Após duas décadas, transgênicos têm regras flexíveis e não cumprem
promessa de combate à fome
Há 18 anos, quando foram regulamentados no Brasil
por meio da Lei 11.105, de março de 2005, os transgênicos traziam consigo
algumas promessas. O artigo Transgenia: quebrando barreiras em prol da
agropecuária brasileira, publicado pela Embrapa, elenca algumas delas. Segundo
o texto, as variedades transgênicas permitem, com baixo custo, “produzir mais comidas
nutritivas ou com composição mais saudável.” Além disso, prossegue o texto, a
biotecnologia reduz a necessidade de uso de agrotóxicos.
Alheia às promessas dos transgênicos, a insegurança
alimentar grave fez morada nos lares de 33 milhões de brasileiros, como revelam
os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (Vigisan). Os
agrotóxicos também caminharam na contramão: durante o governo de Jair
Bolsonaro, foram aprovados no Brasil 2.182 pesticidas e afins — um número
recorde que equivale a 2,5 novas aprovações por dia.
Fazendo um balanço dos 18 anos dos transgênicos no
Brasil, o geneticista, pesquisador e professor do Departamento de Fitotecnia do
Programa de Pós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), Rubens Nodari, avalia que há falhas no
processo de regulamentação e fiscalização desses produtos. “Tanto as regras [de
regulamentação] quanto às ações de fiscalização foram inócuas ao longo desses
anos.”
Um bom exemplo é a Resolução Normativa nº 4,
adotada pela Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio) para regulamentar a
coexistência no Brasil entre sementes transgênicas e crioulas — aquelas que não
passaram por melhoramento genético. No artigo 2º, o texto recomenda a distância
de 100 metros entre as lavouras vizinhas.
“Essa norma é inócua do ponto de vista de evitar a
polinização cruzada. Esse é um primeiro ponto que causou um prejuízo enorme
para os agricultores, que levaram anos para selecionar essas sementes crioulas.
Quem tomou essa decisão, irresponsavelmente, causou um prejuízo enorme para
essas famílias”, pontua Nodari, lembrando que o pólen de um grão transgênico é
capaz de viajar até 3 quilômetros.
À reportagem do Mongabay, a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio) afirmou, por e-mail, que “a distância de 100
metros foi tomada de forma criteriosa e com base em dados científicos, que
concluíram que esse espaçamento era seguro para evitar uma possível
contaminação.”
O pesquisador aponta que outra falha se refere à
promessa de redução do uso de agrotóxicos. De acordo com dados da pesquisadora
e professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sônia
Corina Hess, entre 2013 e 2020, a área cultivada no Brasil aumentou 15,2%,
enquanto a quantidade de agrotóxicos subiu para 38,3%, ou seja, mais do que o
dobro.
Em muitos casos, a transgenia é adotada para que
uma planta se torne resistente a até três tipos de agrotóxicos. Sendo assim, a
espécie pode receber uma grande quantidade de veneno, sem ter a sua produtividade
afetada. Hoje, no Brasil, 92% da soja, 90% do milho e 47% do algodão são
transgênicos, revelam dados da Embrapa. “O Brasil, nestes 18 anos [de
transgênicos] quadruplicou o uso de agrotóxicos, sem quadruplicar a área
[cultivada]”, reforça o pesquisador Rubens Nodari.
Ele observa ainda que, ao longo do tempo, o custo
de produção foi se tornando ainda mais elevado, com o aumento no valor da
semente e dos herbicidas, o que frustra outra promessa feita pelos
transgênicos: a de que os custos de produção seriam reduzidos. Por fim, em
relação à questão dos danos à saúde, há estudos que mostram o surgimento de
efeitos crônicos relacionados tanto ao consumo dos transgênicos como das
substâncias associadas.
O estudo “Uma Comparação dos Efeitos de Três
Variedades de Milho GM em Mamíferos” identificou efeito tóxico no fígado e nos
rins de mamíferos alimentados com três principais tipos de milhos geneticamente
modificados. “Há evidências de pessoas expostas a esses produtos que vêm sendo
intoxicadas e desenvolvendo efeitos crônicos, ou seja, que só vão aparecer
quando as enfermidades já estiverem avançadas”, explica o pesquisador Nodari.
• Flexibilização
das regras e impacto ambiental
Ao longo dos anos, a CTNBio foi adotando resoluções
normativas que foram agilizando a aprovação e flexibilizando a fiscalização dos
transgênicos no Brasil. Em dois artigos da Resolução Normativa nº 32,
encontramos dois bons exemplos.
O Artigo 14, parágrafo único, assegura a aprovação
automática de plantas ditas piramidadas, em que são sobrepostas modificações
genéticas. Na prática, é o seguinte: há plantas que passam por uma mutação
transgênica para se tornarem resistentes a um tipo de praga. Em seguida, ela
recebe outra modificação para se tornar resistente a outro tipo de praga.
Se essas mutações já tiverem sido aprovadas
individualmente pela CTNBio, quando agrupadas em uma mesma planta, essa
variedade não passará por uma avaliação específica para saber como essas
mudanças genéticas, reunidas em uma mesma planta, vão se comportar em campo.
“A CTNBio sempre afirma basear as suas decisões em
estudos científicos, mas não há estudos que indicam que uma planta que acumula
diversos eventos [mutações transgênicas] se comporte de uma forma previsível”,
critica o coordenador do Centro de Tecnologia Alternativa, Gabriel Fernandes.
Já o artigo 18 da mesma resolução faculta às
empresas o direito de pedir dispensa da análise do monitoramento dos efeitos
dos transgênicos no campo. Esse monitoramento serve para identificar e evitar
problemas indesejados causados pelos transgênicos na interação com a fauna e a
flora de diversos biomas.
“A CTNBio é um órgão normativo, que cria suas
próprias regras. Dessa forma, ela tem avançado de forma acelerada no processo
de desmanche das regras de biossegurança no país. Neste caso, as empresas usam
o próprio parecer da comissão, que, quando aprova o produto, afirma que ele não
oferece danos ao meio ambiente, para pedir dispensa do monitoramento”, explica
Fernandes.
Com a dispensa do monitoramento e a falta de
fiscalização, mesmo as espécies rotuladas para um tipo de transgênico podem ter
adquirido, em cruzamentos espontâneos, outros tipos de genes transgênicos para
os quais não foram rotuladas. Em outras palavras, a combinação da dispensa de
monitoramento com a falta de fiscalização dá margem para os cruzamentos
ocorrerem livremente e traz incerteza sobre o que vai parar na prateleira dos
supermercados.
Sobre a aprovação automática de plantas
piramidadas, a CTNBio informou, por e-mail, ao Mongabay que “a análise dos eventos
piramidados já foram avaliados previamente pela comissão.”
Sobre os riscos que esses produtos podem causar, o
órgão informou que “a avaliação de risco e experiência ao longo dos anos
permite adoção de uma abordagem racional para os produtos com genes combinados”.
O biólogo e professor do Departamento de Botânica
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Paulo Brack, chama atenção para o
impacto dos transgênicos no meio ambiente. Ele cita estudos feitos nos Estados
Unidos que comprovaram as mortes da lagarta da borboleta-monarca causada pelo
consumo do pólen do milho Bt (que recebe genes da bactéria Bacillus
thuringiensis). Além disso, ele reforça que “a falta de segregação entre
espécies crioulas e transgênicas impacta na evolução da agrobiodiversidade.”
Por fim, o biólogo atentou ainda para o fato de que
essa perda de biodiversidade, atrelada ao controle das patentes de transgênicos
nas mãos de poucas empresas, é uma equação que dificulta o acesso aos
alimentos. “Os países, a exemplo do Brasil, que não têm poder sobre essas
sementes vão sofrer com a insegurança alimentar. Todos os eventos [mutações
transgênicas] têm sigilo. A gente solicita as informações até para fazer
análise e não obtém”, explica.
Até o fechamento desta apuração, identificamos no Resumo
Geral de Plantas Geneticamente Modificadas no Brasil, disponível no site da
CTNBio, 120 eventos, ou mutações transgênicas, aprovados para comercialização.
As tecnologias envolvem soja, milho, algodão, eucalipto, feijão, farinha de
trigo e cana-de-açúcar — metade desses eventos são de milho. Essas patentes
estão registradas em nome de apenas treze empresas. Dessas treze, oito são
transnacionais, com sede fora do Brasil, e cinco são brasileiras.
As transnacionais são Monsanto, Basf, Bayer, Dow
AgroSciences, DuPont, Syngenta, Corteva, GDM e Helix. A Monsanto, empresa que
hoje pertence à alemã Bayer, possui 35 patentes de transgênicos, o que equivale
a mais de um terço do total de tecnologias liberadas pela CTNBio até 17 de
julho. Essa é a data mais recente do resumo geral disponibilizado no site da
CTNBio até o dia 24 de agosto. Em segundo lugar vem a Syngenta, hoje ChemChina,
com 19 patentes. As empresas brasileiras são Suzano, Futuragene, Centro de
Tecnologia Canavieira (CTC), Tropical Melhoramento e Genética (TMG) e Embrapa.
O engenheiro agrônomo e membro da Associação
Brasileira de Agroecologia (ABA), Leonardo Melgarejo, avalia que a concentração
dessas patentes, combinada ao avanço da contaminação das espécies crioulas por
transgênicos acentua a “já presente no Brasil crise de comida de verdade
[alimentos oriundos da agricultura familiar]”, afirma ele.
Isso porque os alimentos consumidos in natura
produzidos pela agricultura familiar contêm genes que foram adquiridos através
de processos naturais, ao longo de anos de evolução da espécie. Já os
transgênicos são produzidos em laboratório. “A alternativa envolve políticas de
apoio à agricultura familiar, com base em tecnologias mais amistosas ao
ambiente”, defende.
A reportagem da Mongabay entrou em contato com o
Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) para saber sobre as falhas no
processo de fiscalização citadas aqui. O órgão respondeu, por meio de
assessoria, que “segundo a Lei 11.105, a fiscalização de atividades que levam
organismos geneticamente modificados é compartilhada com outros três
ministérios”, diz o texto. O texto informa que o Mapa “realiza suas
fiscalizações, nos termos do arcabouço legal brasileiro sobre biossegurança, no
território nacional.”
Perguntamos ainda se os canais de denúncia oferecidos
pelo órgão são acessíveis às famílias agricultoras de áreas isoladas. O
ministério informou que as denúncias podem ser realizadas pelo site ou e-mail
da Controladoria Geral da União (CGU), via telefone ou carta, e ainda
presencialmente na sede do próprio ministério, localizado em Brasília.
Fonte: Mongabay
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