Crime da Samarco: ‘Acúmulo de metais
pesados nos animais aquáticos está aumentando’
Já passou da hora de
realizar análises sobre os impactos da contaminação por metais na saúde humana.
Já passou da hora de iniciar ações de reparação ambiental na calha do Rio Doce
e no litoral norte capixaba. Já passou da hora de implementar os direitos dos
atingidos em São Mateus e Conceição da Barra, de acordo com a Deliberação nº
58/2017 do Comitê Interfederativo (CIF). Já passou da hora de tomar medidas
efetivas para estancar o vazamento de rejeitos que continua, a partir dos
reservatórios das hidrelétricas de Candonga e Baguari, em Minas Gerais.
Essas são algumas das
muitas negligências graves que se acumulam nesses quase nove anos do crime da
Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce, apontadas como urgentes de correção no mais
novo relatório anual do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática
(PMBA), realizado por meio da Fundação Espírito-Santense de Tecnologia da
Universidade Federal do Espírito Santo (FEST/Ufes) e apresentado à Câmara
Técnica de Biodiversidade (CTBio) na semana passada em Vitória.
Para os mais de cem
especialistas de todo o país envolvidos no estudo, já há elementos técnicos e
científicos suficientes para que os gestores públicos municipais e estaduais,
operadores da Justiça e lideranças políticas envolvidas na Repactuação tomem medidas
efetivas em favor das pessoas e comunidades atingidas. Após a apresentação
técnica dos dados desta quinta edição anual do PMBA, os pesquisadores
continuaram reunidos preparando proposições de ações, em forma nota técnicas e
outros instrumentos, para gestores e também outras câmaras técnicas do sistema
CIF, como a de Saúde, a de Rejeito, de Qualidade de Água, de Socioeconomia e a
de Povos e Comunidades Tradicionais.
Em suas considerações
finais, o relatório afirma que “a atual situação da área afetada pelo
rompimento e monitorada pelo PMBA/FEST, apesar de uma relativa melhora desde a
data do rompimento, ainda apresenta efeitos negativos tanto sobre o ambiente
quanto na biodiversidade, representando uma fonte contínua de contaminantes, de
tal modo que medidas de gestão são cruciais para que o processo de recuperação
seja iniciado”.
A constatação do
aumento da “biomagnificação” de metais pesados em animais de topo de cadeia,
como peixes maiores, cetáceos e tartarugas marinhas, mostra a urgência de se
realizar, de uma vez por todas, estudos semelhantes em seres humanos, para
entender de que forma essa contaminação, já comprovada nos animais aquáticos,
tem afetado as pessoas, principalmente as que fazem consumo mais frequentes dos
pescados, para que medidas de saúde pública sejam tomadas.
“O acúmulo de metais
nos organismos está aumentando, por bioacumulação e biomagnificação”, afirma o
coordenador da CTBio, o analista ambiental do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (IMCBio) Frederico Martins, referindo-se a dois
processos registrados no rio e o no mar.
A bioacumulação é o
acúmulo de metais que ocorre de uma espécie para outra, por exemplo a
contaminação do plâncton é transferida para o pequeno animal que o consome, que
é então transmitida para o maior que é seu predador, e assim sucessivamente até
os animais maiores, de “topo de cadeia alimentar”. Já a biomaginificação ocorre
dentro do organismo de um mesmo indivíduo, que vai acumulando metais dentro de
seu corpo, à medida que vai consumindo alimentos contaminados ao longo do
tempo, até desenvolver alguma doença decorrente disso ou até morrer.
“Se os organismos que
a gente monitora, nos topos de cadeia, estão com esse acúmulo, os organismos
acima deles, nós, seres humanos, provavelmente também estão sofrendo essa
acumulação orgânica, principalmente aqueles que consomem o pescado de uma forma
frequente”, ressalta. “E essa análise não foi feita até agora no âmbito do CIF.
A CTBio está dando esse alerta. E nem é preciso fazer um monitoramento de longo
prazo, como o que fazemos para a biodiversidade marinha, para confirmar, basta
uma avaliação da saúde humana”, orienta.
Frederico lembra que
algumas análises já foram feitas, por algumas universidades, e que os estudos
da Aecom Brasil, perita judicial contratada pelo Ministério Público Federal,
também apontam para a gravidade dos efeitos de uma contaminação por metais na saúde
humana, mas que o CIF não reconheceu esses dados, tampouco das empresas, então
as medidas judiciais e práticas não foram tomadas. “A CTBio tem a
responsabilidade e o compromisso de levantar os dados e fazer os diagnósticos
da área ambiental, e os tem feito. Agora é importante que esses dados sejam
usados em ouras áreas, principalmente saúde e impactos socioeconômicos”,
aconselha.
• Estudo confirma relatos dos pescadores
“A Câmara Técnica de
Saúde deveria fazer análise dos riscos para a saúde humana”, concorda Joca
Thomé, também analista ambiental do ICMBio e coordenador do monitoramento do
PMBA pela CTBio. Na biodiversidade aquática, afirma, este quinto relatório
anual confirma as denúncias dos pescadores sobre os impactos da contaminação
crônica sobre o pescado, que é percebida pelos trabalhadores do mar e do rio
por meio de casos recorrentes de peixes deformados e com tumores, da redução da
população de muitas espécies, da invasão de espécies exóticas, entre outros
danos à pesca artesanal.
“Larvas de peixes e de
camarões estão sendo encontradas com muitas deformidades, sem “sucesso larval”,
como se diz. Os camaroeiros dizem que o camarão está miúdo e os estudos
confirmam isso. Na Foz do Rio Doce, os organismos de fundo, os bentos, só se encontram
as carapaças deles. Há muitas mortandades de determinadas espécies, diminuição
de outras, e espécies exóticas, principalmente tucunaré e piranha, que são mais
resistentes aos metais que as demais, estão se proliferando mais. Como o
ambiente vai se readaptar a todas essas mudanças? Só o tempo vai dizer. Mas é
preciso uma intervenção ao longo do rio”, argumenta Joca Thomé.
Diante do espanto da
repórter, Joca confirma que nenhuma ação de reparação ambiental do rio e do mar
foi feita até o momento, passados nove anos do crime. “O que tem sido feito é
no âmbito terrestre, recuperando matas ciliares e margens para diminuir erosão,
recuperando nascentes para aumentar e melhorar quantidade de águas. Mas nos
leitos dos rios, não”.
Com objetivo de
subsidiar medidas nesse sentido, o 5º relatório do PMBA elenca quais áreas são
mais estratégicas para receberem essas intervenções. “Não dá para fazer tudo ao
mesmo tempo, é preciso trabalhar em áreas prioritárias, seja porque retêm mais os
sedimentos ou porque estão com níveis de contaminações mais acentuadas. Os
mapas produzidos permitem que a gente trabalhe com números e temas e
identifique as áreas prioritárias para determinados temas. O que fazer em 600km
de rio e 400 km de costa? Agora temos condições de priorizar temas, áreas e
começar a ir para a remediação e reparação em áreas prioritárias”, explica.
O relatório afirma que
a maior parte das áreas prioritárias nos ambientes dulcícolas, ou seja, de rio,
estão dentro da calha do Rio Doce e “se estende por boa parte da porção fluvial
do baixo Rio Doce”, devido aos “altos índices de contaminação”. Já para os
ambientes costeiro e marinho, “foram observados maiores indicativos de
contaminação partindo da foz do Rio Doce e seguindo para norte. Apesar disso, é
importante frisar uma priorização em áreas que apresentam baixa contaminação e
bons indicativos para a biodiversidade local, que podem servir como pools de
espécies para as demais regiões monitoradas”.
• Contenção do rejeito é prioridade
Outra confirmação da
percepção dos pescadores se deu em relação à área atingida no mar. De fato, ela
não se restringe mais aos 20 metros de profundidade, a partir da costa. “Vai
mais mar adentro, para além dos 20 metros. Já vimos refeito em até 35 metros,
mas temos uma média de 30m”, afirma Joca Thomé.
