Gaza é o fim da humanidade: “Existe um
projeto para exterminar as pessoas problemáticas"
Raul Zibechi (Montevidéu,
1952) começa a ser o que algumas comunidades chamam de ancião, um pensador
com visão global, localizado na América Latina, com experiência e um
longo caminho a percorrer. Uma pessoa idosa que, além disso, dá cada vez mais
importância à espiritualidade e ao cuidado. Ele gosta de voltar a lugares
- Chiapas, Wallmapu, Cauca... – de vez em quando, para ver como os processos
de luta, as comunidades organizadas, os povos resilientes e os territórios
vivos avançam, regridem ou se transformam. Ele é um daqueles que traz à tona
o patriarcado e o machismo em qualquer resposta, sem precisar nomeá-los
de propósito, algo raro em homens brancos relativamente privilegiados.
Zibechi esteve em
Barcelona apenas alguns dias, para apresentar o livro Veus per una transició
ecosocial (Pol·len Edicions, 2024) no qual colaborou com um artigo sobre
a descolonização da transição ecossocial, basicamente um apelo a não
fingir que esta transição é liderada pelos Estados, mas pelas pessoas e
pelos processos.
<><> Conversamos em Ona Llibres em uma grata tarde chuvosa. Eis
a entrevista.
·
Você gosta de ler o mundo
a partir de seus processos de resistência, em termos de construção comunitária,
de construção de autonomia. Como vê o mundo a partir desses termos no atual
momento?
Vejo-o à beira do
precipício, vejo-o a um fio da destruição da humanidade e, nesse sentido, toda
a visão assenta em dois pés: num só maspé, as guerras que estão aumentando, a
Ucrânia, Israel contra a Palestina, mas também o Iêmen, o Afeganistão, a Síria...
e guerras não declaradas como a do México – 350.000 mortos! – ou da Colômbia.
Por outro lado, este caos climático e um futuro que não sabemos como será,
porque o caos não é só climático, é social, é geopolítico, é um caos cultural.
Os valores que
existiam antes, nos períodos dos estados de bem-estar ou dos estados que
ordenavam um pouco as sociedades, hoje estão totalmente fora de controle e é aí
que é mais difícil interpretarmos o que está acontecendo. Hoje temos um
problema com as bússolas, os instrumentos para saber onde estamos e como se
movem os ventos, e as ondas estão a falhar, mesmo na meteorologia, que é uma
ciência crítica.
·
Os territórios que
você conhece melhor são os de Abya Yala (Américas). Como vê os processos de
resistência como o zapatismo ou as lutas indígenas na Colômbia diante do
aumento da violência das drogas?
Não sei se poderíamos
dizer que estão em crise, mas enfrentam sérios obstáculos. Não só por causa do
tráfico de drogas, mas também por causa do progressismo. López Obrador
militarizou o México, Boric enviou mais soldados para Wallmapu do que Pinochet,
o progressismo muitas vezes encerra processos de resistência. Em Cauca, com
Gustavo Petro e Francia Márquez, conseguiu-se a entrega de terras ancestrais,
mas nem sempre para a construção. Esses processos também estão enfrentando
muita divisão interna. E agora entrando na violência do tráfico de drogas:
tráfico de drogas também é extrativismo, é capitalismo, é patriarcado.
·
A cocaína também é
colonial, consumida principalmente no norte global, enquanto a folha de coca é
cultivada apenas na Colômbia, Peru e Bolívia.
Sim, sem dúvida, o
tráfico de drogas é colonial: o colonialismo e o patriarcado trabalham juntos
porque são inseparáveis. María Galindo diz frequentemente que “não se pode ser
antipatriarcal sem ser anticolonial e vice-versa”. Atualmente, o colonialismo,
agora um neocolonialismo, de mãos dadas com o extrativismo, a acumulação por
desapropriação, está mudando as geografias. No caso do tráfico de drogas, as
principais rotas já não vão para o norte, explica Petro, e nisso ele tem razão:
com o aumento do consumo de fentanil nos Estados Unidos, a cocaína é menos
consumida e as rotas vão mais para a Ásia e para a Europa, passando pelo Brasil
e também pela Argentina e Uruguai. Sim, a poluição e a violência permanecem nos
territórios do sul e as drogas vão embora. Mesmo assim, é importante destacar
que, ao mesmo tempo, novos processos de autonomia surgem em diferentes lugares,
na Amazônia peruana: nos Wampis e nos Achuares nove governos autônomos já foram
estabelecidos em poucos anos (ver matéria do Correio sobre a experiência dos
governos territoriais autônomos aqui).
