Anita Garibaldi, a brasileira que se tornou
ícone feminino
Em 4 de agosto de
1849, grávida do quinto filho, a revolucionária brasileira Ana Maria de Jesus
Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, morreu por complicações
decorrentes de febre tifoide quando, ao lado do marido Giuseppe Garibaldi
(1807-1882) empreendia uma fuga pela bota italiana, perseguidos por 40 mil
soldados franceses, espanhóis e napolitanos e espreitados por 15 mil homens do
exército austríaco.
Àquela altura, prestes
a completar 28 anos, a catarinense já havia participado de lutas no Brasil, no
Uruguai e na Itália. Primeiro, foi protagonista da chamada Revolução
Farroupilha, conflito entre gaúchos o o governo imperial que resultou na
criação temporária da República Rio-Grandense.
Em 1842, quando estava
exilada em Montevidéu e seu marido batalhou na guerra entre o Uruguai e a
Argentina, ela participou dos confrontos como enfermeira.
Cinco anos mais tarde,
foi para a península itálica, terra de seu marido. Ali atuaram nos confrontos
do chamado Risorgimento, o movimento de unificação dos vários pequenos Estados
italianos em uma só pátria, a Itália.
Por isso, tanto Anita
quanto Giuseppe são reconhecidos como "heróis dos dois mundos". Ela
está sepultada em um monumento dedicado à sua trajetória no Janículo, colina em
Roma.
• Símbolo do protagonismo feminino
Para especialistas,
seu legado histórico é inquestionável — e se torna ainda mais importante dado o
contexto patriarcal em que poucas mulheres se destacavam.
"Ela foi uma
mulher que atuou ativamente na reivindicação de autonomia territorial tanto no
Brasil quanto na Itália, levando em conta os contextos próprios de cada região.
Podemos dizer, então, que a história destes territórios se liga diretamente ao
exercício de Anita nos embates que ocorreram em cada um desses lugares",
comenta a historiadora Giovanna Trevelin, pesquisadora na Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).
A historiadora destaca
que a importância de Anita "está no fato de representar a possibilidade de
mulheres ocuparem espaços ativos na história e construírem não só seus próprios
caminhos, mas também protagonizar grandes momentos da história de um país".
"É certo que sua
relevância nos contextos da Revolução Farroupilha e da Unificação da Itália foi
decisiva não só como uma força única diretamente nos embates, sendo essencial
tanto no estímulo aos enfrentamentos quanto neles próprios, mas ela se faz
ainda mais importante para a história das mulheres", pontua Trevelin.
"Poder estudar
nossa história e encontrar, entre inúmeros personagens masculinos, uma mulher
tão confiante, destemida e corajosa, é basicamente uma revolução dentro do que
normalmente entende-se como história, e isso tem um papel muito único de expansão
de representatividade."
O historiador Vitor
Soares, que mantém o podcast História em Meia Hora, avalia que a importância de
Anita "vai muito além da sua atuação na Revolução Farroupilha ou na
Unificação da Itália", pois "ela é um ícone da emancipação feminina
no Brasil, por ter subvertido os papéis tradicionais de gênero de sua
época".
Terceira dos 10 filhos
de um tropeiro com uma descendente de açorianos da região de Lages, Anita teve
uma infância pobre, morava em casa de pau-a-pique em Morrinhos, onde hoje é o
bairro Anita Garibaldi, no município de Tubarão. Seu pai morreu quando ela era
adolescente e sua mãe passou a trabalhar como empregada doméstica.
Os ideais republicanos
pelos quais ela lutou em vida teriam sido aprendidos por um tio paterno, que
costumava palestrar em sua casa sobre a necessidade de uma mudança para esse
regime. Aos 14 anos, Anita casou-se com um sapateiro — mas o enlace durou pouco.
Quatro anos mais
tarde, ela conheceu Giuseppe, quando ele comanda tropas farroupilhas em Santa
Catarina. Foi paixão à primeira vista e, a partir dali, ela passaria a
acompanhar o revolucionário italiano.
• Resgate republicano
Em uma época de
mulheres apagadas pela história, ela não só se tornou guerreira como acabou
sendo valorizada pelo marido — e os pesquisadores atestam que isso foi
fundamental para que seu nome não acabasse esquecido ou subvalorizado.
