Quem possui e controla o capital global?
Desde a década de
1980, as finanças dos EUA cresceram desproporcionalmente em poder e influência,
à medida que os fundos de investimento americanos se tornaram os maiores
acionistas das corporações americanas, administrando dezenas de trilhões de
dólares em investimentos. Este artigo fornece uma nova análise empírica da
ascensão do capitalismo de gestores de ativos nos Estados Unidos.
De fato, ele explora a
extensão de sua disseminação global, examinando o Formulário SEC de
investidores institucionais dos EUA, juntamente com um extenso conjunto de
dados de propriedade corporativa global fornecido pela Orbis. Este artigo
conclui que as finanças dos EUA possuem aproximadamente 60% das empresas
listadas nos EUA (era apenas 3% em 1945) e 28% do patrimônio de todas as
empresas listadas globalmente.
Como maiores
acionistas globais e gestores exemplares de ativos nos EUA, as Três Grandes
detêm investimentos em 81% das empresas listadas nos EUA e possuem 17% do
mercado de ações dos EUA, ao mesmo tempo em que aparecem como acionistas em 20%
das empresas listadas em mercados de ações fora dos EUA e que possuem 4% das
empresas não americanas mercado de ações.
Este artigo ilustra
que a ascensão da era do investimento passivo e da propriedade universal,
exemplificada pelas atividades das Três Grandes (BlackRock, Vanguard e State
Street), produziu um cenário setorial e geograficamente desigual de fluxos de
capital, exacerbando as divisões existentes entre o núcleo e o interior dos
mercados financeiros globais. Com a propriedade de empresas listadas cada vez
mais concentrada nas mãos de um pequeno número de fundos cada vez mais
poderosos, este artigo argumenta que é na propriedade da maior parte do capital
global que reside o poder das finanças modernas.
·
Crescimento financeiro
Desde a década de
1980, o setor financeiro americano cresceu desproporcionalmente em termos de
lucro, poder e influência. Com as altas taxas de juros vindas após a
desregulamentação financeira e a virada monetarista, alguns dos estudos
acadêmicos anteriores atribuíram a crescente lucratividade das finanças dos EUA
ao aumento da lucratividade dos bancos dos EUA.
Mais recentemente, no
entanto, Benjamim Braun sugeriu que o poder estrutural das finanças modernas
emana das grandes, ilíquidas e altamente diversificadas participações
acionárias de fundos de investimento – e não de empréstimos bancários a
empresas não financeiras. Com a propriedade e a gestão do capital superando a
intermediação de crédito como a atividade financeira mais lucrativa nos Estados
Unidos, o Wall Street Journal proclamou que “os bancos
perderam a batalha pelo poder em Wall Street”, pois “lucros, ativos e
influência passaram de bancos de investimento como Goldman para gigantes de
gestão de dinheiro como a BlackRock e a Vanguard”.
Os intermediários
financeiros mais poderosos de hoje não são mais bancos comerciais ou mesmo de
investimento, mas as empresas de gestão de ativos que adquiriram quantias de
capital historicamente sem precedentes, enquanto o surgimento de instituições
financeiras envolvidas em investimentos levou a um entrelaçamento mais profundo
entre capital industrial e financeiro.
Diante dessas rápidas
transformações financeiras, Auvray propôs que a fase de financeirização
pós-2000, caracterizada por baixas taxas de juros, altos pagamentos aos
acionistas e centralização da propriedade financeira, precisa ser
conceitualmente demarcada da fase anterior de financeirização dos anos 1980-1990,
a qual foi amplamente documentada por Krippner.
As finanças
contemporâneas parecem não facilitar mais os investimentos produtivos, o que
prolonga o período contínuo de estagnação secular. Por isso, alguns argumentam
que, apesar disso, as finanças continuam a deter o poder estrutural, embora as
bases subjacentes de seu poder tenham mudado fundamentalmente.
Este artigo enfoca um
aspecto da fase contemporânea da financeirização – a ascensão do capitalismo de
gestão de ativos e sua distribuição geográfica desigual pelo mundo. Argumento
que a medida em que o capital em todos os setores econômicos está sendo cada
vez mais detido e gerenciado por intermediários financeiros, essa tem sido uma
das transformações mais significativas, embora não suficientemente
compreendidas, observadas na economia dos EUA nas últimas quatro décadas.
Inicialmente
denominado “capitalismo de investidores” e “capitalismo de fundos de pensão”,
esse fenômeno foi amplamente impulsionado por fundos de pensão privados ao
longo das décadas de 1970 e 1980. Contudo, em meados da década de 1990, os
fundos mútuos ultrapassaram os fundos de pensão privados como o maior acionista
de corporações dos EUA após uma série de mudanças (des)regulatórias.
Com base na análise de
Rudolf Hilferding do capitalismo financeiro no início do século 20, Gerald F.
Davis cunhou o termo “novo capitalismo financeiro” para descrever um sistema de
propriedade corporativa que começou a surgir na década de 1990 nos Estados
Unidos, no qual “um pequeno número de fundos de investimento se encontra com
posições substanciais de propriedade em centenas de corporações
simultaneamente”.
