Dilema da autonomia e da fé: a decisão do
STF sobre as testemunhas de Jeová
No reino das leis,
onde a balança da justiça tenta equilibrar direitos e deveres, surge um dilema
que transcende o mero formalismo jurídico. No dia 8 de agosto de 2024, o
Supremo Tribunal Federal (STF) terá em suas mãos um caso que pode ser descrito
como um verdadeiro “teste de fé” jurídico, ocasião em que se deparará com um
caso que exige mais do que a interpretação de textos legais, já que ele pede
uma reflexão profunda sobre a autonomia do paciente e o respeito às crenças
religiosas. Nesse sentido, os Temas 952 e 1.069 não são apenas números ou
códigos; são histórias de vidas, escolhas e o embate entre a religião e a
medicina.
Imaginem a cena: uma
mulher testemunha de Jeová está internada em um hospital. Sua saúde está em
risco e uma transfusão de sangue seria a solução. O problema? Ela acredita que
esse procedimento vai contra suas convicções religiosas. O dilema está lançado:
os médicos têm a responsabilidade de salvar vidas, mas até que ponto devem agir
para respeitar as crenças de um paciente? E o STF, em sua sabedoria quase que
divina, terá que decidir se a autonomia da paciente deve ser respeitada, mesmo
que isso possa levar a consequências fatais.
E por que é que
estamos falando de testemunhas de Jeová? Bem, essas pessoas não são novas nesse
drama. Se lembrarmos da história, veremos que, ao longo dos anos, elas foram
perseguidas por diversas razões, principalmente devido às suas crenças que
desafiam normas e expectativas sociais. Desde serem forçadas a abdicar de seus
direitos básicos até serem perseguidas por não participarem de atividades
militares, a história das testemunhas de Jeová é marcada por um sofrimento que
não pode ser ignorado.
Não se pode desprezar
ainda o fato histórico das testemunhas de Jeová na Alemanha. Em 1933, o regime
nazista iniciou uma perseguição sistemática contra elas, levando à prisão e até
à morte de muitos de seus membros. Esse episódio ilustra a extrema dificuldade
de conciliar crenças religiosas com as exigências de regimes totalitários,
mostrando como a fé pode ser severamente testada em tempos de opressão.
• Dramas judiciais
No entanto, em um
toque de ironia que só a vida pode oferecer, as testemunhas de Jeová são hoje
parte de um debate jurídico que poderia ser o roteiro de um drama de tribunal:
“O Caso da Transfusão Perdida”. Enquanto o tribunal debate se a autonomia de um
paciente pode ser considerada absoluta, os advogados estarão lá, e mais uma vez
sobrou para eles, tentando argumentar e convencer, é claro, se o direito à
saúde pode e deve superar as crenças pessoais, enquanto a sociedade observa o
caso como se fosse uma novela, das 21h, é claro.
Spacca
Para contextualizar
melhor, podemos comparar esse caso com outras batalhas jurídicas que envolvem
questões de fé e práticas religiosas. Um exemplo notável é o caso da Christian
Science nos Estados Unidos. Em Commonwealth v. Twitchell de 1993, o Supremo Tribunal
Judicial de Massachusetts (EUA) enfrentou a questão de se uma criança poderia
ser forçada a receber tratamento médico, contrariando as crenças de seus pais,
adeptos da Igreja de Ciência Cristã, que acreditavam na cura espiritual em vez
de tratamento médico convencional. A corte decidiu que, em situações de
necessidade médica, o Estado pode intervir para proteger a saúde da criança,
mesmo que isso implique em contrariar as crenças religiosas dos pais.
Outro exemplo é o caso
de rastafarianos e o uso de cannabis. Em vários países, a legalidade do uso de
cannabis foi debatida não apenas sob a ótica da lei criminal, mas também
considerando os direitos de liberdade religiosa. Tribunais superiores, tal como
o Tribunal Constitucional da África do Sul, enfrentaram a questão de se o uso
da substância deveria ser permitido para praticantes de religiões que a
consideram sacramental, equilibrando as leis antidrogas com o direito à
liberdade de crença.
• STF diante de um dilema
No contexto
brasileiro, o STF, em seu papel de guardião da Constituição, deve agora decidir
se o direito à autonomia do paciente pode ser absolutizado, mesmo quando a
decisão possa levar a consequências fatais. O Tema 952 (RE 979.742) se
concentra exatamente nessa questão: a possibilidade de recusar transfusões de
sangue e o respeito a essa decisão, apesar dos riscos envolvidos.