"Em um período em
que as mulheres eram frequentemente relegadas a papéis subalternos, Anita se
destacou como uma combatente e líder, mostrando que a participação feminina é
crucial em todos os aspectos da vida social e política", afirma Soares.
"Sua trajetória inspira inúmeras mulheres a se engajarem na luta por
direitos e justiça social."
"Segundo relatos
presentes principalmente em diários da época, nota-se que ela foi reconhecida
em seu tempo por sua coragem e bravura diante dos embates que enfrentava",
diz Trevelin, lembrando que ela era vista tanto por companheiros como por adversários
como "uma mulher muito forte e destemida".
Mas a sedimentação
histórica do reconhecimento de Anita não foi automático. "Ela viveu no
século 19, período que conservava um imaginário muito patriarcal […]. Era
extremamente estranho pensar nas mulheres ocupando um lugar ativo em guerras e
revoluções. […] Não quer dizer que por não ser socialmente aceito, mulheres
nunca tomavam frente nos embates", diz a historiadora.
Isso fez, segundo
explica Trevelin, que Giuseppe se destacasse como herói "em um primeiro
momento". O resgate do papel de Anita aconteceria anos mais tarde, após a
Proclamação da República, "na ânsia pela construção de uma identidade
nacional, e brasileira, no início do século 20", explica a historiadora.
E, para isso, houve
uma contribuição muito grande do próprio Giuseppe. Ele mantinha um diário de
memórias e, no final dos anos 1860, deu longos depoimentos ao escritor
Alexandre Dumas (1802-1870), que escreveu Memórias de Garibaldi.
Na verdade, Giuseppe
rascunhou o texto em 1849, quando estava exilado em Tanger, no Marrocos.
Confiou o material ao escritor americano Theodore Dwight, que primeiro publicou
o relato em inglês, nos Estados Unidos. Mais tarde, Giuseppe pediu que seu
também amigo Dumas fizesse a nova versão, enriquecendo-a com mais informações.
"Anita pouco foi
lembrada no seu tempo. Ninguém ousaria apresentá-la com matiz de heroína
indômita em dois mundos. Isso ocorreu a partir das Memórias de Garibaldi,
delineadas após a morte de Anita, certamente não isentas de subjetivismo do
autor […]", escreveu a historiadora Hilda Agnes Hübner Flores na obra
Anita Garibaldi: A Criação do Mito, publicada em 2007.
Uma terceira versão
dessas memórias acabaria sendo publicada pela alemã Elpis Melena (1818-1899),
que também se tornaria próxima a Giuseppe Garibaldi.
• Uma história sob o ponto de vista de
Giuseppe
Assim, a história de
Anita acabou documentada a partir do ponto de vista de Giuseppe. "Em seus
escritos, Giuseppe não economizou adjetivos a respeito dela. Disse que desde o
primeiro momento de embate ela não se intimidou, colocando-se à frente das lutas,
incentivando seus colegas, liderando. Caracterizou-a como uma
mulher-soldado", afirma Trevelin.
Para a historiadora,
nos diários de Giuseppe, construiu-se Anita "como heroína já nas primeiras
linhas". "E isso embasou muito do que foi escrito sobre ela depois,
seja no âmbito da história ou da literatura", explica.
"Sendo assim, em
um primeiro momento, seu protagonismo foi silenciado pelo contexto em que
vivia. Porém, reafirmado anos depois nas palavras de seu já renomado
companheiro. E, posteriormente, nutrido pela pesquisa história a partir dessa
primeira fonte", contextualiza.
"Se na esfera
masculina o alferes Tiradentes, traidor do império, passou a ser visto como
exemplo de patriotismo para as novas gerações, Anita Garibaldi, a 'heroína dos
dois mundos', passou a ser apresentada como modelo feminino de virtude cívica",
atesta Flores.
Ela recorda que
"o fascismo italiano veiculou o nome Anita a interesses patrióticos",
entre os anos 1930 e 1940, "o integralismo no Brasil deu seu nome a vários
núcleos políticos e o líder comunista Luís Carlos Prestes [(1898-1990)] batizou
a filha com o nome de Anita".
"Em sua terra
natal, Santa Catarina, é nome de dois municípios: Anita Garibaldi e
Anitápolis", destaca a historiadora. No Brasil, em 2012, Anita Garibaldi
teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Fonte: Deutsche Welle
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