segunda-feira, 1 de julho de 2024

Se a moda pega! Justiça condena pastores de São Luís por fazerem culto em frente a terreiro de candomblé

A Justiça do Maranhão condenou os líderes religiosos das igrejas evangélicas Pentecostal Jeová Nissi e Igreja Ministério de Gideões a pagarem uma multa de R$ 5 mil por danos morais coletivos.

Além disso, a decisão também determina que os religiosos se abstenham de promover manifestações que ameacem ou perturbem a prática de religiões de matriz africana no Maranhão. A Justiça impôs, ainda, multa de R$2.000 por qualquer nova tentativa de perturbação.

A decisão da Justiça, divulgada nesta sexta-feira (28), veio após os membros das igrejas, sob liderança de Flávia Maria Ferreira dos Santos, Charles Douglas Santos Lima e Marco Antônio Ferreira, realizarem um “protesto”, em abril de 2022, em frente à Casa Fanti Ashanti, terreiro de matriz africana, em São Luís. O ato tinha como tentativa a evangelização dos praticantes do candomblé, que faziam parte da comunidade.

Durante o ato, os membros das igrejas faziam uma marcha pelos 12 anos de aniversário da comunidade. A programação previa caminhada com orações ao ar livre pelo bairro, com parada final em frente a Igreja Pentecostal Jeová Nissi, na Rua Militar.

Entretanto, no mesmo dia, os integrantes do terreiro estavam se preparando para uma festividade tradicional dedicada ao orixá Ogum, quando foram surpreendidos pelos protestos.

•           Versão do envolvidos

Os membros da Casa Fanti Ashanti, que fica no bairro Cruzeiro do Anil e funciona há mais de 64 anos, afirmam que os membros das igrejas cometeram o crime de intolerância religiosa. No ato evangelístico, os evangélicos levaram caixas de sons, faixas com dizeres bíblicos e distribuíram panfletos com palavras de ordem contra a religião de matriz africana.

De acordo com uma Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Maranhão, os manifestantes gritavam palavras como "vamos expulsar os demônios" e "a palavra de Deus não pode parar", em referência às práticas religiosas da Casa. Alguns evangélicos chegaram a subir na calçada do terreiro para distribuir panfletos com mensagens que diziam “Jesus te ama”.

Na época, a Casa Fanti-Ashanti emitiu uma nota de repúdio pelo ato das igrejas. A casa afirma ainda que sentiu sua liberdade de culto ser desrespeitada.

O pastor do Ministério Gideões, Charles Douglas, contrapôs a versão da comunidade do terreiro, alegando que não houve ofensas em nenhum momento à Casa Fanti-Ashanti, mas somente os membros da igreja participando do culto ao ar livre, em frente a outra igreja, também pentecostal, voltado a eles mesmos.

"Nós completamos 12 anos de ministério e todo ano fazemos uma marcha para Cristo declarando que o Senhor é a nossa bandeira. Nós percorremos todos os bairros, Cruzeiro do Anil, Isabel Cafeteira. Em locais estratégicos, nós parávamos, evangelizávamos, pregávamos o evangelho de Deus, e o último ponto que paramos foi em frente a uma igreja evangélica. Era o último ponto de parada para fazer o último clamor voltado para o nosso ministério, para encerrar a marcha!", afirmou.

<><><> Veja, na íntegra, a nota da Casa Fanti-Ashanti:

"A Casa Fanti-Ashanti, na pessoa da Ialorixá Mãe Kabeca de Xangô, vem a público esclarecer que no dia 24 de abril, por volta das 17h, um grupo de pessoas de designação evangélica parou em frente ao terreiro e realizou gestos e atitudes desrespeitosas e ofensivas contra a religiosidade de matriz africana e seus membros, conforme vídeos que circularam amplamente nas redes sociais. Ao tempo em que repudiamos as condutas discriminatórias praticadas, enfatizamos que todas as medidas cabíveis referentes a este caso estão sendo providenciadas, para que atos sejam coibidos e seus autores responsabilizados. Exigimos o respeito ao nosso direito fundamental à liberdade de culto e de crença, ao pluralismo e à diversidade religiosa. Agradecemos as inúmeras manifestações de apoio e solidariedade dirigidas à mãe Kabeca e a toda comunidade Ashantiense, por diversos setores e segmentos da sociedade e reafirmamos o firme propósito de dar continuidade aos ritos e celebrações ancestrais que a casa realiza há 64 anos, contribuindo com o fortalecimento das expressões religiosas afrobrasileiras e com a cultura maranhense de forma geral”.