Em 2014, Andrew
Haldane, economista-chefe do Banco da Inglaterra, proclamou que a “era da
gestão de ativos pode ter chegado”. Braun, posteriormente, cunhou o termo
“capitalismo de gestão de ativos” para descrever esse novo regime de governança
corporativa dominado por fundos de índice.
À medida que os
gestores de ativos continuaram a ganhar destaque ao longo da década de 2010, os
estudiosos da economia política internacional começaram a dedicar sua atenção à
crescente influência global dos fundos de índice e às consequências da “reconcentração
da propriedade corporativa” para a economia dos EUA.
Ao mesmo tempo, os
geógrafos econômicos começaram a examinar as desiguais e variadas geografias da
propriedade corporativa, assim como o modo pelo qual os avanços tecnológicos
remodelaram a indústria de gestão de ativos. Verificaram que era preciso fazer
uma “tentativa mais sistemática de politizar as lógicas contemporâneas de
propriedade e os esquemas financeiros extrativistas baseados nelas”.
·
Os donos do capital
Nos Estados Unidos, as
mudanças na composição dos proprietários das empresas listadas são
impressionantes. O Federal Reserve estima que no final da
Segunda Guerra Mundial 95% das ações dos EUA eram detidas diretamente por
famílias americanas; contudo, em 2020, esse número caiu para 40% à medida que
surgiu um novo conjunto de intermediários financeiros, os quais passaram a
fornecer serviços de consultoria de investimentos e gestão de ativos (Figura
1). De acordo com o Federal Reserve, desde 1945, a participação das ações
detidas diretamente por empresas financeiras dos EUA cresceu de 3% para 40%.
Como o Federal Reserve
classifica as empresas ditas de “private equity” e os fundos de hedge
nas categorias “famílias” e “resto do mundo”, Braun estima que a verdadeira
parcela de ações corporativas pertencentes às finanças dos EUA provavelmente
deve ser pelo menos 12% ou 13% maior do que o relatado. Juntamente com os fundos
negociados em bolsa (ETFs), os fundos mútuos respondem por 27% do mercado de
ações americano, seguidos por 10% das ações detidas por fundos de pensão
privados e fundos de aposentadoria do governo.
Os dados do Federal
Reserve oferecem estimativas históricas de longo período sobre os
proprietários de ações dos EUA, as quais não estão disponíveis em outros
lugares. No entanto, tem várias limitações, incluindo-se a de subestimar as
participações de investimento dos fundos mútuos dos EUA, de não fornecer uma
divisão setorial de suas participações, de agrupar todos os fundos mútuos que
impedem medir a crescente concentração de propriedade e, finalmente, de falta
de dados comparativos de outros países. Dadas essas limitações, os
pesquisadores têm contado com bancos de dados em nível de empresa para estudar
a dinâmica emergente do capitalismo de gestão de ativos nos Estados Unidos e no
mundo.
Embora a literatura
sobre o capitalismo de gestão de ativos esteja crescendo rapidamente, esse tipo
de estudos ainda está em seu nascimento. Existem quatro limitações
metodológicas primárias predominantes na literatura que este artigo pretende
abordar. Primeiro, como as análises iniciais dos dados de propriedade
corporativa foram amplamente espaciais, este artigo visa contribuir para a
crescente literatura comparativa sobre financeirização. Segue Torchinsky Landau
que examinou os laços de propriedade financeira nacionais e transnacionais e
observando como eles variam geograficamente.
Em segundo lugar,
embora a maior parte da literatura existente forneça generalizações da dinâmica
de propriedade corporativa com base nas análises de amostras relativamente
pequenas de empresas (muitas vezes limitadas a índices específicos, como o
S&P 500), este artigo examina todas as participações acionárias de
investidores institucionais dos EUA entre 1997 e 2020 e todos os dados de
propriedade disponíveis para todas as empresas listadas globalmente em 2018.
Em terceiro lugar,
embora exista atualmente um número crescente de estudos que examinam os
impactos da propriedade financeira em setores específicos, como a agricultura,
o imobiliário, os combustíveis fósseis e a indústria mineira, assim como o de
saúde, até o momento, ainda faltam estudos que forneçam comparações
intersetoriais de propriedade financeira.
Para resolver essa
lacuna empírica, usa-se aqui dados em nível de empresa para desenvolver
estimativas setoriais para a parcela de capital de propriedade de empresas
financeiras dos EUA, incluindo os “três grandes” gestores de ativos –
BlackRock, Vanguard e State Street – nos EUA e no exterior. Finalmente, como
não foi dada atenção suficiente ao poder nacional e transnacional exercido
pelas finanças nas redes globais de propriedade corporativa, este artigo
fornece uma investigação sistemática de até que ponto as empresas financeiras
possuem capital nacional e globalmente.