No nível da política
institucional na América Latina, a alternância entre progressismo e
conservadorismo – mais ou menos ultra – aprofundou-se. A instabilidade reina.
Vou citar algumas situações e você nos diz como você as vê do seu ponto de
vista. A primeira, a volta de Lula ao Palácio do Planalto após quatro anos de
Bolsonaro.
Horrível. Quer dizer,
o Lula não é pior que o Bolsonaro, mas o Lula atual comparado aos primeiros
governos Lula está vários degraus abaixo, não está fazendo nada de
interessante.
Criou o Ministério dos Povos Indígenas. Para domesticá-los, com Sonia
Guajajara. Porque os povos indígenas foram a principal resistência a Bolsonaro.
Mas com Lula o extrativismo e o capitalismo continuam avançando e até João
Pedro Stédile, líder do MST, que sempre foi lulista, disse outro dia que não
houve avanço na reforma agrária, o que é uma pena.
Depois, no Peru, temos
um presidente eleito em prisão preventiva desde dezembro de 2022.
Primeiro, devemos
considerar que Pedro Castillo nunca foi de esquerda, nunca foi progressista,
foi stalinista, aliado da pior esquerda do Peru, dirigiu um governo corrupto,
instável, oscilando de um lado para o outro. E quem o derrota é a velha
oligarquia tradicional peruana, com um número de mortos de pelo menos 60. Dina
Boluarte é um monstro, sem dúvida, mas Castillo talvez não tenha tomado as
melhores decisões.
·
Nayib Bukele foi
recentemente reeleito em El Salvador, com prisões cheias de jovens num país que
é hoje proclamado como o mais seguro da América. A custo de quê?
À custa da libertação
de territórios para o extrativismo. Está fazendo acordos com empresas mineiras
e outras para encorajar a expropriação. Ele não está tão preocupado com a
segurança das pessoas, mas sim com os interesses econômicos e financeiros com as
empresas que extraem recursos. Só porque a pessoa é jovem e tem tatuagens vai
para a cadeia. E agora, mesmo sendo proibido pela Constituição, Bukele é
reeleito presidente por mais cinco anos. É um regime militar.
·
Milei na Argentina:
como isso pôde acontecer?
Milei é filho de um
longo período de governos progressistas ruins. E é o resultado de um período de
deterioração das condições de vida dos setores populares, de inflação de 100% e
de 50% da população na pobreza. Por um lado existe esse empobrecimento, falta
de horizontes. E, por outro lado, a forte base social de Milei são homens com
menos de 25 anos que reagiram ao empoderamento das mulheres da sua idade. A sua
proposta é profundamente patriarcal, violentamente sexista e é também uma
reação de um setor da classe média que está farto dos pobres e do Estado apoiar
os pobres com subsídios.
·
Dada a tanta
instabilidade na América Latina, projetos como a Unasul foram deixados para
trás. Existe alguma iniciativa de integração latino-americana que esteja
funcionando e que possa desempenhar um papel em nível global face a uma
possível transição ecossocial?
Na América Latina, um
projeto de integração não funcionou em grande parte devido à lógica colonial,
porque cada nação tem de competir com as outras pelos seus interesses, pelas
suas exportações. Hoje os Estados sobrevivem com o extrativismo, com a acumulação
por desapropriação. Os únicos sujeitos capazes de liderar uma transição
ecossocial, ou nos quais poderíamos focar, são os povos indígenas, os
camponeses, os negros e algumas periferias urbanas. São claramente os que têm a
menor pegada ambiental.
·
Os Estados não têm
propostas, então?
Não, de maneira
nenhuma. Note-se que o projeto Petro é uma aliança com o Pentágono para
proteger a Amazônia, o que é outra ilusão porque o Pentágono é a instituição
com a maior pegada ambiental do mundo. Há um enorme déficit dos Estados que
também continuam a vender petróleo. Agora há um debate muito forte no Brasil
porque Lula quer permitir a exploração de petróleo na Amazônia e isso prejudica
o povo. O Estado-nação é um grande consumidor, um grande predador, necessita
necessariamente do extrativismo para implementar o seu próprio sustento. A
matriz colonial do Estado na América Latina levou-o a ser o protetor da
mineração e das monoculturas.
Acredito que devemos
olhar para as pessoas como sujeitos desta transição para um mundo sustentável,
basicamente porque elas precisam de água limpa para viver, precisam dos seus
territórios livres de mineração. E estão a ser feitos progressos neste sentido,
por exemplo agora na Colômbia foram criados Territórios Agroecológicos por
organizações camponesas ligadas ao Congresso Popular. Isto é muito importante
porque o Estado não tem outra escolha a não ser sancioná-los no âmbito dos
acordos de paz e, se forem implementados, daremos saltos em frente. Mas,
insisto, os sujeitos são as pessoas, não os governos, não os Estados. Não
podemos acreditar que as coisas possam ser mudadas através do poder estatal. Um
dos problemas desta transição é que o Estado já não é uma ferramenta de
transformação positiva.
A matriz colonial do
Estado na América Latina levou-o a ser o protetor da mineração e das
monoculturas.
·
Foi em algum momento?
Em algum momento ele
atuou como árbitro entre as classes. Na Europa, sobretudo com estados de
bem-estar social, na América Latina com estados de bem-estar social mais
restritos, mas foi.
·
Concorda com os
postulados do decrescimento?
Há mais de 30 anos que
falamos em decrescimento, a princípio não discordo, o problema é outro: quando
criamos uma proposta que é boa, quem é que faz?
Numa hipotética
instalação de políticas públicas para lançar o decrescimento, você acha que
todos os países deveriam diminuir da mesma forma ou na mesma velocidade? Existe
uma visão anticolonial do decrescimento?
Os primeiros que têm
de diminuir são as grandes empresas petrolíferas e mineiras, o 1% mais rico,
que é o que tem a maior pegada, e os exércitos. Quem mede os impactos das
bombas em Gaza no meio ambiente? Devemos estar conscientes de que o
decrescimento, tal como toda a transição, é um processo de conflito social.
Deveríamos começar
pelos setores sociais, países, nações que mais poluem. Se pedirmos a uma
comunidade amazônica, que tem carro para 200 pessoas, que diminua o mesmo que
Barcelona, estaremos cometendo uma injustiça ambiental brutal. Precisamos ser
muito precisos. O decrescimento realizado a partir dessa lógica seria uma
política anticapitalista e anticolonial.
·
Na Europa, a
extrema-direita está em expansão. Disse que uma política de integração
dificilmente poderá funcionar na América Latina. Está funcionando na União
Europeia? Qual é o papel da UE do seu ponto de vista?
A União Europeia foi
criada para exercer um poder que não estava subordinado aos Estados Unidos,
esse foi o início do euro. Hoje esse projeto está perdido, a Europa está subordinada
aos Estados Unidos, sem capacidade para ter uma política internacional
minimamente autônoma e agora numa situação de crise, de falta de futuro,
irrompe esta nova política que se chama extrema-direita, mas que eu discordo.
Hoje, direita e esquerda são muito semelhantes. A energia deve ser aplicada
noutra coisa e não em campanhas eleitorais.
Aqui na Espanha, os
grupos organizados de migrantes sabem bem quais os partidos – efetivamente de
esquerda e de direita – que votaram a favor do Pacto Europeu sobre Migração e
Asilo e fizeram campanha para votar nas eleições europeias nessa chave.
Podem votar, não tem
problema, mas se não nos organizarmos, se não houver força popular, não
estaremos fazendo nada.
·
Finalmente, a situação
em Gaza traz aos grupos organizados contra a guerra, o racismo e o fascismo um
sério sentimento de desesperança. O que você vê em Gaza? Onde devemos procurar
colocar em prática alguma esperança ativa?
Acho que Gaza é o fim
da humanidade. Gaza deixa claro para nós que 1% da população está disposta a
eliminar cidades inteiras para permanecer no poder. Não é que os israelenses
sejam maus – o que em geral são – mas que existe um projeto para exterminar pessoas
chatas. Que são palestinos, que são iemenitas, que são zapatistas, nasas,
mapuches... Esse é o projeto, e é um projeto colonial. A maior esperança é que
o povo seja tão poderoso, tão forte, que aqueles que estão acima precisem
atacá-lo para destruí-lo e eliminá-lo da face da terra. Os que estão no topo
têm um certo medo dos que estão na base, essa é a esperança.
Fonte: Por Berta
Camprubí, em Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário