sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Fabricantes de armas confundem Lula com Bolsonaro

A indústria nacional de produtos de defesa e de segurança pública pressiona o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para reverter medidas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O setor sustenta que ações adotadas pelo governo passado impactaram negativamente nos negócios de empresas que não exportam e dependem de compras governamentais. As empresas têm apelado ao ministro da Defesa, José Múcio, para resolver o que chama de “grave risco ao setor”.

Os gastos das Forças Armadas caíram cerca de 16% entre 2019 e 2022, o que representou um freio nas compras militares feitas em empresas dentro do País. Além disso, decretos do primeiro ano de Bolsonaro abriram o mercado brasileiro a companhias estrangeiras sem definir critérios claros sobre a taxação dos produtos oferecidos nem como elas poderiam concorrer em licitações.

Com a quebra do monopólio, fabricantes multinacionais de armas de fogo, coletes, capacetes, bombas de efeito moral e outros componentes, por exemplo, puderam entrar em concorrências contra fabricantes nacionais sem ter preços impactados por impostos como o ICMS. Elas também ficam isentas de seguir leis trabalhistas, como a que veda mão de obra infantil, e de apresentar certidões negativas.

Entre as fabricantes que passaram a fornecer para os governos federal e estaduais estão firmas blindadas de concorrência em seus países, caso da Índia. É um mercado bilionário em que as companhias de fora começaram a prevalecer sobre as nacionais usando representantes brasileiros. Um deles está na mira da CPMI do 8 de Janeiro e documentos que apontam movimentações suspeitas já foram obtidos pelo colegiado.

As firmas nacionais defendem o protecionismo alegando que parte delas é classificada pelo próprio governo como Empresas de Defesa (ED) ou Empresas Estratégica de Defesa (EED). A designação é prevista em lei e contempla as companhias consideras pelo Estado como relevantes para momentos de crise militar ou de segurança nacional, e por isso recebem tratamentos diferenciados.

Estima-se em 184 o número atual de empresas consideradas estratégicas. Do total, cerca de 10% atuam com exportações recorrentes. As demais dependem da demanda interna, concentrada nas Forças Armadas, nas polícias estaduais e federal e nas guardas municipais. Elas integram a Base Industrial de Defesa (BID), que abrange pelo menos 1,1 mil empresas e corresponde a 4,8% do PIB.

A previsão é a de que no máximo 30% da BID fatura com exportações, casos de Taurus, Embraer e Mac Jee, por exemplo. As demais, menores, dependem do mercado interno e das contratações públicas. Os dados foram compilados a pedido do Estadão pela InsurBids, empresa especializada em serviços financeiros para o mercado de defesa.

“O presidente Jair Bolsonaro forjou laços estreitos com as Forças Armadas, mas isso não levou a um aumento do financiamento para os militares. Ao mesmo tempo, temos tido um crescimento constante dos gastos militares em todo mundo motivado por questões geopolíticas. Desta perspectiva, a Indústria de Defesa e Segurança poderia e pode se posicionar como um novo ‘player’ global e retomar a importância que já teve no passado”, comentou Rodrigo Campos, executivo da empresa e especialista no setor.

Desde o primeiro semestre, grupos representativos das empresas que se dizem prejudicadas têm percorrido gabinetes de Brasília pleiteando a intervenção do governo Lula. Os ministros da Defesa, José Múcio, e Flávio Dino, da Justiça, e o presidente do TCU, Bruno Dantas, receberam ofícios com queixas expressadas por mais de cem empresas sobre “competição desigual” e “falta isonomia tributária e regulatória” nas licitações.

Múcio tem dado sinais de ser solidário a revisões da BID. Em evento com empresários de entidade ligada à Confederação Nacional da Indústria, em julho, ele declarou que o Brasil “precisa projetar sua indústria de defesa” e “aproveitar as oportunidades de um mercado global”.

“O ministro tem se mostrado disposto ao diálogo. Os antecessores dele estavam sob pressão política. A pauta não era só o desenvolvimento da indústria. Eram as questões políticas ligadas aos assuntos militares. Tinha um desvio de foco. O ministro Múcio não lida com as questões eleitorais que seus antecessores tiveram que lidar. Consegue pensar em demandas de curto prazo para pensar em decisões de longo prazo”, frisou Rodrigo Campos.

O coordenador do Comitê de Produtos Controlados do Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa (Simde), Christian Callas, confirmou que o setor está pleiteando mudanças. “A regra do jogo mudou e os pregões não são transparentes. A indústria nacional tem que ser competitiva com a estrangeira, inclusive exportar. Mas se a regra do jogo não está clara no pregão, ela deixa de ter uma fonte de receita fundamental para ela”, afirmou.

A Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) estima que 3/4 dos gastos governamentais com produtos e componentes têm ido para o exterior. “O primeiro efeito de não comprar aqui é ter menos emprego aqui. Quando não se compra no Brasil, está se empobrecendo o Brasil. Outro efeito é o de quando você precisar do equipamento do estrangeiro, ele vai ter que estar alinhado com você”, disse o presidente da entidade, Roberto Gallo.

Em nota, a pasta confirmou que iniciou “estudo a respeito dos normativos em vigor que têm reflexos para a Base Industrial de Defesa brasileira” e que, “tão logo o referido estudo seja finalizado, as conclusões obtidas serão tramitadas para as instâncias adequadas ao tema”. O Ministério da Justiça informou que o assunto é da Defesa e que “aguarda iniciativas e estudos da pasta para participar das discussões”.

Até o início do governo Bolsonaro, a União proibia a entrada de produtos controlados estrangeiros, como pistolas e coletes à prova de balas, se houvesse equivalentes fabricados no Brasil. Sem discutir impactos às EEDs, o ex-presidente editou decretos que derrubaram a restrição e possibilitaram fabricantes como a alemã Sig Sauer e a austríaca Glock disputarem licitações.

A Glock produz a pistola favorita do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para a qual ele fazia publicações elogiosas nas redes sociais. “Finalmente chegou a minha Glock”, publicou o parlamentar em 2019 nas redes sociais. A empresa ganhou contratos federais e estaduais após a liberação de Bolsonaro.

O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) viabilizou a liberação de R$ 3 milhões em recursos federais que possibilitaram a compra de 343 fuzis da Sig Sauer para a Polícia Civil do Rio de Janeiro. As empresas internacionais recorrem a intermediários brasileiros para participar dos certames

 

       Política tolera e até incentiva violência policial

 

Em dezembro passado, um homem de 26 anos em aparente surto começou a ameaçar com uma faca quem passava numa rua de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro. Quatro policiais vieram conter o sujeito. Em poucos minutos, ele estava morto com 13 balas no corpo.

A mãe do rapaz, humilde, demorou a localizar o cadáver e mais ainda para chegar à Defensoria Pública do estado, que em abril pediu acesso às imagens da ação. Embora a lei determine que, nos casos de morte em ocorrência policial, as imagens têm que ser preservadas por 12 meses, a PM respondeu que os vídeos já haviam sido descartados, porque não foram considerados evidência de crime.

O caso não é isolado. No Rio de Janeiro, tem sido a regra. O estado foi um dos primeiros a instalar câmeras nos uniformes da PM. Mas, até agora, elas ainda não permitiram compreender como e por que a polícia fluminense é a terceira mais letal do Brasil. A culpa, obviamente, não é das câmeras.

De acordo com um documento entregue na semana passada pela Defensoria Pública do Rio ao ministro do Supremo Edson Fachin, dos 90 pedidos de acesso a imagens de câmeras de policiais citados em ocorrências de abusos, tortura e morte, apenas oito foram atendidos pela PM entre abril e julho deste ano.

Mesmo assim, no material fornecido havia vídeos fragmentados, exibindo o que houve antes e depois da ação policial — nunca durante —, cenas do interior de viaturas e de um banheiro. Outros 51 pedidos não foram respondidos. Em 24 casos, a PM exigiu mais informações. Em sete, admitiu não ter imagem alguma.

O uso das câmeras como política pública já se mostrou eficaz no exterior e no Brasil. Em São Paulo, os batalhões com câmeras registraram queda de 76,2% na letalidade dos PMs em serviço entre 2019 e 2022. Nas outras tropas, as mortes diminuíram 33,3%. O número de policiais mortos também caiu, de 18 em 2020 para seis em 2022.

Para a política funcionar, porém, é preciso que todos saibam que é para valer. Defensores públicos de São Paulo me contaram que lá a regra é fornecer rapidamente as imagens — de todo o turno do PM, não só do momento da ocorrência.

Isso começou a mudar nas últimas semanas, quando a Rota desencadeou uma operação em resposta ao assassinato de um PM numa favela do Guarujá — a Escudo, que já fez 23 vítimas fatais. O governo diz que a ação é necessária para conter o tráfico de drogas e o crime organizado na Baixada Santista.

Mas a Defensoria ainda não obteve acesso às imagens das mortes, e o Ministério Público afirma ter recebido apenas parte dos vídeos, porque alguns policiais não usavam câmeras.

Como se não bastasse, no último dia 18, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) remanejou R$ 11 milhões da compra de câmeras para outros gastos de policiamento ostensivo. Tudo isso despertou o temor de retrocesso numa política que vinha sendo copiada, embora lentamente.

O consenso entre os especialistas é que, além de reduzir a letalidade, as câmeras também ajudam a criar uma cultura de mais transparência. É natural, portanto, que haja resistência na corporação, tradicionalmente avessa ao controle externo.

Os governadores também evitam mexer no vespeiro. No discurso de posse, o fluminense Cláudio Castro (PL) afirmou que lutaria “até o fim” contra as câmeras nas tropas de elite. Em junho, porém, Fachin determinou que não houvesse exceções, e o governo do Rio começou a obedecer a ele.

Ainda assim, quando o relatório da Defensoria veio a público, Castro reclamou de “falta de diálogo” com a PM e acusou os defensores de fazer “gracinha”.

A resistência não se dá apenas entre bolsonaristas. Na Bahia, que apresenta a maior letalidade policial do país depois do Amapá, os petistas Rui Costa e Jerônimo Rodrigues prometeram instalar as câmeras desde 2020, mas as tratativas para a compra se arrastam desde então.

No governo Lula, que as incluiu como prioridade no relatório de transição, há apenas um projeto-piloto para distribuir os equipamentos no município baiano de Lauro de Freitas.

Na semana em que Lula decidiu atacar um dos maiores focos de golpismo bolsonarista e enviar ao Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional proibindo os militares de atuar na política, é difícil entender a leniência com as polícias.

A esta altura, já está evidente que a falta de uma política de segurança pública consistente nos governos petistas ajudou a disseminar bolsonarismo nas polícias e a empurrar o eleitorado das periferias para a órbita da direita radical. O risco de continuar negando a enfrentar esse problema é ser obrigado a ver imagens ainda mais letais que as de hoje — só que na arena política.

 

Fonte: Agencia Estado/O Globo

 

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