A complexidade aumenta
quando consideramos que o direito à vida e à saúde, protegido
constitucionalmente, pode entrar em conflito com o direito à liberdade de
religião e crença.
Enfim, o embate é
entre a medicina e a religião, e o STF está no meio desse “jogo de forças”
tentando decidir se o direito à saúde pode, ou deve, vencer a liberdade
religiosa.
Por outro lado, o Tema
1.069 (RE 1.212.272) expande a discussão para um contexto mais amplo,
analisando a autonomia do paciente sob a ótica das mudanças de interpretação
das normas e a necessidade de revisar decisões anteriores com base em novos
entendimentos. Aqui, o debate gira em torno de até que ponto as crenças
pessoais devem moldar as decisões médicas e jurídicas, e como essas decisões
devem ser revisadas ou adaptadas à luz de novos precedentes e interpretações. É
como se estivéssemos assistindo a uma nova temporada onde os personagens
(leitores da lei) devem lidar com mudanças inesperadas no enredo, enquanto
tentam manter a coerência e o respeito por todas as crenças envolvidas.
Para os advogados e
juristas, este é um cenário que exige um equilíbrio entre o respeito às
escolhas pessoais e a necessidade de garantir a saúde e a vida dos indivíduos.
Para os médicos, é um momento de ponderar entre o dever de salvar vidas e o
respeito pelos princípios éticos e religiosos dos pacientes. Para a sociedade,
é um espelho das complexas interações entre direitos individuais e coletivos.
A decisão que o STF
tomará não é meramente técnica; é um reflexo dos valores que nossa sociedade
deseja abraçar. Trata-se de definir se a autonomia do paciente, particularmente
em relação às suas crenças religiosas, é um valor absoluto ou se existem limites
que precisam ser considerados para proteger a vida e a saúde.
A decisão do STF será,
sem dúvida, uma oportunidade de refletir sobre como equilibramos o respeito
pelas crenças pessoais com as responsabilidades de garantir o bem-estar e a
saúde. Afinal, se há algo que a medicina e o direito têm em comum, é que ambos tentam
resolver problemas complexos, a diferença é que um tenta salvar a vida, o outro
a alma, mas ambos às vezes se sentem como se estivessem tentando montar um
quebra-cabeça sem todas as peças.
Como em qualquer
crônica, a vida real não se desenrola com a clareza dos textos legais, mas com
nuances e dilemas que desafiam as definições rígidas. No final das contas, a
decisão do STF será uma oportunidade para refletir sobre como conciliamos
nossas convicções mais profundas com as responsabilidades que temos uns para
com os outros.
• Questão de humanidade
E enquanto esperamos
pela decisão, é essencial lembrar que, por trás dos números e das leis, estão
vidas reais com histórias e sofrimentos. O STF terá que decidir então se a
autonomia do paciente é um valor absoluto ou se há limites que precisam ser
impostos para proteger a saúde e a vida. No fim, essa decisão pode servir como
um lembrete de que a justiça não é apenas uma questão de lei, mas também de
compreensão e empatia.
No grande palco da
justiça, onde os atores são muitas vezes confrontados com dilemas profundos e
complexos, o próximo ato será um reflexo das escolhas que nossa sociedade está
disposta a tomar. E, quem sabe, talvez ao final desse drama, possamos encontrar
uma maneira de equilibrar fé, autonomia e saúde de uma forma que faça jus à
dignidade e aos direitos de todos, de modo que possamos viver felizes para
sempre.
A história nos
ensinará o resultado, mas o verdadeiro ensinamento pode residir na jornada de
ponderação e na consciência de que, em questões de fé e saúde, o direito não é
apenas uma questão de lei, mas de humanidade.
• Os direitos do paciente e a liberdade
religiosa. Por Carlos Eduardo Silva e Souza e Júlia dos Santos Martins
O Código Civil de 2002
introduziu, em seu teor, preceitos que antes careciam de um enfoque social e
coletivo, trazendo adaptações às novas realidades e necessidades da sociedade
contemporânea.
'Sentinela'/Reprodução
Dentre esses
preceitos, encontram-se inscritos os direitos de personalidade, que são
fundamentais para a garantia da dignidade, autonomia e integridade humana, pois
são inalienáveis e universais, fatores que os tornam responsáveis pela base
construtora de todos os outros direitos.