Este artigo faz várias
contribuições empíricas para a literatura emergente sobre o capitalismo de
gestores de ativos. Em primeiro lugar, examinando os registros do Formulário
SEC que possui dados dos investidores institucionais dos EUA e dos fundos mútuos
dos EUA (fornecidos pelo banco de dados Thomson/Refinitiv), estimo que a
parcela de ações dos EUA pertencentes a investidores institucionais dos EUA
aumentou de 48% para 59% entre 1997 e 2020. O que inclui todos os ganhos de
propriedade atribuíveis ao crescimento das participações acionárias dos fundos
de índice dos EUA, cuja respectiva participação acionária aumentou de 2% para
15%.
Durante esse período,
as Três Grandes exibiram um crescimento notável, aumentando a participação das
empresas listadas nos EUA nas quais detinham investimentos de 56% para 81%, a
participação das empresas listadas nos EUA nas quais eram o maior acionista
(entre os investidores institucionais dos EUA) de 4% para 40% e sua
participação geral no mercado de ações dos EUA de 5% de 17%.
Além de serem
proprietários universais permanentes, acho que as Três Grandes não detêm
investimentos proporcionais em todos os setores, com suas participações
acionárias variando de 14% no setor de informações a 25% no setor imobiliário.
Ora, isso destaca como a ascensão das Três Grandes tem sido setorialmente
desigual nos Estados Unidos.
·
As gestoras de ativos
Expandindo a análise
histórica dos acionistas das empresas listadas nos EUA, este artigo examina a
presença do capitalismo de gestão de ativos em outros países. Baseando-se em um
extenso conjunto de dados de propriedade corporativa global fornecido pela Orbis,
com 262.331 acionistas únicos de 39.029 empresas listadas localizadas em 139
países, desenvolvo estimativas para a participação do patrimônio de diferentes
grupos de acionistas em nove regiões do mundo e em 16 setores.
Descobri assim que, em
2018, 55% do patrimônio global pertencia a vários intermediários financeiros
(incluindo 27% por fundos mútuos e de pensão), seguidos por 16% de propriedade
de empresas não financeiras, 6% do governo e outros 6% de indivíduos e fundações,
com os 16% restantes do patrimônio não tendo nenhum acionista identificável.
Embora o capitalismo
de gestão de ativos não se limite aos Estados Unidos, sua presença geográfica é
altamente variada. Em alguns países (por exemplo, Austrália), é impulsionado
pelas participações de investimento de fundos mútuos e de pensões domésticos,
enquanto em outros (como o Reino Unido), os maiores acionistas são gestores de
ativos dos EUA. Em grande parte por causa da presença dos Três Grandes em
países fora dos EUA, os mercados, as participações acionárias dos fundos de
investimento dos EUA se espalham muito além das fronteiras dos Estados Unidos,
permitindo que eles ocupem o núcleo da rede corporativa global.
A influência
incomparável das Três Grandes é demonstrada pelo fato de que elas aparecem como
acionistas em 20% das empresas dos países não americanos listadas em bolsa,
respondem por 9% dos investimentos transfronteiriços e possuem 4% das ações não
americanas. Como os três maiores acionistas do mundo, os Três Grandes também
estão entre os 10 maiores acionistas da Europa e do Leste Asiático.
Os investimentos das
Três Grandes, no entanto, estão em grande parte ausentes em várias regiões do
mundo, incluindo os Estados pós-soviéticos, Oriente Médio, África e Sul e
Sudeste Asiático. É preciso destacar a importância dos índices do mercado de
ações e provedores de índices para determinar onde o capital dos gestores de
ativos é alocado.
Conceitualmente, este
artigo tem como objetivo apresentar três argumentos amplos. Em primeiro lugar,
dado que mais da metade de todas as empresas listadas globalmente são agora de
propriedade direta de empresas financeiras, este artigo propõe que as finanças
desempenham um novo papel na economia global como proprietárias de empresas,
concedendo aos atores financeiros formas diretas de influência sobre as
atividades econômicas dessas empresas.
Em segundo lugar, como
o aumento da propriedade financeira nas últimas duas décadas foi impulsionado
pela proliferação de fundos de índice, argumenta-se que as Três Grandes
passaram a ocupar uma posição de destaque estrutural na rede global de
propriedade corporativa. Dado que são os três maiores acionistas do mundo, suas
atividades podem servir como um indicador dos desenvolvimentos futuros no
cenário global de investimentos.
Em terceiro lugar,
embora a estratégia de investimento predominantemente passiva das Três Grandes
as torne proprietárias universais, este artigo mostra que as Três Grandes detêm
investimentos de tamanhos desproporcionais não apenas em setores econômicos,
mas também em regiões do mundo. Esta distribuição desigual dos investimentos
sugere que a dispersão do investimento passivo fez com que certos sectores e
regiões se tornassem locais privilegiados de investimento através da sua
inclusão nos índices bolsistas.
Embora a pesquisa
destaque o modo pelo qual os gestores de ativos são geograficamente seletivos
enquanto investidores ativos, este artigo enfatiza que o aumento do
investimento passivo produziu um cenário distintamente novo e geograficamente
desigual dos fluxos globais de capital.
Fonte: Por Albina
Gibadullina - Departamento de Geografia da British Columbia University com
tradução de Eleutério F. S. Prado, em A Terra é Redonda
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