presidente Nayib Bukele, de 43
anos, declarou guerra às maras, gangues importadas dos Estados Unidos pelos
filhos de imigrantes que regressaram ao país após a fratricida guerra civil
(1979-1990, 100.000 mortes).
De origem palestina da
parte de pai, publicitário como ele mesmo era antes de entrar na política, o
presidente barbudo e astuto, boné virado para trás, jeans e jaqueta de couro,
autoproclamado "o ditador mais cool do mundo", aplica uma política de
segurança usando métodos drásticos que desrespeitam o Estado de Direito. Este
que “sonha com a grandeza” e quer “um país seguro” quer acabar com um altíssimo
índice de homicídios, devido principalmente aos crimes das gangues,
especialmente a Mara Salvatrucha ou MS-13 e a Mara Barrio 18, quadrilhas
rivais. Gangues acusadas de extorsão, sequestros e assassinatos, ou de se
matarem entre si.
Mas agora a
criminalidade está diminuindo. Em setembro de 2023, o presidente populista, à
frente do partido Nuevas Ideas, manifestou a sua satisfação na tribuna da ONU:
“O ontem país mais perigoso do mundo, tornou-se o mais seguro da América
Latina”, declarou. Este verão, na revista Time, também saudou o fato de as
forças públicas, graças ao regime de emergência, estabelecido após 87
assassinatos em três dias em fevereiro de 2022, terem detido desde então 81 mil
pessoas. Para silenciar as críticas ao seu autoritarismo e à erradicação dos
contra-poderes, admitiu que “em breve a segurança poderá reinar sem o estado de
emergência”, prorrogado todos os meses pela Assembleia, controlada pelo seu
partido. E anunciar medidas de flexibilização: fim da suspensão das liberdades
civis, restauração do direito de associação, acesso a advogado em caso de
prisão...
O menor país da
América Central, povoado por 6,3 milhões de habitantes, El Salvador tem,
portanto, um regime autoritário. As organizações de defesa dos direitos humanos
denunciam-no constantemente nos seus relatórios. A Anistia Internacional relata
“graves violações sistemáticas”, uma “desumanização” de prisioneiros e “uma
crise humanitária no seio da população prisional”. Porque muitas vezes basta
ter uma tatuagem para ser encarcerado, num Estado onde a particularidade dos
membros das maras é ser tatuado, às vezes até no rosto, ou ter gravadas na pele
as iniciais da gangue a que pertencem.
A ONG Socorro afirma
defender 1.500 detidos que não fazem parte das maras, mas que foram presos por
esse motivo. Há também desaparecimentos em grande número. E as autoridades não
teriam uma posição tão clara como preconizada: fala-se em acordos secretos feitos
entre o governo e as gangues para reduzir a criminalidade. É devido ao
rompimento de um destes acordos em 2022 que Nayib Bukele teria optado por um
aperto no parafuso e pela aplicação do estado de emergência.
• Um em cada sete salvadorenhos atrás das
grades
Advogados locais dizem
que milhares de salvadorenhos inocentes estão detidos, sem recurso legal. Para
o chefe de Estado, que assume o seu punho de ferro, seriam as vítimas
colaterais de uma guerra mais ampla que visa garantir a segurança da população.
Mas para a Human Rights Watch (HRW), “o presidente Nayib Bukele enfraqueceu o
funcionamento das instituições democráticas, inclusive ao utilizar o exército”
para manter a ordem e fazer detenções questionáveis, inclusive de menores. A
justiça é muitas vezes célere, alerta a HRW: alguns julgamentos coletivos duram
apenas alguns minutos, abrangendo até 900 acusados. Mais elaborado, o que
terminou em 30 de agosto condenou oito líderes da MS-13, incluindo o líder
Efrain Cortez, conhecido como “o Velho Tigre”, a 188 anos de prisão por crimes
agravados. Outro julgamento ocorreu em junho, condenando outros sete
prisioneiros a penas que variam de 360 a 460 anos de prisão.
