Fabricantes de armas confundem Lula com Bolsonaro
A indústria nacional de produtos de defesa e de
segurança pública pressiona o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para
reverter medidas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O setor sustenta que
ações adotadas pelo governo passado impactaram negativamente nos negócios de
empresas que não exportam e dependem de compras governamentais. As empresas têm
apelado ao ministro da Defesa, José Múcio, para resolver o que chama de “grave
risco ao setor”.
Os gastos das Forças Armadas caíram cerca de 16%
entre 2019 e 2022, o que representou um freio nas compras militares feitas em
empresas dentro do País. Além disso, decretos do primeiro ano de Bolsonaro
abriram o mercado brasileiro a companhias estrangeiras sem definir critérios
claros sobre a taxação dos produtos oferecidos nem como elas poderiam concorrer
em licitações.
Com a quebra do monopólio, fabricantes
multinacionais de armas de fogo, coletes, capacetes, bombas de efeito moral e
outros componentes, por exemplo, puderam entrar em concorrências contra
fabricantes nacionais sem ter preços impactados por impostos como o ICMS. Elas
também ficam isentas de seguir leis trabalhistas, como a que veda mão de obra
infantil, e de apresentar certidões negativas.
Entre as fabricantes que passaram a fornecer para
os governos federal e estaduais estão firmas blindadas de concorrência em seus
países, caso da Índia. É um mercado bilionário em que as companhias de fora
começaram a prevalecer sobre as nacionais usando representantes brasileiros. Um
deles está na mira da CPMI do 8 de Janeiro e documentos que apontam
movimentações suspeitas já foram obtidos pelo colegiado.
As firmas nacionais defendem o protecionismo alegando
que parte delas é classificada pelo próprio governo como Empresas de Defesa
(ED) ou Empresas Estratégica de Defesa (EED). A designação é prevista em lei e
contempla as companhias consideras pelo Estado como relevantes para momentos de
crise militar ou de segurança nacional, e por isso recebem tratamentos
diferenciados.
Estima-se em 184 o número atual de empresas
consideradas estratégicas. Do total, cerca de 10% atuam com exportações
recorrentes. As demais dependem da demanda interna, concentrada nas Forças
Armadas, nas polícias estaduais e federal e nas guardas municipais. Elas
integram a Base Industrial de Defesa (BID), que abrange pelo menos 1,1 mil
empresas e corresponde a 4,8% do PIB.
A previsão é a de que no máximo 30% da BID fatura
com exportações, casos de Taurus, Embraer e Mac Jee, por exemplo. As demais,
menores, dependem do mercado interno e das contratações públicas. Os dados
foram compilados a pedido do Estadão pela InsurBids, empresa especializada em
serviços financeiros para o mercado de defesa.
“O presidente Jair Bolsonaro forjou laços estreitos
com as Forças Armadas, mas isso não levou a um aumento do financiamento para os
militares. Ao mesmo tempo, temos tido um crescimento constante dos gastos
militares em todo mundo motivado por questões geopolíticas. Desta perspectiva,
a Indústria de Defesa e Segurança poderia e pode se posicionar como um novo
‘player’ global e retomar a importância que já teve no passado”, comentou
Rodrigo Campos, executivo da empresa e especialista no setor.
Desde o primeiro semestre, grupos representativos
das empresas que se dizem prejudicadas têm percorrido gabinetes de Brasília
pleiteando a intervenção do governo Lula. Os ministros da Defesa, José Múcio, e
Flávio Dino, da Justiça, e o presidente do TCU, Bruno Dantas, receberam ofícios
com queixas expressadas por mais de cem empresas sobre “competição desigual” e
“falta isonomia tributária e regulatória” nas licitações.
Múcio tem dado sinais de ser solidário a revisões
da BID. Em evento com empresários de entidade ligada à Confederação Nacional da
Indústria, em julho, ele declarou que o Brasil “precisa projetar sua indústria
de defesa” e “aproveitar as oportunidades de um mercado global”.
“O ministro tem se mostrado disposto ao diálogo. Os
antecessores dele estavam sob pressão política. A pauta não era só o
desenvolvimento da indústria. Eram as questões políticas ligadas aos assuntos
militares. Tinha um desvio de foco. O ministro Múcio não lida com as questões
eleitorais que seus antecessores tiveram que lidar. Consegue pensar em demandas
de curto prazo para pensar em decisões de longo prazo”, frisou Rodrigo Campos.
O coordenador do Comitê de Produtos Controlados do
Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa (Simde), Christian
Callas, confirmou que o setor está pleiteando mudanças. “A regra do jogo mudou
e os pregões não são transparentes. A indústria nacional tem que ser
competitiva com a estrangeira, inclusive exportar. Mas se a regra do jogo não
está clara no pregão, ela deixa de ter uma fonte de receita fundamental para
ela”, afirmou.
A Associação Brasileira das Indústrias de Materiais
de Defesa e Segurança (Abimde) estima que 3/4 dos gastos governamentais com
produtos e componentes têm ido para o exterior. “O primeiro efeito de não
comprar aqui é ter menos emprego aqui. Quando não se compra no Brasil, está se
empobrecendo o Brasil. Outro efeito é o de quando você precisar do equipamento
do estrangeiro, ele vai ter que estar alinhado com você”, disse o presidente da
entidade, Roberto Gallo.
Em nota, a pasta confirmou que iniciou “estudo a
respeito dos normativos em vigor que têm reflexos para a Base Industrial de
Defesa brasileira” e que, “tão logo o referido estudo seja finalizado, as
conclusões obtidas serão tramitadas para as instâncias adequadas ao tema”. O
Ministério da Justiça informou que o assunto é da Defesa e que “aguarda
iniciativas e estudos da pasta para participar das discussões”.
Até o início do governo Bolsonaro, a União proibia
a entrada de produtos controlados estrangeiros, como pistolas e coletes à prova
de balas, se houvesse equivalentes fabricados no Brasil. Sem discutir impactos
às EEDs, o ex-presidente editou decretos que derrubaram a restrição e
possibilitaram fabricantes como a alemã Sig Sauer e a austríaca Glock
disputarem licitações.
A Glock produz a pistola favorita do deputado
Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para a qual ele fazia publicações elogiosas nas
redes sociais. “Finalmente chegou a minha Glock”, publicou o parlamentar em
2019 nas redes sociais. A empresa ganhou contratos federais e estaduais após a
liberação de Bolsonaro.
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) viabilizou a
liberação de R$ 3 milhões em recursos federais que possibilitaram a compra de
343 fuzis da Sig Sauer para a Polícia Civil do Rio de Janeiro. As empresas
internacionais recorrem a intermediários brasileiros para participar dos
certames
Política
tolera e até incentiva violência policial
Em dezembro passado, um homem de 26 anos em
aparente surto começou a ameaçar com uma faca quem passava numa rua de
Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro. Quatro policiais vieram conter o
sujeito. Em poucos minutos, ele estava morto com 13 balas no corpo.
A mãe do rapaz, humilde, demorou a localizar o
cadáver e mais ainda para chegar à Defensoria Pública do estado, que em abril
pediu acesso às imagens da ação. Embora a lei determine que, nos casos de morte
em ocorrência policial, as imagens têm que ser preservadas por 12 meses, a PM
respondeu que os vídeos já haviam sido descartados, porque não foram
considerados evidência de crime.
O caso não é isolado. No Rio de Janeiro, tem sido a
regra. O estado foi um dos primeiros a instalar câmeras nos uniformes da PM.
Mas, até agora, elas ainda não permitiram compreender como e por que a polícia
fluminense é a terceira mais letal do Brasil. A culpa, obviamente, não é das
câmeras.
De acordo com um documento entregue na semana
passada pela Defensoria Pública do Rio ao ministro do Supremo Edson Fachin, dos
90 pedidos de acesso a imagens de câmeras de policiais citados em ocorrências
de abusos, tortura e morte, apenas oito foram atendidos pela PM entre abril e
julho deste ano.
Mesmo assim, no material fornecido havia vídeos
fragmentados, exibindo o que houve antes e depois da ação policial — nunca
durante —, cenas do interior de viaturas e de um banheiro. Outros 51 pedidos
não foram respondidos. Em 24 casos, a PM exigiu mais informações. Em sete,
admitiu não ter imagem alguma.
O uso das câmeras como política pública já se
mostrou eficaz no exterior e no Brasil. Em São Paulo, os batalhões com câmeras
registraram queda de 76,2% na letalidade dos PMs em serviço entre 2019 e 2022.
Nas outras tropas, as mortes diminuíram 33,3%. O número de policiais mortos
também caiu, de 18 em 2020 para seis em 2022.
Para a política funcionar, porém, é preciso que todos
saibam que é para valer. Defensores públicos de São Paulo me contaram que lá a
regra é fornecer rapidamente as imagens — de todo o turno do PM, não só do
momento da ocorrência.
Isso começou a mudar nas últimas semanas, quando a
Rota desencadeou uma operação em resposta ao assassinato de um PM numa favela
do Guarujá — a Escudo, que já fez 23 vítimas fatais. O governo diz que a ação é
necessária para conter o tráfico de drogas e o crime organizado na Baixada
Santista.
Mas a Defensoria ainda não obteve acesso às imagens
das mortes, e o Ministério Público afirma ter recebido apenas parte dos vídeos,
porque alguns policiais não usavam câmeras.
Como se não bastasse, no último dia 18, o
governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) remanejou R$ 11 milhões da compra
de câmeras para outros gastos de policiamento ostensivo. Tudo isso despertou o
temor de retrocesso numa política que vinha sendo copiada, embora lentamente.
O consenso entre os especialistas é que, além de
reduzir a letalidade, as câmeras também ajudam a criar uma cultura de mais
transparência. É natural, portanto, que haja resistência na corporação,
tradicionalmente avessa ao controle externo.
Os governadores também evitam mexer no vespeiro. No
discurso de posse, o fluminense Cláudio Castro (PL) afirmou que lutaria “até o
fim” contra as câmeras nas tropas de elite. Em junho, porém, Fachin determinou
que não houvesse exceções, e o governo do Rio começou a obedecer a ele.
Ainda assim, quando o relatório da Defensoria veio
a público, Castro reclamou de “falta de diálogo” com a PM e acusou os
defensores de fazer “gracinha”.
A resistência não se dá apenas entre bolsonaristas.
Na Bahia, que apresenta a maior letalidade policial do país depois do Amapá, os
petistas Rui Costa e Jerônimo Rodrigues prometeram instalar as câmeras desde
2020, mas as tratativas para a compra se arrastam desde então.
No governo Lula, que as incluiu como prioridade no
relatório de transição, há apenas um projeto-piloto para distribuir os
equipamentos no município baiano de Lauro de Freitas.
Na semana em que Lula decidiu atacar um dos maiores
focos de golpismo bolsonarista e enviar ao Congresso uma Proposta de Emenda
Constitucional proibindo os militares de atuar na política, é difícil entender
a leniência com as polícias.
A esta altura, já está evidente que a falta de uma
política de segurança pública consistente nos governos petistas ajudou a
disseminar bolsonarismo nas polícias e a empurrar o eleitorado das periferias
para a órbita da direita radical. O risco de continuar negando a enfrentar esse
problema é ser obrigado a ver imagens ainda mais letais que as de hoje — só que
na arena política.
Fonte: Agencia Estado/O Globo
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