Velhice, doença e morte são dons
disfarçados de desastres, afirma Chandra Candiani
Talvez seja preciso
ser uma pessoa especial, ou um poeta, para poder abordar os monstros - que,
para nós, humanos, correspondem aos nomes de doença, velhice, morte - com um
“efervescente senso de loucura” e, ao mesmo tempo, com uma grande seriedade. Ou
talvez por ter passado por muitas dores e ter feito dessas experiências um
trabalho e uma ética. Uma década depois de La bambina pugile (A garota
boxeadora), a coletânea de poemas que a tornou amada por um público muito mais
amplo do que aquele que normalmente assiste às leituras, e depois de várias
obras poéticas e narrativas, Chandra Candiani retorna com I visitatori celesti
(Os visitantes celestiais), que é ao mesmo tempo um talismã, um texto de
meditação e também uma oportunidade de contar sua história: o pai violento, a
doença mental da mãe, seu corpo doente e cada vez mais frágil.
E depois a escolha, há
alguns anos, de deixar Milão onde nasceu: “Ir morar num campo na montanha aos
setenta anos é loucura, mas é tão bom seguir o que chama sem se deixar impedir
pelas razoáveis dúvidas. E depois? Depois veremos. A louca sabedoria, a segunda
infância, é um dom inesperado que os anos acumulam migalha por migalha; cabe a
nós, então, abrir o saco e semeá-lo, jogá-lo ao vento”. No livro, como se
estivesse antecipando as perguntas habituais, ressalta: “Não viemos aqui para
fugir do mundo, mas para se aproximar da complexidade de nascer-viver-morrer-se
transformar”. Tão longe, mas ainda assim tão próxima.
<><> Eis a
entrevista.
·
Velhice, doença, morte: abordou esses temas
também em seus outros livros, mas só agora os aborda abertamente. Por quê?
Porque estou vivendo
com eles, tenho a idade e a fragilidade certas para enfrentá-los e tenho a
companhia do Caminho que percorro para querer fazê-lo com um sentido
de aventura e um desejo de conhecimento. Eles são os removidos na maioria das sociedades humanas. No entanto, são inevitáveis. Portanto, gostaria de testemunhar
uma maneira diferente de vivenciar o que é impossível de evitar e que talvez
seja um dom disfarçado de desastre.
·
Desastres que você define de forma mais
gentil, “visitantes”.
No budismo Theravada, eles são chamados de "mensageiros celestiais". Eu
preferi chamá-los de "visitantes celestiais" porque eles visitam todo
mundo, mas nem todos aceitam a sua mensagem. E chamá-los de
"celestiais", além disso, é uma aposta e tanto, de fato nada atual em
nossa época de cancelamento e “ignorância” da realidade das coisas. Os
visitantes são, na realidade, quatro: o último é o caminho, o monge errante,
que representa a saída, dedicar a vida ao que importa, despojá-la de ilusões e
da constante autorreferência, vivendo-a para aprender, não conquistar o que
quer que seja. Os visitantes são celestiais, apontam para além de si mesmos.
·
Como encontrou, ou fez com que o budismo a
encontrasse?
Ao voltar há anos
da Índia, onde havia começado a meditar, eu estava me sentindo deslocada,
muito sozinha e não queria nem ficar na Índia nem voltar
para Milão. O budismo me
encontrou, de uma só vez fiz um retiro de vinte e um dias em total silêncio,
meditando das 6 da manhã às 10 da noite, e me vi em casa. Em casa no corpo, na
respiração, na admissão do sofrimento de viver em um mundo que queima, em casa
na ética da não-violência e na visão de que o fim do sofrimento passa por
admiti-lo, vivê-lo e despontar em outro lugar.
·
O que há nessa religião e não em outras?
O corpo, como morada,
lugar de percepção, de estudo da experiência, da realidade. O chamado da
consciência. Uma prática misteriosamente simples que nos faz sentir bem ao
confrontar o mal. A ética do pensamento, da ação, da palavra. A ausência de dogmas, a ausência de
imperativos. A confiança na mudança, na possibilidade de uma revolução
interior, o despertar de nossa verdadeira natureza, fundamentalmente boa. A paz
do desapego.
·
“A natureza é a geografia do divino”, você
disse certa vez em uma entrevista. O que é a natureza para você?
É o lugar onde eu
vivo, durmo, respiro e do qual cuido. É o silêncio, são animais cândidos e
ferozes, árvores seculares, solidão, labuta, admiração, trabalho, renúncia,
alegria, susto, constante companhia, mistério. Para a maioria, felizmente não
para todos, é um fundo ao qual haurir até a exaustão, é um lugar do qual se
defender, uma selvageria que deve ser destruída para que se sentir mais
confortáveis e, sem medo, para torná-la uma extensão confortável dos
interiores, um pano de fundo. Há também aqueles que trabalham para fazer com
que as pessoas entendam que a natureza está viva e que somos parte dela, há
aqueles que lutam para salvá-la e salvar a si mesmos, porque sabem que estamos
interconectados, e há aqueles que, como eu, estão cansados e vão descansar onde
o ser humano é bem pequeno e nos causa ternura e raiva.