Com 1.764 detidos para
cada 100.000 habitantes, El Salvador tem a maior taxa de detenção do mundo. Um
em cada 57 salvadorenhos está atrás das grades! O país liderado por este bom
comunicador, adulado mas temido, queria fazer do bitcoin a sua moeda oficial.
Ele não teve sucesso. “Ele experimenta um fracasso em sua aposta na
criptomoeda. Mas por causa de sua política de segurança, Nayib Bukele é um
modelo e uma referência na América Latina”, observa o cientista político do
Iris (Institut de Relations Internationales et Stratégiques), Christophe
Ventura. O seu modelo de segurança está se tornando uma escola no
subcontinente.
As ruas de San
Salvador, onde foi prefeito de 2015 a 2018, deixaram de ser cruéis. Os turistas
estão voltando a este país com as suas praias paradisíacas – um milhão por ano
agora –, o setor imobiliário está em franca expansão, mas os investidores
estrangeiros ainda não estão afluindo para lá e a corrupção ainda é abundante.
Vindo de um partido de esquerda, a Frente Marxista de Libertação Nacional
Farabundo Marti, o líder carismático aplica ideias mais neoliberais na
economia. Ele demonstra pouca preocupação com as classes pobres: a taxa de
extrema pobreza vem aumentando desde 2020, passando de 5% para 8%. Apresenta-se
sobretudo como um “antissistema”, nem de direita nem de esquerda.
Os Estados Unidos, que
têm interesse em impedir a imigração de salvadorenhos para o seu país,
tornaram-se menos críticos nos últimos meses em relação às violações dos
direitos humanos neste país – 2,5 milhões de salvadorenhos já vivem a norte do
Rio Grande. “Só existem dois caminhos para um bandido: a prisão ou a morte”,
gosta de repetir o muito popular presidente de El Salvador, que joga com o
medo, brandindo ao menor escrutínio a ameaça de retrocesso na hiperinsegurança
se o seu lado perder as eleições.
“Mais um dia sem
homicídios”, tuíta regularmente o homem que tem 5,8 milhões de seguidores no X.
O “Rei Filósofo”, como ele se autodenomina, prometeu que não concorreria a um
terceiro mandato. “Fiz um acordo com minha esposa”, jura. Falsamente humilde, afirma
também, certo de ter atualizado valores como a coragem e o amor ao próximo: “A
glória é de Deus”.
¨ Três mil menores detidos no estado de exceção de Bukele
Três mil menores estão
presos em El Salvador sob um regime excepcional em vigor desde 2022, afirmou
esta terça-feira a Human Rights Watch (HRW), que denunciou maus-tratos,
detenções indiscriminadas e casos de tortura no país centro-americano. Num
relatório intitulado “Seu filho não existe aqui”, a entidade documentou casos
de violações dos direitos humanos enquanto vigoram regulamentos extraordinários
em El Salvador que o presidente Nayib Bukele chegou a elevar à categoria de
“guerra contra gangues”.
• "Seu filho não existe aqui"
O documento relata
inúmeras abordagens policiais e do Exército em comunidades vulneráveis, onde a
violência de gangues era constante, com um saldo de mais de 80 mil detidos,
incluindo quase três mil menores. O texto contabiliza mais de mil crianças que
foram condenadas, com penas que variam entre dois e 12 anos de prisão, em
alguns casos "por acusações definidas de forma excessivamente ampla como o
crime de adesão a grupos ilícitos, e frequentemente com base em depoimentos
policiais não corroborados, de acordo com o texto.
“Crianças e
adolescentes de comunidades vulneráveis em El Salvador sofreram graves
violações dos direitos humanos devido às detenções indiscriminadas
implementadas pelo governo” do presidente Nayib Bukele, disse a diretora da HRW
Américas, Juanita Goebertus. “O governo deve implementar uma política de
segurança eficaz que respeite os direitos humanos, que desmantele os gangues,
evite o recrutamento de crianças e lhes proporcione proteção e oportunidades”,
acrescentou Goebertus.
