quarta-feira, 31 de julho de 2024

Fábio Zuker: ‘O horror dos nacionalismos’

Quando escrevi um artigo, publicado no jornal Folha de S. Paulosobre a cooptação reacionária do conceito de descolonização por projetos nativistas, tinha certeza que minha comparação entre o Hamas e a extrema direita israelense causaria forte repercussão em alguns meios.

O que eu não imaginava é que receberia como resposta um texto pró-guerra que defende precisamente o uso do conceito de descolonização para sustentar que o Hamas possui legitimidade e legalidade para massacrar a população civil israelense. Israel seria um Estado ilegítimo e, portanto, estaria sujeito a uma guerra de extermínio.

Em réplica ao meu artigo, Bruno Huberman me acusou de “afirmar que as vítimas, os palestinos, ‘são corresponsáveis nesse genocídio'”. Ora, bastaria o autor não ter suprimido o sujeito da frase que escrevi, demonstrando respeito aos leitores e leitoras: “Yahya Sinwar, Ismail Haniya, Mohammed Deif e demais líderes do Hamas são corresponsáveis nesse genocídio”.

O que me choca não é apenas a má-fé de Bruno Huberman, que distorceu o que escrevi para me difamar, mas sobretudo que replique a essência do racismo antipalestino e antiárabe cultivados pela extrema direita israelense, que confunde o povo palestino com três terroristas que, como o Wall Street Journal reportou a partir de mensagens de Sinwar, veem a morte de civis em Gaza como um sacrifício necessário.

Não confundir os palestinos com o Hamas é fundamental para qualquer debate sério. Basta atentar para a forte oposição que o grupo enfrenta. De acordo com uma pesquisa, 67% da população de Gaza tinha, logo antes do 7 de Outubro, pouca ou nenhuma confiança no Hamas.

Ao defender uma guerra de extermínio, o autor se torna cúmplice tanto do assassinato a sangue frio e do estupro de civis israelenses quanto da devastadora resposta israelense, do bombardeio indiscriminado e do uso da fome como arma de guerra. Uma ação violenta tem como resposta outra ação violenta. Se Bruno Huberman propõe que esse é o caminho do ataque, também aceita que esse será o caminho da resposta, em uma defesa da barbárie como forma de exercício da política.

Além disso, apesar de eu ter escrito que há uma “assimetria brutal” no que diz respeito às capacidades militares de palestinos e israelenses, fui acusado de falsa simetria.

Por fim, é de impressionar que o autor tenha esquecido que a revolta árabe de 1936-39 aconteceu no contexto do nazismo e em meio às dificuldades que judeus enfrentavam para escapar da Europa.

Nesta réplica, gostaria de centrar minha reflexão aprofundando o que escrevi, não na sua distorção, debatendo a perspectiva de que Israel seria uma colônia e, portanto, massacrar seus civis seria legítimo. Parto de quatro dimensões: a ética, a jurídica, a histórica e a política. Vamos aos argumentos.

Do ponto de vista ético, a defesa dos ataques de 7 de outubro é problemática por dois motivos: conforme investigação da Human Rights Watch, o ataque do Hamas foi desenhado mirando a população civil israelense, o que por si só já é condenável. Porém, caso o defensor dos ataques nutra pouca simpatia pela vida de judeus, deveria se preocupar com as consequências dessa ação para a vida de civis palestinos.

Israel tem um histórico de matar desproporcionalmente seus inimigos. Para seus estrategistas militares, essa é uma forma de dissuadir novos ataques – a chamada doutrina Dahiya foi elaborada no conflito no Líbano em 2006, quando Israel destruiu um bairro xiita de Beirute onde residiam grande parte dos líderes do Hezbollah.

Assim, era óbvio para qualquer um que o 7 de Outubro desencadearia uma reação devastadora de Israel. Defender o massacre de civis israelenses pelo Hamas, quando toneladas de bombas serão despejadas na população civil inocente é uma grave falha ética, que deixa transparecer que essas pessoas não nutrem um apreço real pela população palestina.

Do ponto de vista jurídico, cito brevemente o artigo de Kenneth Roth recentemente publicado na New York Review of Books. Para o ex-diretor da Human Rights Watch, os ataques do Hamas foram “uma violação flagrante” do direito internacional humanitário, que proíbe matar ou raptar civis e considera esses atos violações graves ou crimes de guerra.

Isso pois, enquanto o direito internacional reconhece o direito de resistência armada, ele não é absoluto, mas limitado pelo direito internacional humanitário. Esse é o bê-á-bá das aulas de direito e relações internacionais.

Do ponto de vista histórico, é importante lembrar alguns fatos. O sionismo não nasceu como ideologia de colonização da Palestina. Nasceu em meio à fragmentação dos impérios multiétnicos (de Habsburgo, Otomano e Russo) como uma busca pela autodeterminação do povo judeu em um Estado nacional. A grande questão histórica do final do século 19 não era se os judeus poderiam ter um Estado, mas se todos os povos teriam seu próprio Estado.

