O relato de médico que perdeu paciente para
dengue pela 1ª vez em 20 anos
Há quase 20 anos
tratando casos graves de dengue, o infectologista Gerson Salvador não tinha
ainda visto um paciente seu morrer por causa disso — até o Brasil atravessar a
sua pior epidemia da doença na história recente.
"Dia triste.
Ontem perdi a primeira paciente com dengue após quase 20 anos atendendo casos
graves. A família perdeu, São Paulo perdeu, o Brasil perdeu Maria", disse
o médico do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP) em um relato
emocionado em uma rede social publicado no fim de março.
"Maria morreu de
condições urbanas precárias, morreu de colapso climático, Maria morreu de
choque refratário."
Salvador cuida de
pessoas infectadas com dengue desde 2005, quando ainda era estudante de
medicina, e enfrentou neste ano uma situação sem precedentes.
Nos primeiros meses de
2024, o Brasil registrou mais de 3,5 milhões de casos prováveis de dengue e um
patamar inédito de quase 1.600 mortes por causa da doença, segundo dados do
Ministério da Saúde.
Uma delas foi Maria, a
paciente que Salvador não conseguiu salvar.
Poucas horas depois de
chegar ao hospital, o organismo de Maria, em especial o sistema cardiovascular,
já não respondia mais às medidas tomadas pelos médicos para mantê-la hidratada
ou sua pressão arterial e oxigenação do sangue sob controle.
A dengue normalmente
não causa casos graves assim, explica o infectologia. Normalmente, a doença é
branda, com cerca de mil pessoas em média com sintomas leves para cada uma que
enfrenta complicações.
Mas Maria havia
procurado ajuda médica quando seu estado já estava grave demais.
"É frustrante,
não só como médico, mas como pessoa, ver alguém morrer de uma doença que
poderia ter sido evitada", conta Salvador em entrevista à BBC News Brasil.
• Um aspecto cruel
Salvador conta que um episódio
de anos atrás o fez compreender um aspecto particularmente cruel da dengue.
O ano era 2013, e
Salvador já trabalhava no hospital da USP.
Havia um surto da
doença nos bairros vizinhos do Rio Pequeno e do Jaguaré, na Zona Oeste de São
Paulo, com milhares de casos atendidos e notificados.
Salvador visitou uma
comunidade da região onde foram encontrados muitos tonéis de água. O objetivo
era alertar sobre o risco de ter água parada acumulada, que serve de criadouro
dos mosquitos Aedes Aegypti, que transmitem a dengue.
Foi quando o médico
ouviu dos moradores: "Doutor, na favela cai água uma vez por semana, se
não guardar, morremos de sede".
Salvador diz que
naquele momento entendeu que a dengue "não é apenas uma doença das
pessoas, mas também das cidades, especialmente em contextos de
desigualdade".
"A dengue é, sim,
uma doença de populações negligenciadas", afirma o médico.
"Parte da
população vive em favelas e muitos não têm acesso ao saneamento básico. Essa
condição propícia ao mosquito cria um ambiente favorável à propagação da doença
e contribui para a catástrofe que é o avanço da doença."
• Doença tem se expandido para novos
territórios
A crise atual não é
devida a uma forma mais forte ou grave da dengue do que no passado, explica
Salvador.
O problema, diz ele,
está nos surtos que a dengue tem causado em centenas de cidades brasileiras de
uma forma como não se via antes.
Conforme o vírus
infecta mais pessoas, o número de casos que oferecem risco à vida também
aumentam.
Nas últimas décadas, o
Aedes aegypti tem espalhado o vírus da dengue por regiões onde antes não era
comum encontrá-lo.
"Houve uma
transformação significativa na distribuição da doença", diz o médico.
"Antes, não
tínhamos casos de dengue abaixo do Paraná. Agora, a dengue avançou para outros
estados do Sul do Brasil e até para outros países da América Latina, como
Argentina e Paraguai."
Houve registro de
aumento de casos também nos Estados Unidos, no México e até mesmo do outro lado
do oceano Atlântico, na Europa.
"Estamos passando
por um período inegável de aumento das temperaturas globais, com recordes de
calor, o que tem impacto na distribuição do Aedes aegypti", diz Salvador.
"A cada ano, mais
territórios são expostos ao mosquito e à dengue", explica.
No Brasil, diz o
médico, a urbanização desordenada, com condições de saneamento ruins, contribui
para o cenário.
De acordo com o Censo
de 2022, o Brasil tem mais de 10 mil favelas e comunidades urbanas, em que
vivem 16,6 milhões de pessoas (8% da população brasileira).
Ao mesmo tempo, 24,3%
da população brasileira, ou aproximadamente 49 milhões de pessoas, não têm
acesso a uma estrutura adequada de saneamento básico.
"Precisamos
controlar a dengue com políticas públicas, distribuição correta de água
[potável], gestão urbana adequada em determinadas áreas."
• Os sinais de alerta da doença
Depois de ser picada
por um mosquito infectado, a pessoa passa por um período em que o vírus se
reproduz pelo corpo.
Isso leva a sintomas
como febre alta e dores musculares intensas, que são características típicas da
doença.
Mas algumas pessoas
podem desenvolver complicações graves durante uma infecção devido à resposta do
seu próprio sistema imunológico, explica Salvador.
"Isso ocorre
quando o sistema imunológico reage de forma excessiva, causando danos aos órgãos
e tecidos do corpo", afirma o médico.
"Por exemplo,
podem ocorrer hemorragias, perda de líquidos e danos ao fígado, coração e
sistema nervoso central."
De acordo com o
Ministério da Saúde, alguns sintomas são sinais de alerta:
• Dor forte e constante na barriga;
• Vômitos que não param;
• Inchaço com líquido no corpo (como
barriga inchada, peito ou coração);
• Sensação de tontura ao levantar ou
desmaios;
• Fígado inchado, onde você pode sentir
abaixo das costelas;
• Sangramento em partes delicadas do
corpo, como gengivas ou nariz;
• Sentir-se muito cansado ou irritado.
"Normalmente,
esses sinais aparecem quando a febre começa a melhorar, a partir do terceiro
dia da doença", diz Salvador.
"Mas pode
acontecer de o quadro piorar de maneira abruptamente grave, sem sinais de
alerta."
Para evitar que os
casos graves passem despercebidos, o infectologista diz ser necessária uma
organização de redes assistenciais para cuidar dos quadros mais leves e
identificar quem apresenta potencial gravidade.
A necessidade de novas
terapias e drogas
Embora uma vacina da
dengue esteja disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) pela primeira vez, sua
aplicação foi de início restrita, apenas para crianças e adolescentes de 10 a
14 anos de 521 municípios selecionados pelo Ministério da Saúde.
Idosos com 60 anos ou
mais não puderam ser vacinados, pois esse grupo não foi incluído nos testes de
eficácia e segurança do imunizante.
No entanto, a pasta
ampliou a faixa etária atendida temporariamente em cidades onde há doses que
estão prestes a vencer para pessoas idades entre 4 e 59 anos.
Nas clínicas
particulares, as vacinas já se esgotaram devido à capacidade limitada de
produção da farmacêutica responsável, que dá prioridade ao SUS.
Uma dificuldade no
tratamento contra a doença é que ainda não há um medicamento efetivo
especificamente para a dengue.
"Os protocolos de
tratamento ainda se baseiam nas tecnologias dos anos 1980, quando a doença
começou a se espalhar pela América Latina e causou epidemias em Porto Rico e em
Cuba", lembra Salvador.
O médico espera que a
"corrida" do desenvolvimento de remédios para a doença se
intensifique em breve, tal qual ocorreu contra a covid-19.
"A grande
diferença da dengue para a covid é que a covid parou a economia do mundo, parou
os países centrais e fez com que houvesse recursos para uma corrida por
medicamentos, por vacinas e para distribuição, porque é necessário conter a
pandemia em escala mundial", diz Salvador.
"Enquanto a
dengue era algo mais restrito a países em desenvolvimento, não era tão
interessante. Mas, com a ameaça da dengue atingindo até mesmo nações
desenvolvidas, como os Estados Unidos, há um crescente interesse global na
busca por soluções."
Mas o médico avalia
que o sucesso na luta contra a doença requer uma abordagem abrangente, que leve
em consideração não apenas a pesquisa científica, mas também questões
socioeconômicas e ambientais.
Ele descreve o cenário
ideal para um "país sem dengue": com vacina, acesso à água potável,
saneamento básico e habitação digna para todos.
"Se não
conseguirmos cumprir essas tarefas, infelizmente, veremos a dengue avançar e
produzir epidemias cada vez piores", conclui.
Fonte: BBC News Brasil
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