• Falsas confissões e tortura
Um caso documentado
pela HRW é o de um estudante de 16 anos que foi detido em maio de 2022 em
Sensuntepeque, poucos quilômetros a nordeste da capital, San Salvador. “Um
membro da família disse à Human Rights Watch que os soldados o forçaram a
despir-se, queimaram-lhe o torso com um isqueiro e ordenaram-lhe que
confessasse a que gangue pertencia”, afirma o relatório.
A HRW sustentou que o
jovem foi acusado de aderir a grupos ilícitos “com base num único depoimento de
uma ‘testemunha de critério’ anônima, e condenado a 6 anos de prisão”. Ele
ainda está preso. “Em muitos casos, as autoridades forçaram os menores a fazer
confissões falsas, através de uma combinação de acordos judiciais abusivos e,
por vezes, de maus-tratos ou tortura”, afirmou a organização.
As autoridades
salvadorenhas “tomaram poucas medidas, ou nenhuma” para proteger os menores da
violência de outros prisioneiros. Espancamentos e agressões sexuais foram
registrados nas prisões, segundo a HRW, que explicou: “Durante anos, os centros
de detenção de jovens em El Salvador apresentaram condições graves:
superlotação, escassez de pessoal, condições insalubres e falta de
infraestrutura adequada, um ambiente perigoso e desumanizante que não só não
prioriza o bem-estar dos menores, mas também dificulta gravemente qualquer
possibilidade real de reabilitação e reintegração social".
A ONG salvadorenha
Cristosal informou semana passada que pelo menos 176 crianças ficaram órfãs
devido à morte de um dos seus pais presos, enquanto 261 adultos morreram sob
custódia do Estado entre 2022 e 2024. “Essas mortes de pessoas privadas de
liberdade durante o regime de exceção têm esse custo elevado, de deixar muitas
crianças órfãs, já que o Estado não cumpriu a sua obrigação de garantir a sua
vida, a sua saúde", disse Zaira Navas, chefe da Unidade de Estado de
Direito de Cristosal, que alertou que as mortes na prisão "podem ser
mais", mas "a falta de acesso à informação oficial" impede-nos
de saber o número real.
• Rever casos de detidos sem provas
A HRW recomendou
“estabelecer um mecanismo” para rever os casos de detidos “sem provas credíveis
e providenciar a sua libertação imediata”. Nessa linha, a HRW propôs
“priorizar” a revisão de casos de presos menores, bem como de pessoas com
deficiência ou problemas graves de saúde e mulheres grávidas. Em relação aos
menores “identificados de forma credível como membros de gangues, os juízes
devem ter em conta fatores atenuantes, como as circunstâncias do recrutamento
da criança, o contexto familiar e social e a relativa falta de maturidade”,
afirmou a organização.
Segundo a HRW, as
sentenças “devem sempre promover a reabilitação e reintegração de menores”,
conforme exigido pela Convenção sobre os Direitos da Criança e outros
instrumentos jurídicos. A ONG pediu à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos que publicasse “imediatamente” um relatório sobre as violações dos
direitos humanos no país e solicitasse permissão ao governo Bukele para visitar
as prisões.
• Uma "guerra" de longo prazo
Em março de 2022,
Bukele lançou uma “guerra” contra gangues sob a proteção do regime de
emergência, que permite prisões sem ordem judicial. Foi decretado pelo
Congresso após uma escalada de violência que ceifou a vida de 87 pessoas.
Bukele rejeita o fim do regime de emergência e descarta as críticas de grupos
humanitários, enquanto o seu ministro dos Direitos Humanos, Andrés Guzmán, nega
casos de tortura. Com sua cruzada, os homicídios foram drasticamente reduzidos.
Em fevereiro, Bukele
foi reeleito com 85% dos votos. Ele conseguiu concorrer à reeleição depois que
a Suprema Corte, com uma maioria de juízes escolhidos pelos aliados do
presidente no Congresso, decidiu que ele poderia concorrer a um segundo
mandato. Vários setores políticos e sociais questionaram a legitimidade do
segundo mandato de Bukele, argumentando que contradiz as normas constitucionais
do país.
Fonte: La Vie -
tradução do Cepat
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