Por serem impérios geograficamente amplos, grupos étnicos se encontravam espalhados. A fundação de Estados nacionais no Oriente Médio foi marcada por violência extrema para reunir diversos grupos em um mesmo território. Gregos foram expulsos do que hoje é a Turquia moderna e armênios sofreram um genocídio por turcos, por exemplo.

O mesmo aconteceu com os judeus, que viviam dispersos. Sua concentração em Israel não se deu por um movimento colonial, mas por repetidos processos de limpeza étnica que sofreram nos países onde viviam.

A revolta árabe de 1936-39 é um capítulo adicional. Foi erigida não apenas contra os britânicos, mas também contra os judeus da Palestina – cerca de 500 foram mortos – e dos que tentavam escapar do nazismo. Do ponto de vista político, a revolta resultou no fechamento, pelo Reino Unido, da Palestina à imigração judaica às vésperas do Holocausto.

Poucos anos depois, frente à recusa das elites árabes em aceitar Israel, o nascente Estado israelense perpetrou a Nakba, a limpeza étnica e a expulsão de 750 mil palestinos durante a guerra de 1948. Não devemos empregar meias palavras, mas condená-la em absoluto.

Esse é o horror dos nacionalismos. O processo de definição de fronteiras nacionais permanece uma das principais causas de desestabilização política na região.

A história poderia ter sido diferente se a compreensão inicial de que um Estado judaico era um projeto anticolonial e legítimo tivesse sido mantida entre as elites árabes. Esse foi o entendimento do rei Faiçal, o principal líder das revoltas árabes, no acordo Faiçal-Weizmann, de 1919.

Para que não restem dúvidas: palestinos, judeus, drusos e beduínos são todos povos nativos do território entre o mar Mediterrâneo e o rio Jordão. O nativismo é o projeto político da extrema direita israelense e do Hamas, que essencializa esse pertencimento excluindo os outros.

Por fim, a dimensão política. É difícil apontar caminhos para encerrar esse conflito devastador, mas é relativamente fácil prescrever a receita para perpetuá-lo: manter a ocupação israelense da Cisjordânia e o cerco a Gaza, aprofundar a desumanização a que os palestinos são diariamente submetidos e aumentar o poder de dois grupos políticos fanáticos, cada um almejando todo o território para si e se explodindo em nome da indigeneidade.

O caminho para a resolução do conflito não é a destruição de Israel, que os supremacistas buscam legitimar sob o nome de descolonização, tampouco a destruição da Palestina.

Como escreveu Edward Said, o principal intelectual palestino, “a questão é: quanta terra Israel vai de fato ceder pela paz?“. Parece-me ser precisamente aqui que a pressão internacional deve incidir.

*Réplica ao artigo de Bruno Huberman

 

¨      Sua majestade o coelho e o pato manco. Por Salem Násser

A recente visita de Benjamin Netanyahu aos Estados Unidos e o seu discurso perante o Congresso daquele país me fizeram lembrar de um artigo que escrevi há vários anos e das figuras que evoquei à época, o pato manco e o coelho de uma certa fábula.

Relendo o texto, achei que ele poderia ser republicado tal como havia aparecido então. Não só os paralelos com o que vivemos hoje estão presentes, mas há muito a aprender, voltando a discussões do passado, sobre o que vem acontecendo na Palestina e no mundo.

Se a leitora ou o leitor fizer a leitura buscando essa luz sobre a atualidade, penso que verá coisas interessantes.

Fábulas são pródigas em encontros de coelhos e leões.

A minha favorita imagina um coelho acadêmico que prepara tese cujo argumento central diz serem os coelhos os verdadeiros predadores de raposas, lobos e outros bichos carnívoros; um a um, raposas e lobos, atraídos pela perspectiva de uma bela refeição, mas intrigados pelo ar compenetrado com que o coelho escreve, e logo divertidos pelo absurdo da tese, são encaminhados para a toca ou para trás de uma moita onde o leão os devora e distribui seus ossos em pilhas ao seu redor.

A mensagem pretendida é que pouco interessa a validade teórica ou a coerência da tese que se defende; o importante é o orientador ou o padrinho que se tem.

A pequena estória não detalha a natureza do arranjo que une coelho e leão e que os leva a cooperarem na empreitada de caça. A conclusão de que o leão seria o orientador elimina apenas, em princípio, a possibilidade de ser ele mero instrumento nas mãos do coelho, as presas terceirizadas que permitiriam que este se transmutasse em predador, ainda que não fosse por amor à carne.

O maior poder do felino, que permite ao coelho a defesa de sua tese, é também o elemento que falsifica e nega a própria tese: a parceria com o leão não faz do coelho um predador de lobos e raposas; faz, antes, com que qualquer poder do coelho seja dependente da vontade do leão.

Assim, se viesse o dia em que o rei dos animais decidisse rever os termos do acordo e retirasse seu apoio incondicional à tese do coelho – ou porque teria se fartado de carne, ou porque o desaparecimento de tantos lobos e tantas raposas comprometeria o equilíbrio natural, ou porque as notícias do poder excessivo daquele ser orelhudo comprometeriam a imagem do leão e projetariam sombras sobre a legitimidade de seu governo sobre a floresta e tudo que nela há – qual não seria nossa surpresa se víssemos de repente o coelho avançar sobre o leão, com a esquerda agarrar-lhe a juba e com a direita esbofetear-lhe violentamente a face e logo, com as patas à cintura e os olhos esbugalhados, vermelhos, gritar com imensa raiva e infinita maldade: quem você pensa que é?! Sou eu quem manda neste mato! essa coroa é minha!!

Foi algo parecido que aconteceu há alguns dias, quando os Estados Unidos deixaram passar no Conselho de Segurança da ONU – vil traição! – uma resolução, que talvez tenha ajudado a cozinhar nos bastidores – suprema traição! infâmia! – que condenava a contínua construção de assentamentos em territórios palestinos ilegalmente ocupados. E a fúria só aumentou quando John Kerry discursou apontando os mesmos assentamentos como o principal óbice à paz.

Não que alguém tenha chegado a denunciar a verdadeira natureza dos assentamentos. O máximo que se permite dizer é que constituem passos que impossibilitarão a existência ou a viabilidade de um Estado Palestino. Mesmo as violações dos direitos fundamentais dos palestinos só são lembradas de modo acessório.

A verdadeira face da colonização da Cisjordânia e, sobretudo, do entorno de Jerusalém, aquela do roubo da terra e da limpeza étnica nunca é evocada (pause um pouco o leitor antes de julgar se o uso da expressão forte se justifica ou se é mera estridência retórica que convida alguns a abandonar a leitura).

Tudo que se diz, na verdade, é para o bem do coelho. O que se quer, no limite, é proteger Israel de si mesmo, evitar, no extremo, que cometa suicídio. O sentido pretendido para isso é que, sem os dois Estados, ficará obstado o propalado projeto de um país a um tempo judeu e democrático – pessoas inteligentes não hesitam por vezes em torturar as palavras, combinando os contrários, para fazê-las dizer o impossível.

A continuarem os assentamentos, dizem alguns amigos de Israel, não havendo o reconhecimento de uma Palestina onde se possa concentrar todos os palestinos, a incorporação destes num Estado único comprometerá as chances de que seja esse Estado judeu, ou seja, mais de seus cidadãos judeus e de outros judeus do mundo do que seus cidadãos não judeus, ainda que naturais da terra, e em grande medida puro geneticamente porque se pretende que deva o território pertencer aos beneficiários de uma promessa divina e seus descendentes apenas.

Por outro lado, dizem, não poderá esse Estado ser democrático, especialmente se quiser de fato ser judeu. Isso porque terá que controlar a demografia para evitar que minorias não judias se tornem maioria e terá que estabelecer diferenças entre seus cidadãos que podem no limite chegar a um sistema de apartheid.

O que esquecem de dizer é que o apartheid está em grande medida instalado, nos territórios ocupados e em Israel, e que ele também participa de um esforço contínuo de mudança da demografia e de seu controle. Os assentamentos são apenas a ponta mais visível da máquina que opera para limpar a terra de palestinos.

(então, sobre vocabulário, quando alguém se instala na terra dos outros, se substitui aos habitantes naturais e impede o acesso destes a partes crescentes de seu território, à sua água, às suas lavouras e outros trabalhos e, portanto, os convida a sair, a isto se chama limpeza étnica, por mais que se queira afogar o nome em complexidades regulatórias e voltas retóricas).

Ainda assim, festejemos a primeira resolução do Conselho de Segurança em muito tempo a censurar Israel e o primeiro discurso de um Secretário de Estado que faz criticas abertas ao maior dos aliados, o melhor dos amigos, ainda que logo corram os americanos a nos dizer que não se pode gravar na pedra a fala de Kerry: nem se pense em propor um voto no mesmo Conselho de Segurança sobre seu conteúdo; os Estados Unidos vetariam!

É comum dizer que o Presidente americano é, no último ano de seu segundo mandato, um pato manco, já não pode muito. Barack Obama esperou até ser um pato manco das duas patas para fazer um gesto mais significativo de censura contra Israel.

Talvez essa crítica derradeira deixe algum legado, e talvez seja um sinal de que a posição israelense se aproxime do limite até onde seus muito generosos apoiadores – aqueles que hoje, junto com o leão, tomam bofetadas furiosas do coelho – podem ir.

Mas talvez a mensagem central seja mais sombria: só um presidente americano que já não tenha uma carreira política futura – que poderia ser esmagada pelas garras do coelho todo poderoso – pode fazer o menor dos gestos.

Se o leão não corrigir logo o rumo, só nos restará esperar, ou que venha uma revolução dos bichos, alguns cansados do arranjo injusto, outros cansados de servir a um coelho caprichoso, ou que a natureza venha estabelecer um novo equilíbrio. E a natureza, com se sabe, não tem compromisso com a justiça, mas é sempre implacável.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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