Em relação a uma ação
de retirada do rejeito do fundo do rio e do mar, o relatório também trouxe
elementos para se pensar em soluções possíveis. “É um desastre contínuo. Há
muito rejeito nos reservatórios das hidrelétricas no fundo do leito do rio. A
cada chuva intensa, mais material é lixiviado e levado à calha, em direção à
foz, fazendo uma nova tragédia. A cada frente fria, o vento sul ressuspende o
rejeito no fundo do mar e joga tudo em direção ao norte. E, conforme ele vai
sedimentando, o vento nordeste traz um pouco disso em direção ao sul, mas de
forma sobrenadante”.
Sobre a retirada do
rejeito que ainda está nos reservatórios das hidrelétricas, também
possibilidades são avaliadas. “A Câmara Técnica de Rejeito estuda a
possibilidade de remover o rejeito do fundo. A pergunta é: o que é pior? Fazer
uma grande movimentação agora, com grandes impactos, ou deixar como está por
mais 60 anos ou mais, até que tudo seja levado rio abaixo, até o mar? Fala-se
em nove a 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos ainda na hidrelétrica de
Candonga”.
Se a retirada ou não
do rejeito do fundo dos reservatórios ainda é uma dúvida, uma questão é ponto
pacífico, segundo Joca: “a contenção do rejeito é a principal ação a ser
tomada, em Candonga e Baguari. Vai ser retirado de caminhão, com movimento
desse trânsito pesado dentro das comunidades, rachando casas e outros
transtornos? Não sei sabe, mas é preciso conter”.
• Impactos agravados
Superintendente do
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em
Minas Gerais e atual presidente suplente do CIF, Sergio Augusto Domingues
lembra ainda que a crise climática tende a agravar os impactos do crime em toda
a bacia hidrográfica e no mar, e que é preciso que os gestores utilizem os
dados do PMBA para tomar as medidas necessárias para a proteção da população e
da natureza.
“Os eventos climáticos
de cheias tendem a amplificar os impactos. A cada grande cheia, esses impactos
ganham dimensão maior. Não mais hipóteses, temos agora evidências. E ter essas
evidências científicas bem organizadas na matriz de resultados, é muito importante
para a tomada de decisões. É fundamental não haver descontinuidade do
monitoramento, como já ocorreu, por pressão da Fundação Renova. Felizmente, o
monitoramento está garantido até o próximo período chuvoso, e é preciso
continuar para além disso. Precisa também fazer a relação intercâmaras, pois há
muitos desdobramentos a serem considerados, no ordenamento pesqueiro, nas
questões ligadas à Repactuação, na melhoria da qualidade ambiental, no manejo
das espécies silvestres, na reestruturação das comunidades atingidas”.
Para além da
reparação, o presidente interino do CIF clama por medidas preventivas.
“Populações tradicionais, com seus modos de vida, como os Krenak, que têm uma
relação muito específica com o rio, que eles chamam de Watu, o avô, o que
aconteceu pode ser que não tenha como reparar essa situação. Muitas comunidades
estão sem água para beber hoje. Recebem caminhão pipa, galões de água. É
preciso pensar nas estratégias de segurança desses diversos empreendimentos
minerários que temos, principalmente em Minas Gerais. Que se faça no Brasil as
melhores práticas, um compromisso com a segurança das comunidades”.
O coordenador da CTBio
reforça a necessidade de que os gestores e os movimentos sociais “se apropriem
dos dados” do relatório, para que a reparação de fato aconteça. “A gente espera
que o sistema CIF, as prefeituras e a sociedade civil organizada possam se
apropriar desses dados para lutar por seus direitos e lutar por reparação. É um
estudo de impacto ambiental sobre o desastre mais grave que já houve no nosso
país. A luta pelo processo reparatório tem que ser coletiva. Se as pessoas não
usarem esses dados, esse relatório pode ficar só na gaveta”.
Fonte: Por Fernanda
Couzemenco, no Século Diário
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