Questões complexas
acabam se apresentando no âmbito dos direitos da personalidade quando
conjugadas sob a perspectiva da prática médica e dos direitos do paciente. A
afirmação é paradoxal, pois o exercício do ofício médico está justamente
atrelado à preservação da vida e da integridade física das pessoas, o que
parece, em certa medida, encontrar sintonia com os fins protetivos dos direitos
da personalidade.
Entre essas questões
complexas, pode-se destacar, por exemplo, as questões de cunho religioso, tal
como se sucede com as situações relacionadas com as Testemunhas de Jeová, que
no exercício de sua fé e religião, não admitem a transfusão de sangue no tratamento
de sua saúde.
A questão complexa é
absolutamente tormentosa, pois envolve o dilema entre a preservação da vida,
norte condutor a guiar a conduta médica, e o direito à liberdade (religiosa),
com expressão maior da autonomia da vontade.
• Caso concreto
De forma ilustrativa,
pode-se lembrar da notícia divulgada em 2022, pelo jornal Estado de Minas, de
que um homem, que era Testemunha de Jeová, teria assinado um termo de recusa à
transfusão de sangue perante um hospital de Belo Horizonte, sendo fiel às suas
convicções religiosas.
Spacca
No entanto, segundo a
reportagem, o hospital teria optado por não reconhecer o documento e realizar o
procedimento mesmo assim. O resultado só poderia ser trágico: o homem, após ter
a sua vontade totalmente ignorada, veio a falecer após sua esposa apresentar
uma determinação judicial para que o processo fosse interrompido.
A notícia reporta
ainda que esposa teria ajuizado uma ação contra a instituição hospitalar,
alegando que as circunstâncias dos fatos demonstravam a prática de
discriminação religiosa e violação à honra de seu marido.
Todavia, a notícia
também reporta que, em decisão fundamentada, o juiz responsável pelo caso
deliberou como indevida a indenização, mesmo com a inobservância das escolhas e
das convicções religiosas, pelo prestígio à vida e o procedimento de urgência
envolvido.
É inegável que essa
situação faz refletir sobre a linha tênue existente entre o artigo 15 do Código
Civil, que diz que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com o risco de
vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica, e o Juramento de Hipócrates
feitos pelos médicos que ensejam por salvar vidas a todo custo.
Diante dessas
questões, o artigo 5º, VI, da Constituição
estipula a inviolabilidade da crença religiosa, ao lado do direito à
vida, como um direito fundamental.
<><> Linha
tênue entre os direitos da personalidade e a prática médica
Sem analisar casos
específicos, a sociedade precisa expandir os seus horizontes acerca da
razoabilidade da aplicação dos direitos personalíssimos perante questões
religiosas, a fim de não se permitir espaço para a incidência de um racismo
religioso guiado puramente pela ignorância da vontade e das escolhas de outrem,
que, em muitas oportunidades, pode evidenciar a escolha existencial.
Os direitos da
personalidade devem ser aplicados em sua totalidade, mas a sua aplicabilidade
deve ser combinada com uma interpretação cuidadosa diante do contexto, dada a
existência dessa linha tênue entre aqueles e a prática médica, conjugando com
equilíbrio os diferentes direitos envolvidos.
<><>
Alternativas
Para a superação
dessas questões já se encontram disponíveis alternativas como as diretivas
antecipadas de vontade, nas quais as pessoas podem estabelecer sobre os
cuidados e os tratamentos que objetivam receber nos momentos em que a sua
capacidade de manifestação restar prejudicada.
Em que pesem as
críticas dirigidas à proposta de revisão e atualização do Código Civil, o texto
proposto pela comissão parece avançar sobre o tema debatido no presente texto,
pois vai além de reforçar a impossibilidade de constrangimento a tratamento médico
ou intervenção cirúrgica.
Encontram-se, entre as
possibilidades do direito que se antevê pelo texto normativo proposto, a
previsão expressa a respeito das diretivas antecipadas de vontade (artigo 15, §
1º), mandato existencial (artigo 15, § 2º), obrigatoriedade de prestação da melhor
assistência médica (artigo 15, § 3º) e a recusa terapêutica (artigo 15-A).
As alternativas
futuras podem se evidenciar como elementos relevantes para que a autonomia
existencial seja preservada na sua integralidade e que não haja espaços
limitados para a liberdade em todas as suas vertentes, inclusive a religiosa.
Fonte: Conjur
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