·
Além de falar de seus lutos e dores (a
morte dos irmãos, a mãe doente, o pai violento), você fala de um luto
universal: “Por aqueles que morrem no mar, na guerra, de fome e por ser
mulher”. Como podemos aprender a viver esses “outros” lutos?
Como todo luto, abrindo
espaço, sentindo, compreendendo em quais e quantas ameaças vivemos, acordando,
sabendo que o outro somos nós em outra forma e que ignorá-lo é a origem de toda
violência e de todos os finais ruins, e lutando por isso, para que o direito
à dignidade da existência seja um direito de todos os seres
sencientes, não apenas humanos.
·
Gosto quando você associa a velhice a um
certo espírito de desobediência, anárquico: “Agora, como mulher idosa, eu falo,
vou até o fundo, defendo os direitos para mim e para os outros”. A que direitos
se refere?
No momento, para mim,
trata-se da dignidade da pessoa e do corpo de uma mulher idosa. A maneira como
uma mulher idosa é desconsiderada e se torna invisível se não compactuar com o
jogo da juventude eterna. As ameaças aterrorizantes quando se quer contar com
cuidados médicos que não apenas apaguem os sintomas de uma doença, com efeitos
colaterais graves, mas que ouçam os sintomas e os compreendam junto com o
doente. A velhice não
como um descarte e fase final, nem como uma imitação de uma vida sem idade, mas
como um recurso interno, uma possibilidade de constante reflexão, de
compartilhamento uma experiência que, se não for apagada, é um patrimônio
coletivo. Uma velhice falante, que não sofre condescendente. E uma abertura de
espaço, tento limpar o campo entre mim e o outro, deixá-lo desimpedido, de modo
que possa conversar sem interferências preconcebidas.
·
Você escreve algo belíssimo: “O ego é a
ferida que nos precede”. Como resolver esse grande problema que aflige a
espécie humana?
Reconhecê-lo como
ferida muda a perspectiva, paramos de lutar contra ele, o que só o reforça,
paramos de acreditar nele porque causa danos a nós mesmos e aos outros e também
de personificá-lo, é parte de nós, são as nossas deficiências, os vazios, as
necessidades não ouvidas, os não reconhecimentos que se transformam em inveja,
ciúme, desejo de dominação e poder. São poucas as pessoas que admitem as suas
prepotências, as arrogâncias, os buracos disfarçados de pensamentos e gostos
irrepreensíveis. Elas sofrem. Não podem vacilar, sua segurança é guerra,
colonização, são frágeis, gostariam de ser o que não são, não tremem, levantam
a voz. Mas há também os mineiros, aqueles determinados a descer em seu próprio
subterrâneo e trabalhar com picaretas para desenterrar o autêntico, ao custo da
vida.
·
Você diz que adoecer leva a pessoa a uma
nova linguagem, a uma categoria à parte. Muitos e muitas escreveram sobre isso
(estou pensando em Woolf e Sontag): como falar sobre a doença?
Recentemente,
perguntei a um médico sobre os efeitos colaterais de uma cura que ele mesmo
reconhecia como pesada e com consequências irreversíveis, e ele respondeu:
‘Você precisa pensar na doença, não na cura’. É como levar um carro ao mecânico
e confiá-lo a ele, mas para mim o corpo está vivo, é meu aliado, não é um meio
de transporte, é um sujeito. Não se trata apenas de linguagem, mas de visão da
qual a linguagem nasce. Encontrar o outro por meio da palavra consciente e do
silêncio, do diálogo, da escuta da diversidade do outro, traduzir em termos
acessíveis o diagnóstico, o tratamento e as possibilidades de cura. Diálogo em
vez de autoridade. Encontrar um todo, uma história, um sofrimento, não um
conjunto de sintomas. Colocar-se a serviço do corpo e de sua indissolubilidade
da psique. Como a história de um corpo pode ser separada da biografia da
pessoa?
·
O que você confia à poesia e o que à prosa?
À poesia eu só posso
me confiar por inteiro e deixá-la agir, só posso lê-la, não apenas a poesia dos
grandes poetas, mas lê-la em todos os lugares, nos focinhos dos animais, no
silêncio falante das árvores, nos rostos e nas vozes das pessoas, no faltar sempre,
e ver e ouvir através de seus instrumentos sutis, esperando que não me
abandone. A prosa é menos selvagem e feroz, me hospeda, confio a ela o
pensamento, a reflexão sobre as experiências que vivo, o desejo de colocá-las a
serviço dos outros, e compartilhar.
·
Você cita um belíssimo verso de T.S. Eliot, “no meu fim está o
meu começo”. Realmente acredita nisso? Tem medo de morrer?
Não é uma questão de
acreditar, mas de vivenciar. Certamente tenho medo de morrer, um medo sagrado,
mas também desejo de conhecer, sem conceitos, de me aventurar, de me abandonar
totalmente. Espero ser digna de viver a morte.
Fonte: Entrevista para
Laura Pezzino, em La Stampa - tradução
de Luisa Rabolini, em IHU
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