•           Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil

Há 20 anos, a Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, faleceu em decorrência de um ataque motivado por intolerância religiosa. O atentado teve como alvo o terreiro de Candomblé, Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã em Salvador (BA).

O templo foi invadido e depredado por fundamentalistas da Igreja Universal do Reino de Deus, que agrediram o marido de Mãe Gilda violentamente. Dois meses depois, um jornal da mesma igreja publicou uma foto da Ialorixá, com uma tarja no rosto e a manchete: "Macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes". Ao ver a publicação, a idosa de 65 anos teve um ataque cardíaco fulminante e faleceu no dia 21 de janeiro.

Em homenagem à Iyalorixá, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mais de uma década depois do gesto, os ataques que atingiram Mãe Gilda ainda fazem parte da realidade dos praticantes das religiões de matriz africana.

Só no primeiro semestre de 2019, houve um aumento de 56% no número de denúncias de intolerância religiosa em comparação ao mesmo período do ano anterior. A maior parte dos relatos foi feita por praticantes de crenças como a Umbanda e o Candomblé.

Os casos são registrados via Disque 100, número de telefone do governo criado em 2011, que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa – uma média de 50 por mês.

Os números podem ser ainda mais expressivos, já que em muitos casos as vítimas não realizam a denúncia, por medo de que a violência se repita ou de que o Estado não preste o apoio necessário. A professora de geografia, Jamila Prata, de 31 anos, sofreu um ataque verbal quando passava por uma igreja evangélica em uma rua na Vila Sônia, na capital paulista, quando ia a padaria. Candomblecista, ela havia acabado de passar pelo processo de iniciação da religião, que se caracteriza pelo resguardo, roupas brancas e pano branco cobrindo a cabeça.

“Eu comprei pão e, na volta, quando eu ia me aproximando ainda na outra calçada, eu vi que tinha mais gente na porta da Igreja e vi que eles falavam todos juntos frases como: 'Senhor, protegei-nos do demônio'. Eles estavam se voltando para mim e algumas pessoas no meio gritavam: 'Queima ela, queima ela, Senhor", relata Jamila.

O caso aconteceu em 2017, mas a marca da agressão ainda está presente na memória da professora, que não conseguiu prestar queixa.

“Machucou bastante, doeu, porque estava em um momento muito bonito, de muita paz e plenitude e foi uma violência. Eu me senti muito impotente. Eu pensei em fazer queixa, mas eu não tinha provas, nem ninguém na rua. E eu também não queria, naquele momento, entrar em uma delegacia. Lembrar ainda me traz tristeza”, conta.

Com o intuito de apurar os casos e dar assistência psicológica e jurídica às casas e praticantes das religiões de matriz africana, nasceu, no ano passado, o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matriz Africana (Idafro).

Entre advogados, contabilistas, sociólogos (as), sacerdotes e sacerdotisas, a organização reúne militantes que já estavam articulados em um coletivo da sociedade civil em ações contra a intolerância religiosa.

A Iyalorixá Luciana de Oya, líder religiosa do Ilê Oba Axé Obodó, localizado no Jardim Mata Virgem, em São Paulo (SP), é uma das integrantes do grupo e fala sobre o apoio prestado pela organização, inclusive em casos de abordagem policial.

"A  gente ouve dizer que a polícia chegou, que a polícia entrou no terreiro. Então, essas pessoas são orientadas a partir de atividades do Idafro. Como ela se comporta diante de uma intervenção policial? A polícia pode ou não pode entrar? Entre outros detalhes”, afirma.

Luciana lembra que a Constituição garante os direitos de todas as religiões e, para combater a intolerância religiosa, a comunidade precisa ter conhecimento sobre a legislação.

“Tem essa demanda de como eu faço para me defender, porque a intolerância religiosa ela exige que o tempo todo a gente tenha instrumentos para poder se defender. Tem uma legislação que normatiza isso e as casas, na maioria das vezes, não sabem. É essa uma das formas que nos encontramos para amenizar a intolerância religiosa, porque o outro precisa saber se ele tem direito às religiões de matriz africana também tem direito”, aponta.

<><> Avanços

Apesar do aumento no número de casos no ano passado, a Iyalorixá acredita que o período representou conquistas, não só pela criação da organização, mas também pelo marco histórico da representação dos povos de terreiro no Supremo Tribunal Federal (STF), que, com unanimidade dos votos, garantiu a liberdade de crença e do abate de animais pela religião.

"Neste momento em que você está com o poder da igreja, que você tem um presidente que tem as declarações intolerantes, ganhar essa ação por unanimidade é olhar e dizer que esta instituição está olhando para o direito, não para a religião, porque nós estávamos falando do direito constitucional ao abate”, indica.

Além do avanço na garantia de direitos, ela ressalta que houve uma reação direta na valorização da população de matriz africana. “Isso reverberou no Brasil e foi extremamente importante, inclusive do ponto de vista da autoestima. Há séculos nós somos massacrados, hostilizados. Isso resgatou a autoestima de todo um povo, que a única coisa que quer é ter o direito de cultuar a sua crença, o seu orixá”.

<><> Governo federal

De acordo com a revista Veja, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, atuam juntos para incluir uma disciplina sobre tolerância religiosa na grade curricular das escolas. Damares confirmou a informação em uma publicação no Instagram, mas não deu mais destalhes sobre o tema.

Entretanto, para a Iyalorixá Luciana de Oya, o governo federal deveria se concentrar na aplicação das leis que já que existem. “A gente não precisa inventar o novo. Nós temos uma Lei que é a 10.639, que tem 14 ou 15 anos e que não foi efetivada nas escolas. São poucas as escolas que se utilizaram daquela lei, por conta da intolerância religiosa”, indica.

A afirmação da líder religiosa vem da sua experiência como gestora do Polo Cultural Lar Maria Sininha, onde atua com educação e direitos da criança e adolescente. "Tem um dado de que as escolas, no seu corpo diretivo, estão tomadas por pessoas evangélicas. Por exemplo, eu tenho um sobrinho que a mãe vem se queixar, porque na creche, antes de comer, ele tinha que ler a Bíblia e a mãe é de religião de matriz africana", conta.

Luciana relata ainda casos de estudantes que sofrem perseguição religiosa por parte da escola e ressalta a importância de um trabalho mais efetivo e estrutural de combate ao problema.

“Uma coisa que é diário, ficar atento. Eu não consigo entender como a ministra pensa em regulamentar isso se não tiver um trabalho anterior. Como a gente vai discutir isso na diretoria de ensino? Como a gente vai discutir isso no ministério? Porque já existe uma lei que não está efetivada”, denuncia.

•           Rio teve quase 3 mil crimes ligados à intolerância religiosa em 2023

As delegacias do estado do Rio de Janeiro registraram, em 2023, aproximadamente 3 mil crimes que podem estar relacionados à intolerância religiosa. Entre eles, houve 2.021 vítimas de injúria por preconceito e 890 por preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional. Os números fazem parte de um levantamento inédito do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP). 

No entanto, apenas 34 vítimas de ultraje a culto religioso procuraram uma delegacia de polícia para registrar o crime no estado do Rio de Janeiro no ano passado.

“Eu atribuo a baixa procura, primeiro, ao descrédito que existe hoje em parte da comunidade de que nem todos os registros viram inquérito. Uma coisa é registrar na delegacia, e outra quando os inquéritos são instaurados para que se proceda uma investigação. Depois, quantos dos inquéritos se tornam denúncia crime pelo Ministério Público que acompanha para ser julgado no tribunal?”, questionou o babalaô (pai de santo) Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) e doutor e professor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em entrevista à Agência Brasil.

De acordo com o Instituto de Segurança Pública, a tipificação criminal é determinada pela ridicularização pública, pelo impedimento ou pela perturbação de cerimônia religiosa. “A injúria por preconceito é o ato de discriminar um indivíduo em razão da raça, cor, etnia, religião ou origem. Já o preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional tem por objetivo a inferiorização de todo um grupo etnicorracial e atinge a dignidade humana”, explicou o ISP em nota.

<><> Perfil

Conforme o levantamento, mulheres e negras são a maioria das vítimas. A maior concentração dos crimes foi na zona oeste da capital, na região da 35ª Delegacia de Polícia (DP), no bairro de Campo Grande. Embora este seja o dado do levantamento, o babalaô afirmou que a região da Baixada Fluminense também registra muitos casos, além dos municípios de Maricá, na região metropolitana, e Campos dos Goytacazes no norte do estado.

Segundo o ISP, a intenção, ao divulgar o levantamento neste domingo (21), Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, foi promover o diálogo, mostrar para a sociedade que intolerância religiosa é crime e que o estado do Rio de Janeiro tem mecanismos de denúncia para as vítimas.

Para a diretora-presidente do ISP, Marcela Ortiz, essas informações são fundamentais para esclarecer a sociedade que intolerância religiosa e preconceito são crimes que devem ser denunciados.

“Sabemos que esses números são subnotificados, muitas vezes por falta de informação, mas o estado do Rio  tem a Decradi [Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância], uma delegacia especializada para o registro desses crimes", disse a presidente do ISP.

É importante que todos lembrem que a Constituição Federal assegura o livre exercício de todos os cultos religiosos”, acrescenta ressaltou Marcela na nota divulgada pelo instituto.

Para a titular da Decradi, delegada Rita Salim, a intolerância religiosa é um crime que fere a liberdade e a dignidade humana. Segundo a delegada, combater a intolerância religiosa depende da conscientização da sociedade de que é preciso ter respeito à diversidade da crença, além das escolhas e das concepções religiosas.

“A Polícia Civil conta com uma unidade especializada na investigação desses crimes e está preparada para receber a denúncia e confeccionar os registros de ocorrência”, informou Rita.

<><> Especializada

A Decradi funciona na Rua do Lavradio, nº 155, no centro da cidade, mas os crimes de intolerância religiosa, ultraje a culto, injúria racial e racismo podem ser denunciados em qualquer delegacia de Polícia Civil. Os registros também podem ser feitos pela Delegacia Online da Secretaria de Estado de Polícia Civil.

No entendimento do babalaô Ivanir dos Santos, a Polícia Civil poderia repetir a experiência da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), que começou com apenas uma unidade e atualmente funciona também em outras partes do estado. Ele propõe a instalação de mais unidades da Decradi. De acordo com Santos, isso resolveria também o problema da dificuldade dos policiais de outras delegacias tipificarem o crime.

“Nas próprias delegacias tem um profissional que não está acostumado a tipificar o crime, tratam como briga de vizinho, mandam voltar para casa dizendo que vai acalmar”, completou o babalaô, lembrando que alguns casos são registrados também como homofobia, que está tipificada na mesma legislação.

“E pode ter também homofobia ligada à intolerância religiosa. A delegacia não consegue tipificar e fazer uma qualificação sobre isso. Esse é um aspecto importante”, afirmou.

Ivanir dos Santos defendeu a necessidade de formulação de políticas públicas para o combate à intolerância religiosa. Ele disse que é preciso ter dados para haver políticas. “Não basta os órgãos públicos fazerem como os movimentos sociais, que fazem denúncias. Os dados têm que servir para a construção de políticas públicas. Isso a gente está falando desde 2008 no Rio de Janeiro, desde a primeira Caminhada pela Liberdade Religiosa, e os casos vão se avolumando.”

Santos reivindica ainda maisr envolvimento do Ministério Público e da Defensoria Pública.

<><> Educação

O babalaô criticou a má interpretação da aplicação da Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira entre as disciplinas incluídas na grade curricular dos ensinos fundamental e médio.

“É encarado no ambiente escolar que, quando se implementa essa lei, que é federal e seria uma política de estado, que é como se você estivesse ensinando macumba. Consequentemente, o pensamento fundamentalista religioso inserido nos ambientes de escola e mundo do trabalho é um dos impeditivos do avançor em uma política mais de respeito à diversidade religiosa. Na verdade, a lei está falando de história e de cultura”, enfatizou.

 

Fonte: g1/Brasil de Fato/Agencia Brasil

 

Nenhum comentário: